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Quem fiscaliza o Ministério Público?

17/08/2017 13h44

Em editorial publicado no último dia 30 de julho ("Procedimento não é inquérito"), o jornal "O Estado de S. Paulo" suscitou uma questão bastante tormentosa, a respeito de uma indevida utilização de procedimentos administrativos preparatórios de inquérito penal pelo Ministério Público.

Noticiou-se que somente no âmbito da força-tarefa da Operação Lava Jato na Justiça Federal de Curitiba, mais de 200 inquéritos e procedimentos dessa natureza estariam aguardando uma conclusão.

Como bem destacado pelo periódico, tornar tais procedimentos em inquéritos disfarçados implica abuso, pois permite que parte da atividade persecutória estatal permaneça fora da égide da lei processual penal.

Não se trata de um problema exatamente novo para quem milita na área penal, pois tal prática é comum na atividade policial, normalmente designada por Verificação Preliminar de Informação (VPI). Na teoria, tratar-se-ia de um procedimento informal de levantamento de informações antes da instauração do inquérito policial. Na prática, trata-se de um expediente comumente utilizado para condutas pouco republicanas – para dizer o mínimo –, visto que pode ser instaurado e arquivado pela própria autoridade policial, sem qualquer tipo de controle por outros órgãos (Ministério Público ou Poder Judiciário).

A título comparativo, vale lembrar, por exemplo, que o inquérito policial somente pode ser arquivado por despacho judicial, após manifestação do Ministério Público. Em uma VPI, nada disso ocorre.

De se notar que inexiste esse procedimento na legislação processual penal brasileira, trata-se de uma criação do cotidiano da atividade policial, podendo ser considerado ilegal na medida em que toda a atividade persecutória estatal deve contar com expressa previsão legal, em respeito à garantia do devido processo legal (artigo 5º, LIV, da Constituição Federal).

Agora, conforme revelado por "O Estado de S. Paulo", essa prática ilegal tem sido reproduzida pelo Ministério Público, com uma agravante: diferentemente da atividade policial, a qual está submetida a um órgão de controle externo (artigo 129, inciso VII, da Constituição Federal), a atividade ministerial não conta com fiscalização equivalente.

Isto significa que não há órgão de controle com atribuição constitucional ou legal para fiscalizar essas atividades que vem sendo realizadas pelo Ministério Público. Daí que "procedimentos" são instaurados e mantidos tramitando sem qualquer tipo de controle formal ou material, ao contrário do que ocorre com um inquérito policial, submetido aos preceitos da legislação processual penal.

Tal preocupação não é inócua. Do contrário (e de modo exemplificativo), ao editar a Resolução n. 63/09, que trata da tramitação direta de inquéritos policiais entre a Polícia Federal e o Ministério Público Federal, o Conselho da Justiça Federal não teria previsto expressamente que o MPF deve disponibilizar ao público em geral "acesso eletrônico às informações referentes ao andamento dos inquéritos que lhe forem diretamente encaminhados, resguardado o direito à intimidade dos investigados e das vítimas nos casos de publicidade restrita judicialmente decretada" (artigo 6º, § único). Ou seja, ao disciplinar a tramitação direta de inquéritos policiais entre a PF e o MPF, excluindo a passagem pelo Poder Judiciário para meros requerimentos de dilação de prazo, o Conselho da Justiça Federal teve a preocupação de determinar que seja franqueado acesso às informações pelo público justamente como forma de controle da atividade de investigação, salvo os casos de publicidade restrita.

Ademais, invariavelmente as polícias contam com ouvidorias externas, as quais contribuem com a fiscalização de sua atividade, o que não ocorre com os Ministérios Públicos.

Conforme alerta feito pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais no editorial de seu Boletim n. 297 (Agosto/2017), tampouco os Conselhos Nacionais suprem esse deficit de controle externo: "Os Conselhos Nacionais dedicados à realização de algum controle contam com a participação minoritária da sociedade civil e, ainda, sem amparo em critérios de externalidade para a indicação dessa representação."

A bem da verdade, esse é um dos efeitos colaterais do julgamento do Recurso Extraordinário n. 593.727 pelo STF em 2015, quando foi reconhecido que o Ministério Público tem poderes para promover investigações de natureza penal por conta própria, afastando a exclusividade da polícia.

Em que pese a Corte ter definido que tal atividade investigatória não impede o controle jurisdicional dos atos do órgão ministerial, é certo que isto não equivale ao controle externo regularmente exercido sobre a atividade policial.

O desenho institucional feito pelo legislador constituinte tem uma razão de ser. Buscando um equilíbrio na atividade persecutória estatal, a Constituição Federal separou as funções de investigar, acusar, defender e julgar, de modo que a decisão do STF, infelizmente, provocou um desarranjo nesse modelo.

De lá para cá, observa-se uma clara hipertrofia dos poderes do órgão ministerial, o qual tem procurado esvaziar o papel da polícia judiciária, especialmente nos casos de repercussão midiática, promovendo por sua conta a investigação preliminar.

O problema é que, conforme alerta o adágio popular, "o uso do cachimbo entorta a boca", o que já se pode perceber pela reprodução (pelo Ministério Público) daquela mesma prática reprovável da atividade policial de utilizar expedientes prévios como forma de não se submeter à legislação processual que disciplina a investigação de natureza penal.

Como já dito, a Constituição Federal estabelece que o Ministério Público fiscaliza a Polícia, mas resta a pergunta: quem fiscaliza o Ministério Público?