"Democracia brasileira se esgarçou e pode se romper", afirma André Singer

Gabriela Fujita

Do UOL, em São Paulo

  • Gabo Morales/UOL

    André Singer, cientista político, professor da USP (Universidade de São Paulo) e autor de livros sobre o lulismo, termo que ele mesmo cunhou

    André Singer, cientista político, professor da USP (Universidade de São Paulo) e autor de livros sobre o lulismo, termo que ele mesmo cunhou

Entre os anos de 2003 a 2007, o cientista político e jornalista André Singer participou diretamente do governo Lula, como porta-voz e secretário de imprensa da Presidência da República. Professor do Departamento de Ciência Política da USP (Universidade de São Paulo), ele lançou em maio de 2018 "O Lulismo em Crise: Um Quebra-Cabeça do Período Dilma (2011-2016)", pela editora Companhia das Letras.

Em entrevista ao UOL, o pesquisador comenta temas ligados ao lulismo -- conceito que ele próprio cunhou --, e aborda algumas questões a respeito da corrida eleitoral brasileira, onde se destacam: a participação do deputado federal Jair Bolsonaro (PSL) e a candidatura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), preso há quase quatro meses e líder na pesquisa Datafolha mais recente sobre intenção de votos para presidente.

Singer também opina sobre o surgimento recente de candidatos ligados às Forças Armadas e a "ameaça à democracia" que isso poderia representar.

Confira, a seguir, os principais trechos da conversa.

UOL – O deputado Jair Bolsonaro e seus eleitores querem eliminar o lulismo?

André Singer - Uma das características dessa candidatura [de Bolsonaro] e dos eleitores que estão em volta dela parece ser uma convicção de que o lulismo não pode ganhar as eleições, e se ganhar as eleições, não pode voltar a governar o Brasil. Com isso, se rompe o pacto básico democrático que está por trás da Constituição de 1988. Isso é um elemento fundamental para a gente entender a crise deste momento. À medida que você tem um setor da sociedade que recusa que determinada força política tenha legitimidade para disputar, ganhar e se ganhar, governar, você não está mais dentro de regras plenamente democráticas. Eles gostariam, na verdade, de colocar o lulismo na ilegalidade.

O lulismo não é um modo de governar, mas o programa prático que acabou galvanizando o que eu chamo de campo popular. É uma estratégia de transformação do Brasil por dentro da ordem, que não tinha teoria, nem sequer estava imaginada antes de o ex-presidente Lula ganhar a eleição em 2002, mas que acaba obtendo resultados. É verdade que ele se beneficiou muito do fato de ter uma conjuntura econômica internacional favorável, extremamente favorável, sobretudo até 2011. O fato de ela ter se tornado menos favorável ou até mesmo desfavorável a partir de 2011 é um dos problemas do período Dilma (PT), que eu analiso no livro.

Leonardo Benassatto/Reuters
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT)

O candidato Bolsonaro é quem mais representa esse antilulismo, nesse sentido?

Nesse sentido, eu diria que sim, ele é o que está vocalizando isso. Outros setores, às vezes aqui e ali, podem ter inclinações, mas quem realmente transformou isso em programa é o candidato Bolsonaro e os grupos que o estão apoiando.

Como o senhor avalia o risco para a candidatura de Lula e para o PT de manter o ex-presidente candidato, uma vez que ele pode ser barrado, e também para os votos que ele poderia transferir?

Eu acho essa estratégia arriscada, porque seria mais cauteloso indicar um candidato que fosse pouco a pouco se tornando conhecido do eleitorado e sendo visto como o candidato apoiado pelo ex-presidente Lula. Isso é o mais prudente. Ela pode dar certo? Pode. Até aqui, as pesquisas de intenção de voto revelam que o ex-presidente Lula manteve o seu cabedal. Houve uma certa queda, segundo o Datafolha, na primeira pesquisa depois da prisão. Depois houve uma estabilização no patamar de 30% [das intenções de voto], que é muito alto, na atual circunstância de fragmentação, de indeterminação que a gente está vivendo.

Outro dia eu ouvi uma entrevista do ex-governador Geraldo Alckmin (presidenciável pelo PSDB) em que ele diz: 'Essa estratégia é correta para o PT, porque ao não indicar um candidato, esse não-candidato não pode ser atacado, ele não sofre ataques durante o período em que não está indicado.' É uma observação de um político experiente. Estou levantando isso não porque eu concorde, mas para dizer que há também argumentos que permitiriam dizer que a estratégia está correta.

O que me parece mais seguro é dizer o seguinte: nós estamos vivendo a eleição mais confusa e nebulosa desde a redemocratização. Ninguém sabe o que vai acontecer.

O lulismo está muito associado ao ex-presidente Lula. Alguma outra personalidade poderia receber esse bastão ou isso está realmente grudado na figura do ex-presidente?

No passado, foi o getulismo. O paralelo que tem que ser feito é com o getulismo. Isso mostra que não é um fenômeno único. Eu chamei de lulismo porque acabou se encarnando numa liderança que foi aquela que realizou praticamente esse programa, que ficou identificado com essa pessoa. A transferência do carisma, não, mas na impossibilidade de concorrer numa eleição, como é o caso neste momento, pode acontecer de ele transferir votos. Como já aconteceu com a ex-presidente Dilma e mesmo com o ex-prefeito Fernando Haddad (PT) em São Paulo.

No cenário atual, se o ex-presidente Lula conseguir se candidatar, conseguir concorrer e for eleito, ele vai ter condições de reaplicar essa estratégia que estamos chamando aqui de lulismo, sem o confronto com o mercado, com o capital, mais conciliatório como já foi?

Gabo Morales/UOL
André Singer, cientista político e professor da USP (Universidade de São Paulo)

Eu vou dizer duas coisas ao mesmo tempo e gostaria que as duas ficassem registradas. Eu acho difícil, mas acho que ele vai tentar. Acho que é difícil porque a situação econômica mudou, nós não temos mais aquele vento a favor do ciclo das commodities, eu acho que houve uma enorme polarização no Brasil, e essa polarização prejudica as tentativas de uma mudança sem confronto. Eu acho que houve uma unificação do empresariado contra o projeto lulista, é verdade que mais contra a versão dilmista do projeto, mas houve uma unificação, as condições de diálogo com o empresariado estão muito mais difíceis do que eram a partir de 2003. As condições políticas internacionais mudaram, existe uma polarização no mundo.

O Brasil entrou não só numa crise grave, o que coloca demandas imediatas muito fortes, como também o Brasil sofreu mudanças estruturais que dificultam essa tentativa. Por exemplo, o limite do teto dos gastos. Com essa lei, não dá para fazer o projeto tal como ele vigorou a partir de 2003, porque a economia não vai crescer com esta trava. E esse limite implica uma lenta dissolução daquilo que nós podemos chamar de germe de estado do bem-estar social no Brasil. Se isso não for revogado, no longo prazo, nós vamos ter uma dissolução do SUS, por exemplo.

Algum político ou partido foi capaz ou será capaz de construir uma narrativa semelhante ou oposta à do lulismo?

O que é pressuposto numa democracia é que você tem pelo menos mais de um time que compete em condições de ganhar, que tem condições de se tornar majoritário e que chega perto de vencer. É claro que esses outros times vão formular narrativas que tentam também, no plano narrativo, competir com a do lulismo, que é muito forte. Ela está ancorada em fatos, e isso é o elemento mais importante. Para os eleitores de baixa renda, o período do ex-presidente Lula foi muito benéfico.

Para ficar no plano da sua pergunta, o ex-ministro Henrique Meirelles (candidato do MDB à Presidência) preparou uma narrativa que não seria ruim caso a economia tivesse crescendo, por exemplo, 4%. A narrativa é: a ex-presidente Dilma afundou a economia, eu a recuperei e agora sou candidato a presidente em nome dessa recuperação. Assim como o ex-presidente Fernando Henrique (PSDB) foi candidato em nome do plano Real. Não é uma narrativa ruim, o problema é que não deu certo, a economia não está crescendo na medida esperada, pelo contrário. Neste momento, ela está patinando. Então, a candidatura dele está sem narrativa. Certamente haverá outras narrativas alternativas à do lulismo.

Por que Lula continua com 30% das intenções de voto quase quatro meses após sua prisão? Quem é este eleitor?

Ele continua com esses 30% justamente porque, diante do fracasso do plano Meirelles, a população de baixa renda quer que volte uma situação em que existe emprego e aumento de salário. É simples. Esse é o fundamento da coisa, e também os programas sociais (como o Bolsa Família). Os eleitores olham para trás. Porque olhar para frente, o chamado voto prospectivo, é muito trabalhoso. Nem eu mesmo tenho muita condição de dizer o que vai acontecer, muito menos um eleitor que, de modo geral, não tem tempo para se dedicar aos problemas da política. Olhar para trás é mais barato, entre aspas, do ponto de vista de tempo, porque o passado já passou. O eleitor do ex-presidente Lula hoje é basicamente o eleitor previsto na hipótese do lulismo, ou seja, os eleitores de baixa renda, sobretudo do Nordeste, que foi uma região onde o crescimento teve momentos chineses.

Gabo Morales/UOL
André Singer, durante a conversa sobre lulismo e o atual cenário político do país

A segurança pública volta a ser um tema importante nas eleições de 2018?

A segurança é um tema muito importante nessa eleição, porque, por motivos que, para mim, não estão claros, mas não sou especialista na área, houve um aumento importante da criminalidade nas últimas duas décadas de maneira crescente. E tem até um certo enigma, porque, na medida em que houve redução da pobreza durante o lulismo, se esperava uma redução da violência, e na verdade houve um aumento, especificamente em áreas onde a redução da pobreza foi maior. Por exemplo, nas grandes metrópoles do Nordeste. E nós temos hoje um problema de segurança pública muito importante no Brasil, que vem só aumentando.

O candidato que bater nessa tecla vai ter mais chances com o eleitor?

Eu tenho a impressão de que todos os candidatos terão que falar do assunto, porque se tornou um assunto entre os prioritários. Em parte, uma abordagem simplista feita pelo candidato Bolsonaro a respeito desse tema também explica sua popularidade. Vamos ter que ver agora, no período de debates, que é curto, mas que de alguma maneira já começou, porque os meios de comunicação começam a fazer grandes entrevistas etc., vamos ver como é que essa primeira abordagem vai se sustentar. Eu suponho que vão surgir outras visões e propostas, espero, que possam se contrapor a essa abordagem mais intuitiva do problema.

Por que o senhor acha que a democracia está sob ameaça?

Acho que a democracia está sob ameaça por dois motivos. Historicamente porque houve um golpe parlamentar que abriu a porta da excepcionalidade. Não foi um golpe de Estado, que implicaria a intervenção das Forças Armadas, que implicaria em supressão das liberdades civis, coisa que não ocorreu. Porém, vamos notar o seguinte: essa abertura da porta da excepcionalidade já trouxe de volta, por exemplo, os militares para a política. Nós temos um candidato que é oriundo das Forças Armadas [Jair Bolsonaro] e temos mais de 80 candidatos espalhados pelo país que vêm das Forças Armadas, coisa que não acontecia antes. E nós temos várias manifestações de lideranças militares dizendo que estão não só atentos para a situação, mas que se sentem convocados a uma ação, que eu espero não seja uma ação de intervenção e que não seja uma ação que leve de novo o Brasil para uma situação de autoritarismo. Porém, já existe essa novidade.

Além disso, você tem uma espécie de escalada da violência política. Eu poderia citar os tiros contra a caravana do ex-presidente no Sul, os tiros contra o acampamento em Curitiba, o assassinato da vereadora Marielle Franco como fatos maiores, mas nós temos muitos fatos espalhados pelo país de violência política, coisa que não havia até 2014 ou mesmo até 2016. Nós estamos, nesse sentido, sim, diante de uma situação que eu costumo dizer: a democracia se esgarçou; ela não rompeu e pode romper.

O senhor finaliza o seu livro com a seguinte frase: "Quando a ressaca cessar, o quebra-cabeça precisará começar a ser remontado". Poderia comentar?

Remontar o quebra-cabeça significa entender exatamente o que aconteceu. O que houve entre 2011 e 2016 foi tão complexo que eu chamo de quebra-cabeça. O que eu procuro fazer no livro é trazer à tona o que eu entendo que sejam algumas peças, na expectativa de que outros trabalhos se somem, para depois dar uma figura mais completa. Mas também [me refiro] à reconstrução, sim, de uma condição do pacto democrático e de uma possibilidade de que o Brasil complete ou faça, na verdade, não estamos perto de completar, a integração social que daria ao país uma possibilidade de transitar para um outro estágio. Na minha visão, o Brasil ainda não incorporou o conjunto da população a condições mínimas de vida, dignas de vida, o que significa incorporar a economia mais avançada do país, porque ele é muito díspar. Enquanto o Brasil não completar isso, não poderá ter outros projetos. Esse é o problema fundamental, que eu achei, num determinado momento mais otimista, que a minha geração iria ver ser resolvido, e não foi.

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