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Meu pai e o ocaso do individualismo

14/06/2019 15h17

No último dia 26 de maio, um domingo, faleceu meu pai, Calixto Salomão.

Rara mistura em vida de alegria, ação e inspiração. Tudo isso só possível por um amálgama poderoso e escasso no mundo de hoje. A solidariedade e o pensamento no outro.

Nunca colocou a própria carreira ou vaidade à frente de sua imensa alegria de ver os outros, irmãos, filhos ou netos crescerem e se destacarem. Nunca mediu esforços ou economizou ações para ajudá-los, mesmo postergando ou abdicando de ambições próprias.

A tríade completa-se naturalmente. Da alegria pelo outro, à ação concreta para ajuda-lo, e daí naturalmente à enorme influência inspiradora sobre todos que com ele conviviam. Para uma grande pessoa em todos os sentidos, que facilidade inspirar naturalmente crescimento pessoal e profissional aos seus próximos, todos cedo ou tarde congregados no intuito inconsciente de completá-lo e satisfazer as suas aspirações.

De inspiração serve também para vôos mais abstratos, até teóricos. Particularmente em um mundo onde o individualismo como doutrina filosófica e prática reinou nos últimos dois séculos. As consequências são bem conhecidas e se revelam em tantos problemas a ameaçar nossa própria existência como espécie, desde a escassez cada vez mais grave de recursos naturais por força de sua pilhagem destrutiva ao redor do mundo até a distribuição de renda ao inverso, criando padrões de riqueza e pobreza insustentáveis a médio ou talvez até curto prazo.

Todo o arsenal teórico construído nos últimos 200 anos com o nome de ciência parece inútil para combatê-lo. Na economia, neoclássicos, marxistas, institucionalistas e mesmo estruturalistas parecem chocar-se e sucumbir diante da mesma barreira intransponível. Pensando em grandes movimentos históricos, agregados econômicos, ou mesmo construções institucionais não tem instrumentos para lidar com o impulso individualista que destrói, corrompe ou acaba por gerar novos centros de poder, auto centrados e excludentes em cada instituição ou estrutura nova apresentada.

No direito há quadro sinistro semelhante. Teorias da justiça, como a arte do bom e do justo romana, o procedimento democrático e transcendente dos ius realistas ou a correção das grandes injustiças dos liberais parecem ideais teóricos sem ressonância prática, na presença ensurdecedora do individualismo das grandes codificações e do positivismo jurídico. Este, enclausurando a realidade em códigos autointegrados, protege e blinda a realidade reconhecida pelo direito contra interesses externos, contra a consideração do outro. Um complexo edifício sistemático e lógico erigido que pouco serviu para sanar injustiças, ao contrário foi e é instrumento de sua criação.

Finalmente na filosofia, as grandes teorias unitárias do século XIX foram substituídas por teoria racionais ou da linguagem. Em palavras cruas, os fundamentos da existência humana se deslocam de concepções integradoras do ser e do dever ser, algo por natureza contrário ao individualismo metodológico para a desintegração total do século XX, que reparte de uma lado o ser (a chamada ontologia), ora por conta das teorias da linguagem e de outro o dever ser, a cargo do racionalismo metodológico, pedra de base de todas a construção iluminista individualista.

Em síntese, integrado a uma engrenagem história, econômica, filosófica ou jurídica o homem perde seu maior valor: a capacidade de ação colaborativa. Como peça de uma máquina é condenado a uma ação mecânica, individual e não colaborativa.

Ocorre que a civilização não pode esperar por outra engenhoca social, mais humana. Problemas como a escassez são iminentes e nos ameaçam de extinção.

Nesse sentido o exemplo de vida de meu pai é realmente inspirador. É rico material para bela elaboração teórica que transcende essas linhas. Da alegria pelo outro, à ação concreta e sucessivamente à inspiração coletiva.

Posso ver o sorriso tímido do velho advogado lá de cima ao ver seu exemplo de vida transformado em inspiração teórica. Vá em Paz. Saudade eterna.