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Ao ignorar religião, EUA distorcem combate ao terrorismo

Especial para o UOL

29/06/2016 06h00

O ataque de Orlando, na Florida, ressuscitou questionamentos sobre a essência e as táticas do terrorismo. Enquanto nos EUA o debate se tornou altamente politizado ­–com os argumentos dos candidatos, Trump e Clinton, reforçando retóricas ligadas às suas agendas políticas–, os reais desafios e perigos permanecem apagados, fora da pauta de discussões.

Uma das maneiras de se entender os grupos terroristas internacionais é pelo viés organizacional. Nessa visão, terroristas não são nada mais do que uma organização criminosa internacional. Contudo, essa simples definição limita muito a compreensão dos seus objetivos e também elimina um dos aspectos fundamentais desse tipo de violência: a política.

Porém, mesmo que se inclua tal faceta, ainda faltam-nos elementos capazes de explicar o sucesso da ideologia –promovida por grupos como o Estado Islâmico– que atrai e mobiliza tantos simpatizantes dispostos a morrer pela sua causa.

Contexto histórico

No início dos anos 1990, o terrorismo incorporou o fundamentalismo religioso como um novo fator ideológico. Desde o fim da Guerra Fria, o número de vítimas por conflitos religiosos modernos –ou por conflitos que envolvam religião– vem crescendo. Apesar de nem todos poderem ser classificados como de um fundamentalismo religioso, o fato é que a religião, como uma fonte de motivação e de identidade, substituiu antigas ideologias, como o nacionalismo, o marxismo ou o anticolonialismo.

Talvez o ponto mais chocante e também curioso, ligado ao fenômeno do fundamentalismo religioso, seja o de entender como que um sistema de valores –nos moldes do que as religiões representam– destinado a prover tranquilidade, paz e amor, possa ser usado para produzir terror, destruição e morte.

A doutrina religiosa fundamentalista tem fornecido não somente a ideologia que justifica seus atos mas também a motivação e a estrutura organizacional para seus seguidores. Em outras palavras, como é possível explicar essa paradoxal atração entre violência e religião?

Muitos vão caracterizar a relação entre violência e teologia como uma aberração, fruto de uma ideologia política ou de uma mutação esquizofrênica da essência religiosa promovida por formas de fundamentalismos. Entretanto, é prudente questionarmos a razão pela qual tais movimentos ou grupos fundamentalistas têm sido capazes de, somente usando discursos extremistas, continuar atraindo pessoas para a morte.

Ou seja, explicar o sucesso do fundamentalismo religioso como sendo apenas um produto de uma ideologia fanática e deslocada de tudo que a religião prega, parece-me insuficiente para entendermos a penetração da mensagem extremista. É evidente que esses ímpetos de violência necessitam estar substanciados em um nível mais profundo da psique humana e, principalmente, do imaginário religioso.

Dentro da história das tradições religiosas, desde as guerras bíblicas, até as Cruzadas e os grandes atos de martírio, a violência esteve presente em sombria espreita e coloriu os símbolos religiosos mais misteriosos. Imagens de morte nunca estiveram fora das ferramentas do poder religioso para mexer com a mente de seus fiéis. Dentro da mesma lógica, não podemos deixar de lado que muito do imaginário religioso foi construído ao redor da ideia de vida após a morte.

As religiões também falam amiúde sobre guerras cósmicas, invocando grandes batalhas metafisicas entre o bem e o mal. Este é um drama participativo que exemplifica –e, portanto, explica– os aspectos mais profundos da vida. Da luta divina ao serviço de batalhas políticas mundanas, fundamentalistas se utilizam de imagens religiosas, cujos incidentes de violência carregam o roteiro da guerra cósmica. Por exemplo, tanto Al Qaeda como Estado Islâmico usam a guerra santa contra o Satã.

Nesse sentido, os atos terroristas podem tanto ser eventos performáticos, ao buscarem fazer uma declaração simbólica, como atos performativos, quando tentam mudar algo. Rituais públicos são tradicionalmente parte do universo religioso. Essa é uma das razões pelas quais performances violentas são tão naturais para ativistas fundamentalistas, afinal, no ritual religioso, a violência é simbolicamente transformada.

Logo, os ataques terroristas são executados dentro de um processo ritualístico com o intuito de se criar eventos dramáticos que visam impressionar pelo seu significado simbólico.

A ideia do martírio também tem uma longa história dentro das tradições religiosas. Cristo foi um mártir, da mesma forma que o foi o fundador da tradição islâmica-xiita, Hasan. A dimensão do martírio está ligada à mais fundamental forma de religiosidade: o sacrífico, um rito de destruição que é encontrado em todas as religiões do mundo. Aliás, o próprio processo de destruição é espiritual, e a etimologia da palavra o explica. Sacrificium tem origem no latim e significa “fazer sagrado”.

Combate ao terror

Parte do problema em se combater o terrorismo fundamentalista –e especificamente o Estado Islâmico– está em entender que suas motivações e sua doutrina inspiradora são principalmente teológicas, e não somente geopolítica. Pressões geopolíticas não têm o mesmo efeito sobre um “estado islâmico”, como o teriam diante de um estado político convencional. O discurso radical do Estado Islâmico retrata a crise regional do Oriente Médio como parte de uma guerra sectária e apocalíptica, cuja utopia sunita do seu califado é o antidoto.

Outra mudança que é necessária no combate ao fundamentalismo demanda uma expansão do conceito de ideologia, que é puramente baseado em estruturas ou grupos políticos e econômicos. É preciso incluir a moldura teológica na análise para englobar aspectos espirituais que são capazes de exercer influência. Por exemplo, ao ignorar o elemento teológico-apocalíptico que motiva os lobos solitários e, em vez disso, enfatizar a regulamentação da venda de armas ou então banir imigrantes, Obama e Trump reforçam a simplificação dos desafios e distorcem as políticas de combate à ameaça fundamentalista.

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