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Caso Durval Teófilo: Nossa luta cotidiana é provar que somos inocentes

Durval Teófilo Filho, 38, foi assassinado quando chegava em casa do trabalho - Reprodução/Facebook
Durval Teófilo Filho, 38, foi assassinado quando chegava em casa do trabalho Imagem: Reprodução/Facebook

Jeferson Tenório*

05/02/2022 22h23

Imagine que você trabalhou o dia inteiro e que quando o seu expediente termina tudo que você quer é voltar para casa, ver sua família, ver sua filha pequena de seis anos e poder descansar um pouco.

Ao chegar no portão do condomínio onde mora, você não consegue encontrar as chaves, vasculha com atenção a própria bolsa e nem percebe que uma arma está apontada na sua direção. Ouve um estampido e demora um pouco para perceber que foi atingido por uma bala.

Em seguida, põe a mão mais à frente, como se aquele gesto pudesse impedir os outros disparos. Você cai no chão. E ao cair, procura entender o que está acontecendo. Grita que não é bandido, que é morador daquele condomínio.

Sua vida nas mãos de um homem branco que decidiu que aquele era o momento da sua morte. É o fim. E tudo que você viveu, todas as dores e alegrias, os fracassos, os sucessos, seu casamento de 13 anos, sua consciência, tudo, tudo, se esvai em segundos.

O assassinato de Durval Teófilo Filho, um homem negro de 38 anos, morto pelo sargento da marinha Aurélio Alves Bezerra que diz ter atirado porque o confundiu com o bandido escancarou mais uma vez o ódio racial a que população negra é submetida todos os dias.

Não bastasse a violência do ato, o argumento para justificar o crime é tão nefasto e racista que só comprova que ainda estamos longe de mudar a mentalidade desse país.

Inicialmente o sargento foi indiciado por homicídio culposo (sem a intenção de matar), outro absurdo, um escárnio, pois alguém que atira três vezes num homem desarmado e que não representava nenhuma ameaça, assume covardemente a condição de assassino. No entanto, hoje, após uma revisão do Ministério Público, o indiciamento passou para homicídio doloso (com a intenção de matar).

Sabemos que a morte é imprevisível. Morrer é o nosso pedágio para ter a experiência da vida. No entanto, infelizmente para a população negra morrer é previsível no Brasil.

Parafraseando o escritor James Baldwin, o apego ao ódio, com tanto afinco e paixão que algumas pessoas conservam dentro de si, revela uma vida sem sobressaltos existenciais, porque uma que vez que esse ódio é dissipado, uma vez que não reste mais a possibilidade de odiar, essas pessoas terão de olhar para si e enfrentar a própria dor.

Odiar o outro é um modo de viver nos rasos da vida. O ódio é essa carapuça que nos impede de mergulhar em nossos próprios infernos. O ódio que uma sociedade racista dirige aos negros é um sentimento de um país que nunca soube lidar com sua maior tragédia: a escravidão. Nunca olhou de fato para esta ferida aberta. Jogou todos os séculos de um sistema escravocrata para debaixo do tapete. Preferiu o caminho do ódio. O ódio é uma máscara hedionda. Ódio não é um sentimento aleatório. É um projeto de Estado. O ódio tem alvo e tem cor no Brasil.

O racismo é um rizoma. É fecundo. Alastra-se e multiplica-se. Invade a psique social e se instala nela. Mobiliza seus instrumentos necropolíticos, ao mesmo tempo em que imobiliza nossos passos de tal modo que nos adequamos a ele. Então, todos os dias homens e mulheres negras são obrigados a exercer interdições internas. Abrem mão de uma vida sossegada, não por escolha, mas para evitar um mal maior. Porque uma simples ida a um supermercado pode resultar numa tragédia. Sabemos disso. Já vimos isso acontecer.

Todos dos dias homens e mulheres negras precisam obedecer determinadas condutas para convencer as pessoas brancas de que não suspeitos. De que não são uma ameaça. Um homem negro não entra numa loja do mesmo modo que um homem branco entra. Porque veja bem: já somos acusados apenas por sermos negros. A cor da pele sempre chega primeiro. A nossa luta cotidiana é provar que somos inocentes por crimes que não cometemos.

Quando penso em todas às vezes em que fui abordado pela polícia, quando penso nas vezes em que tive armas apontadas para mim, nos riscos que corri, pelo único fato de ser negro, sinto que tive sorte de chegar até aqui e poder escrever este texto. Sinceramente não sei quantas tragédias conseguimos suportar. E suportar tragédias não pode ser um modo de viver. Temos que nos recusar a isso.

Nos últimos dias, tenho recebido mensagens de pessoas que compararam meu romance "O avesso da pele", lançado em 2020, com o recente assassinato de Durval. No entanto, confesso que isso me causa um certo incômodo. Pois meus sentimentos em relação ao que eu escrevo são tão ambíguos: por um lado, me sinto feliz em saber que meus personagens proporcionam momentos de reflexão sobre o racismo e sobre a violência policial e sobre a condição dos negros no Brasil, mas por outro, me sinto triste por ter escrito um livro tão próximo da realidade.

Às vezes penso também que não há mais o que fazer. É difícil ser propositivo diante de um sistema que insiste em condenar pessoas pela cor da pele. A única coisa que me ocorre e que venho repetindo há tempos é que: não existe democracia com racismo. Um país que discrimina e mata pessoas negras não é um país democrático. É um país fascista.

Não há uma solução mágica. A mudança certamente passa pela educação, pela política, mas principalmente pelo afeto. Enquanto a população branca não se afetar com a dor das vidas negras perdidas, ainda veremos outras cenas trágicas envolvendo copos negros.

*Jeferson Tenório é autor do romance O avesso da pele, vencedor do Prêmio Jabuti 2021