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| | | | Bob, o comissário de bordo | A série que estreia essa newsletter nasceu do projeto de um livro que se chamaria "Vidas Íntimas" e no qual eu pretendia mostrar as vidas extraordinárias de pessoas anônimas. Como um psicopata vê o mundo dos não psicopatas? Como é a rotina de um homem casado com duas mulheres? O que passa pela cabeça de uma mãe de criança autista? Como são os dias (e as noites) de uma adepta do swing que já fez sexo com mais de cem homens em um ano? O livro nunca saiu, mas deu origem à série que abre hoje com Bob (o nome é fictício), 55 anos, chefe de comissários de uma das maiores companhias aéreas do mundo, que eu entrevistei por mais de sete horas, em três encontros. Ele conta a seguir como os 28 anos de profissão moldaram sua visão dos passageiros. PUBLICIDADE | | | O passageiro, esse chato | "Eu identifico passageiro-problema de longe. É o sujeito que já chega com uma cara desafiadora, não quer acomodar sozinho a mala dele e que, quando você passa com o carrinho de bebidas, te pergunta: 'Posso pedir três coisas?'". Ele quer um suco de laranja, uma diet coke e quer também experimentar dois rótulos de vinho tinto — ah, faça-me o favor. Dá problema o voo inteirinho. A gente já avisa os outros: "Cuidado com o 15F". Tem também o contrário. Se for um gato com um "equipamento" bom, dizemos pro colega: "Checa o cinto de segurança do 11A...". Outro problemaço é pedido de upgrade [mudança para um assento em classe superior do voo]. Inventam mil histórias: gravidez, a mãe morreu, dor nas costas, pé quebrado, acabou de operar... Eu, como chefe de cabine, posso dar o upgrade, mas sou meio durão com isso e só dou quando vejo que a situação é mesmo grave. "Ah, estou na econômica e minha cadeira não reclina, está quebrada." Sinto muito, minha senhora, anda um pouquinho pelo corredor que alivia as costas. Já um senhor velhinho, tossindo muito, incomodando quem está do lado, esse eu mudo pra executiva, claro. | | | Getty Images/iStockphoto |
| | | | As pessoas ficam irracionais num avião | O ser humano deixa o cérebro em casa assim que pisa no aeroporto. As pessoas agem das maneiras mais estranhas possíveis. Outro dia, um senhor da primeira classe veio aos berros, jogando a mala no chão porque uma pessoa da econômica passou no corredor e pisou no seu pé. Ele, alto executivo de uma grande companhia, dizia que não iria mais voar. "Como a companhia pode deixar isso acontecer?", gritava. Tem uma coisa que acontece em quase todo voo: briga porque não entraram certas comidas especiais. As kosher e as medicinais (sem glúten ou para pacientes de diabetes) são as que mais dão problema. Às vezes não é culpa nossa, a secretária do passageiro esqueceu de fazer a reserva, por exemplo. Mas eu tenho de apaziguar, pedir desculpas, oferecer uma compensação, uma fruta. Já chego sorrindo, mostrando os dentes. Mas o passageiro mais chato é aquele impaciente, que fica toda hora tocando a campainha [de acionamento de comissários]. Carioca, então, dá um trabalho louco. Eles acham que têm direito de pedir isso, pedir aquilo. Junto com italianos e argentinos, os cariocas são os piores. Levantam toda hora, implicam com a comida, com o passageiro da frente, com o passageiro de trás. Nem os comissários cariocas querem voar para o Rio. Tinha outro dia uma mulher na classe executiva que queria trocar a necessaire que tínhamos distribuído. A de todo mundo era vermelhinha, mas ela disse que tinha visto distribuírem umas verdinhas e ela queria a verdinha. Eu disse: "Ninguém tem a verde aqui, senhora. Existe a verde, mas nesse voo só entrou vermelha." "Ah, mas eu vi a verde, eu quero a verde". Carioca. Já a rota pra Tóquio é disputadíssima porque os japoneses não dão o menor trabalho, ninguém pode ser melhor do que eles nesse ponto. Eles dobram todos os cobertores antes de sair, respeitam o espaço alheio. Agora, se você ferrar com um japonês, ele não vai nem se dar ao trabalho de brigar: vai direto escrever uma cartinha pra reclamar de você na companhia. | 'Nem uma gota de álcool pro 9G' | O problema mais frequente nas viagens é desmaio de passageiro, por pressão alta ou baixa. Em grupos grandes de adolescentes sempre tem um que desmaia. Excitação do voo. Problema número dois é o cara que bebeu demais. Homem. Vomita no assento, vomita nos banheiros, vomita nas pessoas. Já tive muito. Se estiver em solo, a gente tira do avião na hora. Normalmente, é o sujeito que tem fobia de voar. Enche a cara no bar do aeroporto e já chega bêbado no assento. Ou então, tem as pessoas que bebem para conseguir dormir. Só que estar a 5 mil pés é como estar sempre em Campos do Jordão - o álcool sobe mais rápido do que quando você está em solo. Nessas situações, a primeira medida é a comunicação entre nós: "Nem uma gota de álcool pro 9G". Se ele dá escândalo, o chefe de cabine, no caso eu, é chamado. Eu digo: "Olha, infelizmente, as regras da companhia são essas, o senhor está um pouco alterado e nós teremos de cortar o serviço de bebidas". Se ele insiste, eu eu venho com um termo de interferências de voo e apresento para ele assinar, porque prejudicar o trabalho da tripulação durante o voo é delito tipificado, a polícia vai estar esperando por ele na aterrissagem. Briga entre marido e mulher, com bate e boca alto, é a mesma coisa. O que eu faço nesses casos é ir lá e perguntar se um dos dois quer mudar de lugar. Mas, em geral, briga entre passageiros eu adoro administrar, adoro. Chego com um sorriso super tranquilo: "Boa tarde, como eu posso ajudar?". Aí a mulher reclama que o sujeito da frente não quis levantar o banco pra ela jantar e agora a bandeja está batendo na perna dela e que ele foi grosso e tal. Normalmente, esse tipo de problema acontece lá atrás, na "Vila Socó", que é como chamamos, entre nós, a classe econômica. Trabalhar na econômica me dá ojeriza. A quantidade de gente me dá aflição: 250 passageiros é um cinema! Não dá pra não se irritar. Só atravesso a cortina se tiver um problema pra resolver lá. A primeira classe não chega a ter trinta pessoas, mas você tem de servir pilotos, que são chatos, meio arrogantes. Eu não sirvo cockpit. Eles são de outra turma, ganham muito mais que a gente, têm muito mais regalias, são outro sindicato. Existe uma animosidade natural entre a tripulação e os pilotos. Então, muitos comissários não querem trabalhar na primeira classe por causa dessa relação com os pilotos. Na executiva também não é nenhuma maravilha, porque você trabalha muuuuito. São mais de cinquenta assentos, as passagens são caras e as pessoas exigem muito do serviço. E, o pior: você TEM de sorrir o tempo todo." | | | Assentos do avião | Getty Images/iStockphoto |
| | | | Intimidades | Bob vive entre São Paulo e uma grande capital no exterior, onde tem um apartamento com seu marido, diretor de uma empresa de tecnologia. Seu sonho era ser diplomata, mas o dinheiro da família não deu para bancar os estudos, e ele resolveu fazer um concurso para a extinta Varig quando tinha 18 anos. O emprego e o cargo de Bob dão a ele e ao marido passe livre e vitalício para qualquer lugar do mundo em qualquer voo da companhia em que haja lugar vago. "É só decidir o destino, pegar o avião e ir embora", diz. O apartamento de Bob em São Paulo é decorado com obras de arte contemporânea e esculturas, caixinhas, enfeites e badulaques trazidos de 28 anos de voos pelo mundo. Quando cheguei para entrevistá-lo, a mesa da sala estava arrumada com pãezinhos, patês, queijos e embutidos, cada um trazido de um lugar por onde ele havia passado recentemente. Na geladeira, uma garrafa de Cristal vintage esperava por nós. Até termos essa primeira conversa, Bob nunca tinha vivido uma situação de emergência na profissão. Duas semanas depois, no nosso segundo encontro, ele contou ter presenciado pela primeira vez uma morte a bordo. Estava ainda abalado e chorou ao contar o episódio. Na próxima newsletter, nosso chefe de comissários contará como foi o episódio da morte no ar e revelará segredos da profissão —coisas surpreendentes que ocorrem num voo e de que ninguém desconfia. | | | |
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