OpiniãoNotícias

As diversas faces da morte

O Estranho caso de M Valdemar talvez seja um dos contos mais sombrios de Edgar Allan Poe. Escrito em 1845, trata da complexa experiência científica cujo objeto é a mesmerização de um homem definhando para a morte ou "in artículo mortis". A experiência constituía em mantê-lo parcialmente vivo, hipnotizado. O efeito é alcançado quando o corpo praticamente deixa de funcionar, mas a mente de M Valdemar segue viva e hipnotizada. Ante a deterioração crescente do corpo, o morto-vivo implora ao médico que o mate completamente mas, infelizmente, ele não sabe como fazê-lo.

Esse trágico pesadelo pode bem nos servir como inspiração para a reflexão sobre a universidade brasileira.

Como organização acadêmica, a universidade em nosso país é fruto de peculiar trajetória marcada pela antinomia entre desenvolvimento acadêmico consistente e uso da autonomia legal para expansão das matrículas. A diferença de outros países, especialmente os da OCDE, a nossa foi criada sob o "manto diáfano" do colonialismo.

Essa herança é reforçada por um excesso de burocratismo público no que se refere ao conjunto de normas e indicadores de avaliação a ela destinados e que, não obstante as enormes diferenças de qualidade e sentidos que assumem, as igualam entre si em torno de requisitos mínimos de credenciamento e sob um procedimento avaliativo padrão que incorpora indicadores gerais e pouco expressivos para uma organização universitária. Um único requisito pertinente a distingue que é possuir, no sentido profano, um mínimo de quatro cursos de mestrado e um de doutorado regulares. Esse requisito é, no entanto, sementado na avaliação e burocratizado na regulação, especialmente por não estimular ou induzir a plena institucionalidade da pós graduação e da pesquisa.

A universidade brasileira está legalmente ligada às práticas da indissociabilidade do ensino, da pesquisa e da extensão. O significado de maior relevância dessa articulação seria a capacidade de prover a transformação social, econômica e cultural da nação pelo conhecimento. Nessa direção, o sentido de sua expansão deveria ser o de aprofundamento de estudos e da formação, associados com as demandas nacionais mais expressivas, referidas em mais inovação e desenvolvimento industrial, no incremento de serviços e de politicas publicas capazes de ampliar direitos e inclusão à população.

A universidade é o principal espaço da produção de ciência e, portanto, de transformação contínua do conhecimento e de disseminação cultural à sociedade. Sem ela, a cidadania e o processo civilizatório se tornariam ásperos e a formação superior em geral segmentada em um amontoado de conteúdos, sem necessariamente impactar o estudante, o diploma ou a sociedade.

Segundo o Censo da Educação Superior, em 2023 o Brasil contava com 2.580 instituições de educação superior, sendo 2.264 particulares. Desse total, 205 são universidades e dessas, 116 públicas. Por outro lado, as universidades concentram cerca de 50% das 10 milhões de matrículas nacionais em educação superior ou mais de 5 milhões, dessas mais de 1 milhão e meio são em universidades públicas e mais de 3 milhões e meio são em particulares. Muitas dessas matriculas são em educação à distância, que conta com cerca de 5 milhões do total da matricula brasileira.

Esse número de matriculas demonstra, ao contrário de diversos países da OCDE, que parcela das universidades brasileiras vem dedicando sua autonomia mais em expandir suas matriculas de graduação e menos em expandir o modelo universitário rumo às razões de desenvolvimento sustentável do país. A quantidade majoritária de sua oferta de matrículas são para cursos convencionais, fortemente calcados em conteúdos, com baixas energias dedicadas às inovações curriculares que recepcionem a pós-graduação, a pesquisa e a extensão e que pouco se diferenciam de instituições não universitárias.

Por outro lado, a expansão da universidade, para além dos números, expressa um sistema de regulação e avaliação insuficiente, incapaz de se referir aos compromissos ou políticas institucionais ativas de interesse do país. Vê-se que há décadas a regulação e a avaliação governamentais vem se valendo de experimentos regulatórios como antídotos de sobrevivência aplicados a algumas das universidades que se não morrem, também são incapazes de demonstrar vigor e impacto ao país. Felizmente o ministro da Educação está organizando uma profunda e inédita revisão no processo regulatório e avaliativo em direção às dimensões sociais e econômicas da educação superior.

Continua após a publicidade

Fato é que o objeto central da avaliação e da regulação deveria focar na articulação entre pesquisa, formação e extensão, de forma dinâmica, demonstrada em ações, políticas institucionais e agendas. Não basta regulá-las com mínimos de mestrados e doutorados e iguala-las em todo o resto. A avaliação deveria ser essencial para determinar diferenças positivas entre projetos institucionais, sua aplicação, desenvolvimento e dimensões. Ao diferenciar as universidades por seus méritos, a regulação promoveria o aperfeiçoamento ao conjunto das instituições de educação superior do país.

Dessa forma, as universidades poderiam desenvolver bons exemplos de currículos flexíveis, interdisciplinares, libertos das aulas conservadoras e ambientes atrasados, inovadores em aprendizado por competências e práticas reais intensivas, de forma a conter a pesquisa e a extensão em seu âmago e assim propiciar a produção de conhecimento e a independência intelectual aos estudantes desde cedo. Além disso, deveria proporcionar conexões e significados entre a graduação o mestrado e o doutorado de forma a permitir um continuum formativo, inserido em processos de pesquisa e extensão. Para isso serve a Universidade e sua autonomia constitucional: inovar e avançar em conhecimento ao encontro do crescimento econômico, do combate a desigualdade e a expansão da cultura.

Nessa direção segue a recente iniciativa das universidades publicas paulistas e federais, mobilizada pela Universidade de São Paulo, em modernizar suas pós-graduações. Essa construção é fruto do entendimento dos limites ainda presentes na autonomia, em parte devido a regramentos e normas externas, antigas e incompatíveis com o padrão de qualidade institucional instalados em muitas universidades brasileiras. Essa iniciativa que recebe decisivo apoio da Fapesp e da Capes, demonstra por si que a autonomia universitária é capaz de estabelecer transformações capazes, inclusive, de contribuir com a modernização do processo regulatório e avaliativo a cargo das agencias governamentais que tanto contribuiu com a ciência e a pesquisa nacional.

Ao permitir novas interações entre a graduação, a pós graduação e a pesquisa, esse programa faz com que a formação de doutores seja acelerada e, em consequência, possa vir a ser diminuída a média etária de 40 anos ao ingresso docente nas universidades públicas.

Ações como essa podem servir de exemplo e vir a reforçar iniciativas de muitas e qualificadas universidades particulares, confessionais e comunitárias. É da maior relevância demonstrar à sociedade que as universidades não são apenas espaços destinados às carreiras acadêmicas ou à reprodução acentuada de matriculas, mas sim espaços onde permanentemente estão sendo formados brilhantes intelectuais a integrarem as profissões estratégicas ao país como as de cientistas, professores e pesquisadores, em uma expressão única e publica dedicada ao futuro desse país.

*Luiz Roberto Liza Curi, ex-presidente do Conselho Nacional de Educação, é titular da cátedra Paschoal Senise de pós-graduação da USP, Pesquisador Associado da FGV e consultor da Unesco.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Deixe seu comentário

O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.