Motta tem que escolher entre reverenciar a Constituição ou defender anistia

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Ao ser eleito o mais jovem presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (Republicanos-PB) ergueu como bandeira o histórico discurso de Ulysses Guimarães na promulgação da Constituição de 1988: "Temos ódio e nojo à ditadura".
Mas, em tempos de revisionismo histórico e relativização semântica, cabe perguntar: a qual ditadura ele se refere? À de 1964, cujos herdeiros políticos hoje ocupam o Congresso? Ou à que insinuam seus colegas ao tentar anistiar os criminosos do 8 de Janeiro?
Pouco mais de dois anos antes, naquela mesma cadeira, o mesmo carpete verde e o livro simbólico que tanto Motta quanto Ulysses levantaram no plenário foram depredados, destruídos e desfigurados por uma horda de golpistas, inflamados e financiados por uma dita elite econômica e política.
Alguns dos envolvidos foram presos em flagrante, enquanto outros aguardam julgamento, defendidos por bancas de advogados altamente remuneradas —garantia prevista na mesma Constituição que os investigados tentaram vilipendiar.
Motta, é justo reconhecer, tem se mostrado mais aberto ao diálogo e mais alinhado ao regimento interno da Casa em comparação com o seu antecessor. No ano passado, organizações integrantes do Pacto pela Democracia apresentaram a agenda Câmara Aberta, com uma série de sugestões para ampliar a transparência e a participação social no Legislativo. Até o momento, os sinais emitidos pela nova mesa diretora são positivos, mas ainda esperamos pela concretude das mudanças.
É importante lembrar, e não normalizar, os atropelos e arroubos da gestão anterior. Como falar de defesa da democracia e da Constituição se nem o regimento era levado a sério?
Sob Lira, a resposta a qualquer crise era a criação de Grupos de Trabalho (GTs) —mecanismos opacos que esvaziaram as comissões permanentes e menosprezaram a participação da sociedade civil. Foi assim que o projeto de anistia aos golpistas, apoiado por parte da classe política e reverberado de forma acrítica pela imprensa, foi parar no limbo legislativo.
Segundo a lei de crimes contra o Estado democrático de Direito, sancionada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, as acusações que pairam sobre os envolvidos na intentona golpista são inafiançáveis e imprescritíveis. O projeto de anistia, além de tentar normalizar o irrazoável, serve como mais uma provocação da extrema direita ao Supremo Tribunal Federal, ao inverter completamente as prerrogativas de cada Poder.
O indulto de Donald Trump aos envolvidos nos ataques ao Capitólio deu o mote para essa nova etapa violenta da política extremista: crimes perpetrados a favor de líderes autoritários podem ser anistiados no futuro. Isso é grave e não deve ser ecoado ou admitido em uma democracia forte.
Por aqui, isso não foi aceito nem mesmo quando uma graça presidencial foi concedida a um parlamentar. Daniel Silveira foi impedido de ter sua condenação anulada pela maioria do Supremo, que mostrou intransigência com ataques ao Estado democrático de Direito, e o mesmo entendimento deve ser repetido caso a lei seja aprovada no Congresso Nacional.
Não é apenas no STF que se considera essa matéria esdrúxula. Uma recente pesquisa do Datafolha mostra que cerca de dois terços da população é contra o tema. Além disso, um abaixo-assinado pedindo o arquivamento do projeto, feito pelo Nossas em parceria com diversas organizações da sociedade civil, já conta com mais de 60 mil assinaturas. O escárnio da impunidade pode ser um péssimo negócio para as lideranças que tentarem liderar essa empreitada.
Diante desse cenário, causa estranheza e perplexidade a declaração de que ocorrido no dia 8 de Janeiro não foi uma tentativa de golpe. Após Motta discursar em defesa da Constituição e da democracia, fica evidente que tudo pode ser relativizado depois de um lobby da bancada antidemocrática. Motta tem a escolha entre ser quem reverenciou Ulysses e respeitou as instituições ou aquele que se calou enquanto a democracia gritava por socorro.
Concerne à sociedade civil lembrar ao presidente que, antes de Ulysses Guimarães declarar seu ódio e nojo à ditadura, ele afirmava que "traidor da Constituição é traidor da pátria". Cabe ao novo presidente bradar em imposição de sua honra.
*Arthur Mello é coordenador de advocacy do Pacto pela Democracia
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