Bolsonaro repete narrativa de portugueses, diz estudioso do movimento negro

Janaina Garcia

Do UOL, em São Paulo

  • Ulisses Pompeu/Futura Press/Estadão Conteúdo

    O candidato à presidência da República, Jair Bolsonaro (PSL), durante pré-campanha na cidade de Marabá (PA)

    O candidato à presidência da República, Jair Bolsonaro (PSL), durante pré-campanha na cidade de Marabá (PA)

As declarações do candidato à Presidência Jair Bolsonaro sobre cotas e racismo feitas nessa segunda (30) durante entrevista no programa Roda Viva, da TV Cultura, foram repudiadas pelo historiador Carlos Machado, negro e pesquisador do universo afro há quase três décadas.

O candidato, que se disse favorável à redução do percentual das cotas de vagas nas universidades públicas reservadas a negros, negou que o país tenha uma dívida histórica com a população negra, em razão da escravidão vigente no país durante quase quatro séculos, e atribuiu aos próprios africanos a entrega de escravos aos portugueses. "O português nem pisava na África. Foram os próprios negros que entregavam os escravos", disse Bolsonaro.

Arquivo pessoal/Divulgação
O historiador Carlos Machado pesquisa o universo afro há quase três décadas

Em abril do ano passado, o candidato fez ataques contra quilombolas e indígenas durante um evento no Clube Hebraica, no Rio de Janeiro. Na ocasião, a uma plateia de 300 pessoas, prometeu acabar com as reservas indígenas e quilombolas caso fosse eleito e citou a visita a um quilombo com o comentário de que "o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas". "Não fazem nada. Eu acho que nem para procriador ele serve mais", definiu, à época. O caso gerou uma denúncia por crime de racismo feita pela procuradora-geral da República, Raquel Dodge, ao STF (Supremo Tribunal Federal).

Para o historiador Carlos Machado, a narrativa do candidato "é muito parecida com a dos portugueses".

"Porque os portugueses nunca pediram desculpas pela escravidão, até hoje, ao Brasil ou aos africanos. E justamente os portugueses que inauguraram esse tipo de escravidão atlântica, no ano de 1444, com o infante Dom Henrique", afirmou.

"Bolsonaro vai em uma linha adotada por pessoas que não admitem o crime contra a humanidade que foi a escravidão. Mas 12,5 milhões de pessoas chegaram com vida a este lado do oceano, pelas mãos dos europeus, no maior deslocamento humano da história, de modo que quase 5 milhões delas vieram ao Brasil. E essa é uma responsabilidade que não é dessas pessoas, mas de quem as trouxe", completou.

Sobre africanos terem entregado outros africanos para portugueses, Machado admitiu que há uma visão ultrapassada na história de que isso teria um dia ocorrido. Ele analisa, no entanto, que a relação entre portugueses e África era bem mais complexa que isso. "O fato é que essa história de que portugueses nem pisaram na África é totalmente absurda, essa é uma retórica torta. E quanto à dívida histórica, ela existe, sim, porque foram tanto povos indígenas quanto africanos a base para o crescimento econômico do Brasil".

O pesquisador sublinhou que, se o país é hoje uma das maiores economias do mundo, e a segunda no continente americano – fica atrás apenas dos Estados Unidos -, é porque negros e índios ajudaram a construir as bases para tal.

Machado defendeu ainda que, se o racismo acabou com a assinatura da Lei Áurea, em 1888, outros privilégios em favor da população branca persistem até hoje, como o racismo nas instituições –nas quais o negro, ainda que maioria na população brasileira, seja, nelas, minoria.

"Temos mais de um século de racismo institucional, e isso garante uma posição de poder especialmente ao homem branco. Por esse motivo, ações afirmativas como as cotas são importantes -- porque temos esse legado de desvantagens oriundas de nossos povos escravizados que ainda não conseguiram ter um nível de igualdade de oportunidades", analisou. "Isso é necessário no sentido de a gente construir, um dia, um equilíbrio, para que não seja mais preciso usar esse tipo de política. Mas isso ainda está longe de acontecer".

Questionado sobre por que declarações do tipo ainda são ouvidas de candidatos à Presidência, mesmo com a militância crescente, na sociedade, de movimentos negros e anti-racismo, Machado afirmou: "Talvez porque um candidato assim não pense sua identidade branca –homens e mulheres, da esquerda e da direita, também não têm refletido sobre isso. O problema é que afirmações do tipo causam uma preocupação com o apagamento de uma memória que nos é muito cara e vão contra uma luta de quase um século –e com base em estudos, pesquisa, e não com base em achismo".

"Quando o candidato joga isso tudo no lixo, como se tudo que falamos de racismo e escravidão não fosse comprovado cientificamente, ele fecha os olhos para uma realidade que está aí. É um tremendo retrocesso. Creio que defender isso é voltar ao ano de 1888, com o fim da monarquia e início da República Velha, período dificílimo para a população negra – que havia saído da escravidão, mas com uma mão na frente e outra, atrás", comparou.

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