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OPINIÃO

Doria cria 'negacionismo gourmet' ao fazer coletiva com sintomas de covid

Rouco, governador João Doria disse estar com coriza em coletiva de imprensa na última quarta (14) - Reprodução
Rouco, governador João Doria disse estar com coriza em coletiva de imprensa na última quarta (14) Imagem: Reprodução

Evaldo Stanislau Affonso de Araújo

Especial para o UOL

18/07/2021 04h00

"Obrigado pela preocupação comigo, se é esse seu interesse. Estou resfriado e com coriza", assim respondeu o governador João Dória (PSDB) ao repórter que, bom aluno que tem sido, aprendeu que na pandemia estar sintomático — além de todos os demais — é motivo para ficar em casa isolado.

No dia seguinte, o atual prefeito de São Paulo refere que almoçou com o governador já quando ele estava com covid-19. Mas que estava bem porque tinha feito um teste que estava negativo. Esse faltou na aula. A depender de quando foi feito e do tipo do teste, um não basta. Convém manter o isolamento preventivo e repetir a investigação. Ainda mais em tempos de pré-Olimpíadas, quando a "Usain Bolt" das variantes está por aqui, a Delta.

Os dados até agora conhecidos asseguram que essa é uma variante não apenas ultraveloz mas, sobretudo, que precisa de pouca exposição para se transmitir. Então, um breve encontro e um leve descuido já são suficientes para nos expor a riscos. Por essa razão, esquecer o básico — máscara, distanciamento, renovação de ar, higiene e isolamento quando sintomático — nesta altura do campeonato merece uma reflexão.

Ao longo da pandemia, conhecemos vários tipos de pessoas. Nós, os infectologistas, fomos batizados carinhosamente da "turma do fique em casa". Aqueles que não acreditam em nada do que está aí, que pensam que tudo é uma grande conspiração da China para dominar o mundo, e que são — no tamanho dos gestos ou na virulência das palavras —, verdadeiros brucutus, pertencem aos "negacionistas raiz". Você os identifica com facilidade. Procure a máscara. Se não a encontrar ou se ela estiver em qualquer lugar que não seja cobrindo o nariz, a boca e bem ajustada ao rosto, bingo, você encontrou um deles.

Tem também a turma de novos cientistas, os "cloroquiners". Leigos na arte da Medicina e Saúde, ou não, têm em comum terem assistido lives, participar de grupos do zap ou acessado artigos científicos (se bons ou ruins, tanto faz, está publicado, logo, verdadeiros).

E, característica em comum com os "negacionistas raiz", acreditam em uma conspiração da indústria farmacêutica tradicional que não quer que se descubra que o "kit covid" só não salvou o mundo porque ela, a Big Pharma, em conluio com a imprensa vendida e os infectologistas não deixaram!

Com o advento das vacinas, "negacionistas raiz" e "cloroquiners" dividiram-se. Uns mantiveram-se firmes a suas crenças. Outros, renderam-se às evidências — com condições: não seria qualquer vacina que tomariam. Tinham que ver procedência, métodos de fabricação, segurança e, sobretudo, se permitiria ir logo passar as férias em Miami. Isso apesar do dólar nas alturas.

Aproveitaram de seu recém-adquirido conhecimento "científico" para ler e interpretar resultados publicados nas correntes de WhatsApp e outras redes sociais. E, lá, viram que tem vacina pior e melhor. Aqui vale um mea-culpa: nos comunicamos mal. De forma geral, não enfatizamos o quanto devíamos que o que vale é diminuir mortes e internações.

Esse capítulo das vacinas foi contaminado por ruídos, muitos dos quais a CPI da Covid, em curso no Senado Federal, começa a explicar. Legitimamente, até pessoas que mantiveram sua neutralidade, alheias aos grupos citados, ficaram em dúvida. Daí a virar um "sommelier de vacina" era demais. E, pior, há os "sommeliers" que usaram a onipresente Lei de Gerson e buscaram brechas do Sistema para somar doses até alcançar a vacina de sua preferência.

Voltando ao episódio narrado na abertura deste artigo, quando pensamos que já tínhamos visto de tudo, ocorreu-me que não. Temos muita gente que seguiu todas as orientações até aqui. Ainda as segue. São pessoas educadas, em geral cultas, e que compreendem todas as boas informações que circulam pelo nosso cotidiano. Vacinaram-se ou o farão, corretamente, com a vacina que estiver disponível. Entendem que o importante é agir coletivamente para salvar vidas e reduzir a circulação viral.

Mas, em que pese, muito diferentes dos negacionistas raiz, têm em comum um pensamento mágico: comigo não! Meu nariz escorrendo e entupido? Rinite. No máximo um resfriado. Em "petite comité" com meus pares, todos vacinados, almocemos ou nos reunamos, sem máscaras. Esquecem que as vacinas não são absolutas, que as variantes nos desafiam e que o be-a-bá da prevenção segue firme.

Um pensamento mágico os transforma nos "negacionistas goumert". Suaves, educados, mas, negacionistas que se recusam a acreditar que qualquer sintoma importe em meio a uma pandemia (que, se acabou, alguém por favor me avise, porque estou mal informado).

Estamos nos animando, isso é bom, traz esperança. Mas ainda é cedo. Faltam vacinas no mundo, as variantes continuam a nos desafiar, milhares de casos e mortes continuam a ocorrer diariamente e os "negacionistas raiz", "cloroquiners" e "sommeliers" seguem firmes. Não podemos perder de vista que as medidas não medicamentosas básicas não mudaram: máscara, distância, ar renovado, higiene.

A elas, somou-se agora o vacinar, já tendo passado da hora do testar, isolar e rastrear — o que nunca fizemos bem no Brasil.

Tudo que não precisamos neste momento são maus exemplos de quem tem mais acertado do que errado, mas que, por esse pensamento mágico tão perigoso, ou por cansaço, logo agora que temos uma expectativa, vire um "negacionista gourmet". E não são poucos.

Esse episódio narrado evidencia, tristemente, o caso de uma liderança pública, mas, se olharmos para o lado — ou, quem sabe, para o espelho—, veremos o quão numerosos são. Cuide-se, o pior ainda não passou.

*Evaldo Stanislau Affonso de Araújo é Assistente-Doutor da Divisão de Moléstias Infecciosas e Parasitárias do HC-FMUSP (Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo), professor universitário, consultor em Saúde e diretor da Sociedade Paulista de Infectologia.