PM não deveria ser protagonista em reintegrações de posse
Os últimos episódios de reintegração de posse de prédios ocupados pelos movimentos de moradia em São Paulo confirmam a óbvia constatação de que esse é, sobretudo, um problema que está relacionado à ordem pública. Por isso, as soluções baseadas estritamente na legislação civil são insatisfatórias.
A lista de casos trágicos é grande, tendo como exemplo mais recente o do antigo Hotel Aquarius, ocupado por cerca de 200 famílias. Nesse e em tantos outros episódios ficou evidente que as ordens judiciais e a atuação da Polícia Militar geram mais problemas do que soluções.
Em pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico, pelo Instituto Polis e pelo Centro de Direitos Econômicos e Sociais, foram analisados mais de 30 casos de conflitos fundiários urbanos envolvendo coletividades em São Paulo, Fortaleza e Porto Alegre. Em regra, os juízes posicionaram-se em defesa da propriedade privada, ignorando a demanda social por moradia.
Além disso, a prática comum é de ordens judiciais deferidas liminarmente sem ouvir os ocupantes e sem nenhuma tentativa de mediação do conflito.
Outro grave problema é a forma como os mandados judiciais têm sido executados. Como os magistrados não estabelecem critérios e procedimentos para o seu cumprimento, a Polícia Militar assume um protagonismo que não deveria ser seu.
Nesse âmbito, não há espaço para meios consensuais de solução do conflito, pois o que mais interessa é cumprir a determinação judicial a todo custo. Como consequência, temos testemunhado intervenções violentas de variadas ordens.
A violência institucional vai de encontro a uma série de normas internacionais que protegem o direito à moradia, em especial o comentário geral nº 7 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU.
Esse documento determina que os signatários do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, dentre os quais o Brasil, devem buscar todos os meios possíveis para evitar as chamadas remoções forçadas.
No âmbito nacional, o Conselho das Cidades editou a resolução nº 87/2009, que estabelece que os conflitos fundiários urbanos devem prioritariamente ser solucionados por meio da mediação, buscando garantir o direito à moradia digna e impedir a violação dos direitos humanos.
Na mesma linha, a adoção de mecanismos para solução pacífica de conflitos foi abordada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) na resolução nº 125/2010.
Essas normativas, entretanto, têm sido ignoradas não apenas pelo Judiciário, mas também pelos poderes Executivo e Legislativo. O real conflito, aquele que fica camuflado pela reintegração de posse, não é enfrentado por nenhuma dessas instituições. O déficit habitacional no país é enorme e a população tem cada vez mais dificuldade de acessar uma moradia digna.
Na base do problema está a questão fundiária e a incapacidade das políticas de planejamento urbano em garantir acesso à terra urbanizada para toda a população.
Além disso, o que quase ninguém questiona é o efeito negativo dos imóveis vazios. Ao descumprirem sua função social, essas propriedades contribuem para a degradação do espaço urbano e criam ônus para a gestão da cidade. Por isso, a Constituição Federal e o Estatuto da Cidade (lei 10.257/2001) determinaram que os municípios combatam o não uso de imóveis urbanos em áreas dotadas de condições adequadas de infraestrutura.
O que as decisões judiciais têm feito ao proteger o direito dos proprietários de imóveis que eles próprios abandonaram é premiar a especulação imobiliária. Em verdade, as famílias que tomam posse desses imóveis é que deveriam ser protegidas, pois são elas que efetivamente conferem uma função social a eles.
Infelizmente o cenário atual não é nada animador. Só na cidade de São Paulo existem mais de vinte outras reintegrações de posse envolvendo coletividades. Em alguns casos, chega a 2500 famílias afetadas. A tragédia urbana está anunciada.
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