Topo

Abaixo o tabu redutor que confina os mais pobres à música brega

Especial para o UOL

06/01/2016 06h00

"O povo sabe o que quer

Mas o povo também quer o que não sabe"

Infelizmente, as sagazes palavras de nosso ex-ministro da Cultura, Gilberto Gil, em "Rep" (composição gravada no disco "Sol de Oslo", de 1998) andam esquecidas pela mídia principal do país. Quase só se transmite e propaga o já sabido, mastigado, clonado, copiado e colado. Andamos "mascando clichê", como cantaria o grupo paulistano Premeditando o Breque –o Premê–, em "Quase lindo", de 1983.

Desde o BRock –e lá se vão mais de três décadas– não surge um movimento de baixo para cima, revelando artistas (Cazuza, Renato Russo, Lobão, Leo Jaime), grupos (Blitz, Titãs, Paralamas, Legião, Barão, Kid Abelha, Engenheiros, Capital Inicial, Ira!, Ultraje) e tendências ou linguagens com tão ampla repercussão popular. O movimento mangue beat e suas consequências (Chico Science & Nação Zumbi, Mundo Livre s/a, Mestre Ambrósio, Siba, Otto, Cordel do Fogo Encantado e Lira) já bateu no guichê do mercadão fechado a inovações, tal como acontecera um pouco antes com a chamada vanguarda paulista, do próprio Premê, Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção, Grupo Rumo, Língua de Trapo, Eliete Negreiros, entre outros.

O reconhecimento desses artistas deu-se –quando aconteceu– a conta-gotas. As exceções nessa transversal do tempo se confirmam, como tal: Skank, Sepultura, Cássia Eller, Los Hermanos, Marisa Monte, Lenine, Mônica Salmaso, Chico César, Zeca Baleiro, Vanessa da Mata, Seu Jorge, Planet Hemp, Zélia Duncan, Racionais MC's, Moska, O Rappa, Ana Carolina, Carlinhos Brown. Todas à custa de muita ralação -e, em alguns casos, a concessões ao banal.

Vedar o acesso do experimentalismo à mídia principal equivale a fechar os laboratórios que impulsionam o avanço das descobertas científicas e tecnológicas. O grande público precisa entrar em contato com propostas diferentes, aptas a abrir horizontes estéticos. Abaixo o tabu redutor que confina as classes menos favorecidas economicamente ao brega acachapante!

Boa parte da sofisticação da MPB foi erigida graças a luminares proletários, como o pedreiro Cartola, o PM Nelson Cavaquinho, o sanfoneiro da zona do meretrício Luiz Gonzaga, o padeiro Jackson do Pandeiro, o peão de obra João do Vale, o motorista da limpeza urbana Geraldo Pereira, o chofer de ambulância Moreira da Silva, a táxi-girl Elizeth Cardoso, a favelada Elza Soares, o apontador do jogo do bicho Zeca Pagodinho, a filha de porteiro Doris Monteiro.

Considerado um movimento elitista, que graças à abertura dos meios de comunicação na época espalhou-se pelo país e fecundou carreiras de gente como Edu Lobo, Chico Buarque, Elis Regina, Wilson Simonal e Jorge Ben, a bossa nova partiu da fusão do samba e o jazz, promovida pelo filho de empregada doméstica Alfredo José da Silva, o Johnny Alf. Outro filho de empregada doméstica, Milton Nascimento, fincou os alicerces do requintado –e também popular, não há incompatibilidade– Clube da Esquina. Fora com os preconceitos estéticos!

É lugar comum dizer-se que a MPB parou no tempo, vive de nostalgia. "Depois deles não apareceu mais ninguém", como cantou o sarcástico Belchior. Confunde-se a proibição implícita do acesso de artistas com propostas novas a mídia principal com o crepúsculo da chamada linha evolutiva, que pode seguir diversos caminhos, quase nunca cartesianos. Há uma pujante nova geração de artistas de sintaxes variadas em febril atividade em São Paulo, por exemplo.

Gente como os rappers Criolo e Emicida, explorando novas alternativas para o gênero; o núcleo Passo Torto (Rômulo Fróes, Rodrigo Campos, Kiko Dinucci, Marcelo Cabral e mais Juçara Marçal, Thiago França) de recentes discos com Elza Soares e Ná Ozzetti (ex-Grupo Rumo), e muito mais. Cantoras e/ou autoras como as emigradas Karina Buhr, Márcia Castro, Barbara Eugênia, e as locais Tulipa Ruiz, Céu, Tiê (raro caso de sucesso pela inclusão de sua versão, "A noite", na trilha da novela global "I love Paraisópolis"), Anelis Assumpção, Mariana Aydar, Ana Cañas, Fabiana Cozza, Luciana Alves, Ligiana Costa. Cantores/autores como Thiago Pethit, Gui Amabis, Tatá Aeroplano, Dudu Tsuda, Pélico, Renato Braz, os músicos/autores Chico Pinheiro, Marcelo Jeneci, o dublê de ensaísta Zé Miguel Wisnik, o gaúcho radicado Filipe Cato. E grupos nucleares como Cidadão Instigado, Instituto, Vespas Mandarinas, Filarmônica de Pasargada, e o desmembrado 5 a Seco.

No Rio, uma cena floresce a partir do renascimento da Lapa, das Orquestras Imperial e Voadora, não apenas em torno do samba e do choro (Teresa Cristina, Roberta Sá, Moyséis Marques, Rodrigo Maranhão, Edu Krieger, Alfredo del Penho, Marcos Sacramento, Grupo Semente, João Callado, Nina Becker, Sururu na Roda e Nilze Carvalho). Desvelam searas próprias também Thiago Amud, Edu Kneip, Letuce, Armando Lobo, Antonia Adnet, Suely Mesquita e o recém chegado Julião Pinheiro, filho de Luciana Rabello e Paulo César Pinheiro.

Isso sem contar a nova leva de instrumentistas virtuoses, despidos de pompa ou circunstância, de lá e cá, como Hamilton de Holanda (e seu dançarino Baile do Almeidinha), Yamandu Costa, Luis Barcellos, Bebê Kramer, Rogério Caetano, Luiz Filipe de Lima, André Mehmari, Quarteto Maogani, Toninho Ferragutti, Kassin, Domenico Lancellotti, Arismar e Thiago Espírito Santo, Zé Paulo Becker e o Trio Madeira Brasil, incluindo violeiros como Neymar Dias, Ivan Vilela e Paulo Freire. 

Por falta de espaço, cometo injustiças e peco por omissões, até porque há cenas robustas como essas em muitas outras capitais e cidades brasileiras. A pergunta é: por que frequentam apenas a compreensível pulverização dos sites, blogs e redes sociais da internet, e estão banidos da mídia central? Até quando "o Brazil desconhecerá o Brasil", como satirizavam Aldir Blanc e Mauricio Tapajós, em "Querelas do Brasil", já em 1978?

  • O texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL
  • Para enviar seu artigo, escreva para uolopiniao@uol.com.br