Topo

Democracia defensiva ou autocracia judicial?

Invasão de manifestantes ao Congresso, STF e Palácio do Planalto em 8 de janeiro Imagem: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Amanda Guimarães da Cunha*

Especial para o UOL

03/09/2023 04h00

Somos um museu de velhas novidades, já dizia Cazuza. Ou, nas palavras de Millôr Fernandes, temos um enorme passado pela frente.
Não é novidade que muitos brasileiros sempre romantizaram e defenderam o regime militar e pautas antidemocráticas, usando da desculpa de ordem e pacificação social para suprimir ideias, liberdades, instituições e até mesmo pessoas.

Entretanto, havia ainda um certo pudor em manifestá-las, o que mudou radicalmente a partir, principalmente, das eleições de 2018, quando se lançou a Presidente da República um sujeito que defendia abertamente um dos maiores torturadores da ditadura militar e ridicularizava o ocorrido.

Relacionadas

Os esqueletos saíram do armário, literalmente, impulsionados ainda pela facilidade de comunicação pelas redes sociais e o poder dos algoritmos.

Perceberam, os mais atentos, que a democratização do país e o respeito aos direitos humanos mais elementares estava longe de se consolidar em terrae brasilis.

Com a eleição de Bolsonaro e sua tentativa de reeleição em 2022, o discurso alçou patamares de descredibilização das próprias instituições e do sistema eleitoral que o elegera. Segundo o ex-Presidente, caso ele não fosse eleito, o sistema eletrônico de votação estaria fraudado e ele e seus apoiadores poderiam se insurgir contra os resultados eleitorais.

As instituições começaram a se manifestar e a reagir a esses ímpetos e, no decorrer do pleito eleitoral, passou-se a perceber um recrudescimento das instâncias judiciais de controle, em especial do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), sobre as liberdades, especialmente a de expressão.

Alguns doutrinadores, e algumas autoridades judiciais, passaram a justificar esse aumento do poder judicial na teoria de Democracia Defensiva ou Militante, surgida na Alemanha ainda durante o regime nazista e hoje positivada na própria Constituição Alemã.

Por essa teoria, em linhas gerais, as liberdades e garantias da Constituição não podem ser usadas para atacar a própria ordem constitucional e colocar a democracia em risco. Nesse contexto, as próprias instituições estariam autorizadas a utilizar de mecanismos para proteger a democracia contra quem quisesse destitui-la.

Pois bem. Com isso, chega-se a um outro impasse: quem limita os poderes das instituições nesse interim? Até que ponto podem as autoridades agir com ampliação de seus poderes, sem incorrer em arbítrio?

Em evento patrocinado recentemente pelo TSE, o ministro do Tribunal Constitucional Alemão, Josef Christ, destacou alguns pontos da teoria que valem para a reflexão que aqui se faz.

Segundo o Ministro, os instrumentos de democracia defensiva estão previstos na própria Constituição e na legislação de forma estrita e rígida, devendo-se observar uma interpretação restritiva para se evitar que haja arbítrios na aplicação das limitações e proibições porventura necessárias. Ainda, há o dever de observância à proporcionalidade, devendo-se adotar medidas mais brandas, quando suficientes para cessar a conduta atentatória.

O Ministro destacou também o dever de independência e neutralidade da autoridade judicial responsável por determinar as medidas, que deve agir sem vinculação partidária ou ideológica. E, por fim, que estes controles são efetuados de forma centralizada pela Corte Constitucional alemã.

Talvez mais antigo do que o costume de venerar ditadores, seja no Brasil a importação de teorias de direito internacional, sem observar seus devidos contornos. Não deve pairar discussão acerca da necessidade de controle sobre o contexto de ataques antidemocráticos que o país tem sofrido, mas isso não dá aval para que toda e qualquer medida seja validada, muito menos para que autoridades tenham a liberdade de fazê-las até mesmo em benefício próprio.

Nas eleições de 2022 vimos a instalação e manutenção, sem qualquer delimitação temporal, de Inquéritos Judiciais instaurados no Supremo Tribunal Federal abarcarem toda e qualquer manifestação que seria, em tese, antidemocrática e promovia desinformação não só contra as instituições, mas contra os próprios Ministros. Vimos edição de Resoluções pelo TSE ampliando a restrição sobre o uso de propaganda eleitoral na internet e possibilidade de suspensão de sites e canais de ofício. Vimos, ainda, a manutenção dessas medidas mesmo findo o processo eleitoral e uma concentração de competência no Presidente do TSE, que é o mesmo, por sinal, a conduzir o IP das fake News no STF, sem qualquer previsão legal e repetindo padrões tão criticados da famigerada Operação Lava Jato.

Com os atos de vandalismo e a tentativa de golpe de Estado ocorridos na Capital Federal em 08/01, que chocaram o país, defende-se que todas essas medidas foram não só necessárias, como insuficientes.

Entretanto, quando voltarmos à normalidade, se voltarmos, o que faremos com esse poder desmedido que tem se instalado? As instâncias de controle não são infinitas e alguém de fato tem que errar, ou acertar, por último. Mas, afinal, não deveria ser esta a própria Carta Constitucional?

*Amanda Guimarães da Cunha é especialista em Direito Eleitoral e em Ciências Penais e coordenadora de Comunicação da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político.

Comunicar erro

Comunique à Redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

Democracia defensiva ou autocracia judicial? - UOL

Obs: Link e título da página são enviados automaticamente ao UOL

Ao prosseguir você concorda com nossa Política de Privacidade


Últimas notícias