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Ao comemorar fim da crise hídrica, governo de SP encobre problemas

Especial para o UOL

22/03/2016 06h00

Com as fortes chuvas que marcaram o período de dezembro a março, as notícias sobre a crise hídrica no Sistema Cantareira têm se centrado em novas questões. A iminência de uma catástrofe hídrica, que dominou o noticiário em 2015, foi substituída pelas notícias sobre a saída do volume morto, a redução do racionamento feito pela Sabesp, o aumento do consumo de água e a recente declaração do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, sobre o fim de crise da água na maior cidade do país.

Ninguém em sã consciência pode lamentar ou não festejar o volume de chuvas acima da média, que tem contribuído para a recuperação, ainda que de forma lenta, de um dos mais importantes mananciais a fornecer um dos insumos mais vitais para o dia a dia da cidade. Mas, o que poderia ser considerada uma boa notícia, revela mais uma vez a falta de uma política de racionalização do consumo da água e melhoria de instrumentos públicos para uma efetiva gestão dos recursos hídricos.

A comemoração apressada encobre diversos desafios a serem enfrentados no futuro. Especialistas alertam que, para que a crise não se agrave durante o período de seca, é preciso continuar contando com muita boa vontade de São Pedro para garantir que o reservatório não volte a depender de sua reversa técnica ou volume morto ainda em 2016. Porém, mesmo contando com um São Pedro camarada, a gestão dos recursos hídricos no estado de São Paulo precisa ir muito além de algumas medidas até aqui tomadas, como racionamento e a definição do volume ideal de retirada do Sistema Cantareira.

A melhoria de instrumentos de gestão de recursos hídricos já existentes apresenta-se como uma oportunidade para reduzir o desperdício de água por parte dos diversos usuários desse recurso. É o caso da Cobrança do Uso da Água –instituída pela Lei Federal No. 9.433/1997, que determinou a criação da Política Nacional de Recursos Hídricos–, que tem como objetivo estimular o uso racional da água em diversos setores. A cobrança do uso transforma a água de um bem livre de custo para a agricultura ou indústria em um bem com valor econômico. Dois princípios fundamentam a cobrança: o poluidor-pagador e o usuário-pagador. No primeiro caso, o consumidor paga pelos efeitos adversos causados sobre a qualidade de água, enquanto no segundo caso cobra-se do usuário por se apropriar de um recurso considerado público.

Importante destacar que essa cobrança nada tem a ver com as tarifas de água cobradas pela Sabesp por seus serviços de fornecimento de água e esgoto. Trata-se um instrumento econômico de gestão ambiental que possibilita que os usuários que mais investem em reúso de água, reduzindo seu consumo e geração de efluentes, incorram em um custo relativamente menor do que aqueles que não aprimoram a gestão de seus recursos hídricos. Além disso, a lei prevê que os recursos arrecadados com esse instrumento retornem obrigatoriamente à bacia para investimentos na melhoria da qualidade e disponibilidade de água na região.

Uma região considerada referência nacional na aplicação deste instrumento é a bacia dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (bacia PCJ).Localizada em uma das regiões mais desenvolvidas do Estado e do País, a bacia PCJ enfrenta graves problemas de água em função do grande consumo associado ao desenvolvimento urbano-industrial e agrícola, e pelo fato de parcela considerável do recurso hídrico disponível ser revertida para o Sistema Cantareira.

Em 2006, iniciou-se a cobrança federal dos rios da união e, em 2007, a cobrança estadual dos recursos hídricos do Estado de São Paulo. Um dos aspectos importantes desta cobrança é o preço muito reduzido para o acesso a um recurso natural tão valioso e escasso na realidade atual. De 2006 a 2014, usuários pagaram cerca R$ 0,01 por m3 para captação de água bruta e lançamento de efluentes, e R$ 0,02 para o consumo de água bruta. Em 2015, os valores foram alterados para R$ 0,018, R$ 0,1175, e R$ 0,0235, respectivamente.

Com tais valores, os impactos financeiros sobre os usuários são praticamente insignificantes. Pesquisa feita em coautoria com Carla Caruso e Pedro Jacobi, publicada na Revista de Administração Pública, sobre o impacto da cobrança no setor industrial no PCJ, revelou um desembolso médio do conjunto de empresas de cerca de R$ 10.000. Um olhar mais individualizado mostrou que uma das empresas do cadastro de contribuinte com faturamento anual superior a R$ 60 milhões gastou 0,04% deste valor com a cobrança, ou seja, R$ 24.000.

Difícil imaginar que tal custo possa estimular os setores industrial, agrícola e de abastecimento a ter como prioridade reduzirem de forma radical o consumo e desperdício de recursos hídricos. Um olhar mais amplo e sistêmico da problemática da água em todo o Estado de São Paulo e o aprimoramento de seus instrumentos podem tornar as medidas atuais, emergenciais e paliativas, em uma gestão estratégica focada na sustentabilidade hídrica.

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