A United e a lista do Fachin
A retirada violenta de um passageiro da companhia aérea United Airlines, com o rosto sangrando - e todo o maremoto de repercussão mundial negativa que se seguiu - nos oferece a oportunidade de refletir o funcionamento das engrenagens de como pensam e como agem os tomadores de decisão e as corporações nessas horas. Trabalhei durante seis anos no setor aéreo como consultor de crises de comunicação. E o gerenciamento de crises é um dos pilares mais treinados e observados por esse segmento.
Você pode se perguntar: como uma estupidez como essa pode acontecer e se propagar se as empresas e os funcionários são tão treinados? Meu objetivo aqui é tentar quebrar a cadeia de DNA do processo decisório por trás de incidentes como esse. Será uma análise um tanto fria. Deixo registrada minha solidariedade para o passageiro, mas cessa aqui o populismo de desancar as corporações e me alinhar com os vulneráveis usuários. Meu propósito é fazer quase um laudo cadavérico do episódio, para que você possa compreender melhor como as peças desse dominó vão desabando e derrubando as outras, sucessivamente.
Primeiro dominó: os regulamentos americanos permitem que passageiros sejam retirados, espontaneamente e em último caso não, por necessidade da malha aérea. Imagine: são milhares de voos por dia. De vez em quando, uma tripulação precisa ser colocada num voo para que outros passageiros, em outro lugar, possam chegar aos seus lares. Naquele caso especifico e mundialmente famoso agora, ninguém quis ceder o lugar. O comandante decide que alguém vai sair. Escolhem o pobre médico, que se recusa. A polícia do aeroporto usa de força desmedida. Alguém filma tudo. A fogueira da combustão mundial está prestes a ser deflagrada.
Segundo dominó: o assunto ganha as redes. O presidente da companhia - que não é nenhum idiota nem um ser desumano - lança um comunicado falando para um público que precisa atingir. Qual? O público da própria companhia. Afinal, diariamente, depois daquele incidente, a companhia irá lidar com situações semelhantes, necessidades semelhantes: a de acomodar tripulantes em voos para atender passageiros. O presidente sabe disso e não pode ser populista. Tem de falar que a empresa agiu de maneira correta, seguindo os padrões corretos. Poderia falar o contrário pensando no público externo? Poderia, claro. Mas estaria dizendo para seu exército uma coisa muito simpática, mas que é o contrario que na páatica da linha de frente eles precisariam ouvir do comandante, na batalha real do dia a dia.
Terceiro dominó: a fala sensata do presidente (sensata levando em conta os milhares de colaboradores de uma empresa complexa e com milhares de voos e passageiros para administrar) só torna as coisas piores. O público externo, ou seja, o planeta Terra, ouve aquilo como uma peca de arrogância, barbaridade, desumanidade. Resultado? Horas depois, o presidente solta uma nota "fofa", enunciando todas as platitudes típicas de uma nota oficial de contenção de danos. Pede desculpas, mostra-se solidário, bla, bla, bla, bla. Por mais contraditório que pareça, da mesma forma que a nota original fazia sentido dentro de uma perspectiva estratégica de dar uma orientação para a continuidade dos negócios e para dar uma linha para os colaboradores, a segunda nota fazia sentido: era uma questão de sobrevivência diante do caos. E para sobreviver as pessoas e as empresas fazem qualquer coisa.
A United perdeu valor na Bolsa, teve sua marca desgastada, virou símbolo momentâneo de polêmica. O gerenciamento de crises é um campo da comunicação voltado exatamente para lidar com esse trepidante tobogã de emoções que eclodem quando polemicas vêm a público. Há uma série de preceitos e medidas para balizar os tomadores de decisões em horas como essa.
Mas o fundamental que destaco aqui - e daí a menção à lista do ministro Fachin que não tem nada a ver com isso, naturalmente - é a natureza dos processos de crises de imagem nos dias de hoje. Vivemos uma era chamada Revolução Tecnológica. E todas as vezes em que o mundo experimentou saltos tecnológicos houve mudanças de comportamento e, consequentemente, transformações éticas.
A revolução tecnológica chamada agricultura impulsionou o fim do canibalismo e o valor ético da vida passou a ser mais respeitado. A revolução industrial impulsionou o fim da escravidão e o valor ético da liberdade ganhou força. Todo o escândalo da United começa com a imagem filmada pelo passageiro no celular e propagada pelo mundo todo. Na revolução tecnológica, todos estamos mais próximos dos outros. A comecar os nossos erros. E tudo visto mais de perto fica maior. Não é só uma questão de ótica. Essa nova ótica esta produzindo uma nova ética. Seja para as companhias aéreas, seja para os grampos, as planilhas, as delações. Há um novo mundo entre nossas rotinas e nossas retinas.
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