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OPINIÃO

Nota de ódio

Getty Images
Imagem: Getty Images

13/05/2021 04h00

Sempre me apresento como educadora, pernambucana e deputada estadual por São Paulo, mas hoje vou falar do lugar da revolta que habita na pessoa que vem antes da parlamentar. Quem quiser que se inflame. Tenho em mim muita fúria e ódio.

Entretanto, não confundam o ódio do colonizado com o do colonizador.

Meus sentimentos são amarrados e polidos pelas regras institucionais criadas e mantidas para aqueles que têm comida na mesa, dinheiro em suas contas e paz de espírito ao se deitarem em seus travesseiros.

Ocorre que esta paz de espírito é de quem lava as mãos diante de um sistema nefasto e de uma gestão perversa que há 133 anos é capitaneada por egoístas mergulhados em privilégios.

Eu odeio o desprezo que o Estado brasileiro tem por nós. Todos sabemos que o Brasil é um purgatório, e não culpo os brasileiros por isso, mas sim aqueles poucos que expropriaram, e ainda expropriam, as riquezas que poderiam SIM ser distribuídas. Culpo aqueles que descendem das primeiras naus e seguem o fluxo.

Estamos em um país extremamente violento, uma violência praticada por quem, na gestão do biopoder, deixa gente com fome, sem trabalho, sem moradia e, agora, sem vacina.

Eu quero que se dane a polidez dos homens sensatos que sentam para fazer reuniões inúmeras, mas, na prática, os problemas persistem. O desrespeito às vidas pretas, periféricas e faveladas é tamanho, que aqueles que decidem o ritmo das máquinas de chacinas necropolíticas passam por cima até mesmo de seus similares, ao ignorarem a ADPF 635, chamada de ADPF das Favelas, que há um ano tentou frear o genocídio —uma trégua, pelo menos durante a pandemia—, mas que, recentemente, levou 28 vidas em uma chacina oficialmente —e erroneamente— nomeada de 'operação'.

O que chamaram de quebra de correntes, na realidade, foi um golpe de foice contra a população negra escravizada durante três séculos no Brasil. Romperam-se as amarras físicas. Cento e trinta e três anos depois daquele 13 de maio de 1888, a ferida aberta ainda sangra na naturalização de uma sociedade escravocrata, que exclui e mata o povo preto.

Eu quero que se dane toda hermenêutica, arcanos do inteiramente outro, política de negociatas. Precisamos de resoluções e sabemos que a questão não é dinheiro, pois isso há —e demais. O que não há é vontade por parte da maioria daqueles que se sentam nas cadeiras de onde as decisões são tomadas.

Minha avó sempre falava: a merda que bate na água, a água da merda bate na bunda. Isso não é uma ameaça, nem um aviso, é física e lógica matemática. E já vemos acontecer.

Eu organizei o ódio que me introjetaram; transformei em intelectualidade, arte e poesia. Mas, toda vez que me ouvirem falar com muitos termos, creiam: queria mandar tudo para a casa da desgraça!

* Erica Malunguinho é pernambucana, artista e educadora. Mestra em estética e história da arte, tornou-se a primeira deputada estadual trans eleita no Brasil, em 2018.