Guerra política exclui do debate posições independentes

Pablo Ortellado

Pablo Ortellado

Especial para o UOL

O antagonismo que estamos vendo no Brasil não é a trivial rivalidade entre grupos e partidos, que é uma constante da vida política. É o acirramento dessa rivalidade, que impede que qualquer juízo independente apareça sem ser tragado por um dos lados ou desprezado como uma neutralidade irrelevante. Na disputa política, cada lado tem sua narrativa: consolidada, fechada e autorreferente.

Para os defensores do governo, os anos Lula trouxeram grandes melhorias para os trabalhadores que puderam comprar geladeiras, viajar de avião e ascender ao ensino superior. Contrariados com a ascensão social dos mais pobres, grupos da classe média alta e do empresariado, ligados ao PSDB, revoltaram-se e, incapazes de derrotar o PT nas urnas, têm tramado todo tipo de ardil para derrubar o governo.

Com o avanço das investigações da Lava Jato, resultado das políticas petistas de fortalecimento e independência do Ministério Público e da Polícia Federal, os opositores têm utilizado a indignação popular contra a corrupção para derrubar o governo num golpe institucional. Indignação contra a corrupção e ódio de classe estão sendo misturados pelos meios de comunicação engajados no golpe para recriar no país o fascismo.

Esse processo tem recebido o apoio e a cumplicidade criminosa da grande imprensa, do empresariado e dos partidos da oposição. O objetivo não é apenas derrubar o governo, mas enterrar de vez o PT junto com a esquerda e desmontar todas as conquistas sociais dos anos Lula.

Para os críticos, os governos Lula e Dilma foram o vergonhoso aparelhamento do Estado por uma gangue que trocou um projeto político por um projeto de poder. A sucessão de denúncias e os escândalos de corrupção, desde o mensalão, têm sido sistematicamente enterrados com a concessão de cargos e verbas de campanha por meio do saque ao Estado e às empresas públicas.

No entanto, a Polícia Federal, o Ministério Público e a Justiça Federal reagiram a esse aparelhamento vergonhoso e começaram um processo virtuoso de investigação que não está poupando ninguém e está colocando, pela primeira vez no país, políticos e empresários na cadeia.

À medida que vai descobrindo-se os fatos estarrecedores da Lava Jato, a população vem se organizando por meio das redes sociais e da mobilização de rua, protestando de maneira ordeira e pacífica pelo fim da corrupção e pela saída imediata da presidente Dilma.

Encurralados pelas investigações, o PT tem mobilizado sua base de movimentos clientelistas que ameaçam instaurar a desordem no país se o PT for removido do poder. Embora estejam isolados e não tenham nenhum apoio popular, os petistas prometem resistir ao impeachment e aos apelos para a renúncia, com a esperança de que a coisa esfrie e que consigam se perpetuar no poder.

A disputa política hoje é uma disputa entre essas duas narrativas que se opõem. Qualquer fato novo é devidamente interpretado e incorporado numa delas e não há nenhum espaço para ponderações, meias medidas e matizes.

Como os dois grupos falam em profusão, de maneira combativa e coordenada, reproduzindo sempre um mesmo discurso, qualquer ação independente é tragada pelo efeito centrífugo dos dois vórtices ou desprezada como um ruído insignificante para a batalha. Se uma opinião independente tem elementos que se julgam importantes para uma das narrativas, ela vai ser incorporada, desde que os elementos de ponderação sejam deixados de lado. E se há muito equilíbrio na reflexão, então os dois lados vão atacá-la até sobrepujá-la e afogá-la com discursos de combate, de maneira que não possa mais ser ouvida.

Aqueles que acreditam que há ganhos sociais relevantes nos últimos anos, mas que houve uma abjeta apropriação do patrimônio de uma empresa pública, não têm lugar no debate. Aqueles que acham que o direito ao protesto de rua deve ser celebrado como ganho democrático, mas que temem o avanço da intolerância e do ódio, não têm lugar no debate. Aqueles que celebram que as investigações finalmente chegaram no coração do poder político e do poder econômico, mas temem que possam ameaçar os direitos civis e a presunção de inocência, não têm lugar no debate.

Enquanto uma articulação política independente não surgir, a escolha é entre se deixar instrumentalizar por um dos lados ou falar baixinho, protestando pelo direito de pensar. Cedo ou tarde a guerra vai acabar e restará a missão de reconstruir a partir dos destroços.

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Pablo Ortellado

42 anos, é professor do curso de Gestão de Políticas Públicas da USP

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