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Qual a diferença entre caixa dois e corrupção? Especialistas explicam

Marcos Bezerra/Futura Press/Folhapress
Imagem: Marcos Bezerra/Futura Press/Folhapress

Felipe Amorim e Mirthyani Bezerra

Do UOL, em Brasília e São Paulo

18/03/2017 04h00

Os acordos de delação premiada da Odebrecht, que prometem lançar suspeitas sobre boa parte do mundo político, levantaram a questão sobre o tipo e a gravidade dos crimes apontados nos depoimentos dos 78 executivos e ex-executivos da empreiteira: qual a relação entre caixa dois e corrupção?

Um ponto central dos depoimentos são os pagamentos da empreiteira a políticos e o Ministério Público já demonstrou que pode tratar casos de doações eleitorais como propina recebida em esquema de corrupção.

Isso fez com que políticos de diferentes partidos adotassem o discurso de que caixa dois, as doações eleitorais não declaradas, são uma prática diferente de corrupção e, segundo essa tese, menos grave.

Ao defender o senador Aécio Neves (PSDB-MG) da acusação de ter pedido recursos ilegais a Odebrecht, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) chegou a classificar de “erro” eleitoral a prática de caixa dois, enquanto guardou a classificação de “crime” para a corrupção praticada em nome do enriquecimento próprio.

"Há uma diferença entre quem recebeu recursos de caixa dois para financiamento de atividades político-eleitorais, erro que precisa ser reconhecido, reparado ou punido, daquele que obteve recursos para enriquecimento pessoal, crime puro e simples de corrupção", disse FHC, em nota divulgada à imprensa.

A polêmica seguiu com o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Gilmar Mendes, atual presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), que disse que nem todo caso de caixa dois é um caso de corrupção.

Caixa dois é crime?

Barroso - Ruy Baron/Folhapress - Ruy Baron/Folhapress
Luís Roberto Barroso afirmou que caixa dois e corrupção são crimes distintos
Imagem: Ruy Baron/Folhapress

O ministro do STF Luís Roberto Barroso afirmou que apesar de serem práticas distintas, caixa dois e corrupção são crimes

O caixa dois consiste em receber doações de campanha e não declarar os valores na prestação de contas à Justiça Eleitoral e pode ser punido com até cinco anos de prisão.

A Operação Lava Jato encontrou planilhas num escritório da Odebrecht que indicam repasses de dinheiro a cerca de 200 políticos, de diferentes partidos, o que realçou o temor em Brasília com a nova leva de pedidos de investigação que serão feitos pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot. 

O Código Eleitoral não tem um artigo específico para criminalizar a prática, mas o Ministério Público tem usado o artigo 350 do código para punir os casos de caixa dois. Esse dispositivo pune quem “omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar”. 

Em outras palavras, é crime esconder da Justiça Eleitoral, no ato da prestação de contas, que o partido ou o político receberam determinado valor em doações.

Caixa dois pode ser corrupção?

Isoladamente, deixar de declarar doações eleitorais, por si só, não é um caso de corrupção. Mas a prática de caixa dois pode sim estar associado a outros crimes.

A corrupção é o crime praticado por agente público (político ou funcionário público) que recebe uma vantagem ilegal, como dinheiro ou outro tipo de benefício, para atuar em favor de um interesse privado.

A lei pune com até 12 anos de prisão quem “solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem”, diz o artigo 317 do Código Penal.

O que caracteriza a corrupção é o recebimento da vantagem com a contrapartida da atuação para favorecer o pagador da propina.

Por isso, se essa propina é paga por meio de doações eleitorais feitas no caixa dois, o corrupto está cometendo os dois crimes de uma só vez.

Gilmar Mendes - Roberto Jayme/Ascom/TSE - Roberto Jayme/Ascom/TSE
Para Gilmar Mendes, "alguém pode fazer a doação [por caixa dois] sem ser corrupção"
Imagem: Roberto Jayme/Ascom/TSE

O ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Gilmar Mendes, atual presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), afirmou em entrevista à "Folha de S. Paulo" que “corrupção pressupõe ato de ofício [ação de agente público], então alguém pode fazer a doação [por caixa dois] sem ser corrupção", afirmou.

Doações legais excluem a possibilidade de corrupção?

Valdir Raupp - Beto Barata-16.abr.2015/Folhapress - Beto Barata-16.abr.2015/Folhapress
Valdir Raupp é acusado de receber propina por doação legal
Imagem: Beto Barata-16.abr.2015/Folhapress

Se as doações de campanha, mesmo que tenham sido legalmente declaradas à Justiça Eleitoral, são fruto de um acordo para que o político beneficie um interesse particular, então esse também é um caso de corrupção.

"Ou seja, a prática da corrupção depende da natureza da relação de quem recebe o dinheiro com quem doa, independente se a doação foi legal ou ilegal", afirma Aldo Fornazieri, cientista político e professor da FespSP (Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo).

Recentemente o STF transformou em réu o senador Valdir Raupp (PMDB-RO), acusado de receber propina por meio de uma doação legal de campanha. Raupp diz ser inocente. 

"Nem todo dinheiro não declarado é ilícito. Mas esse dinheiro doado pode ser sujo, de corrupção [pagamento de propina], narcotráfico e outras atividades ilícitas e ser usado na campanha. Tem que analisar caso a caso para saber como esse dinheiro foi conseguido, que troca de favores existiu. É uma investigação que tem um alto grau de complexidade", diz Fornazieri.

“O que é corrupção? Quando dou dinheiro a funcionário público esperando obter algo em troca. Pode ser via caixa um [doações declaradas] ou via caixa dois”, diz o advogado criminalista e professor da USP (Universidade de São Paulo) Pierpaolo Bottini.

“Caixa dois é um dinheiro não contabilizado”, diz Bottini. “Eu posso receber um dinheiro de caixa dois a título de corrupção”, afirma o professor da USP.

Apesar de haver um movimento no Congresso Nacional para anistiar aqueles que teriam recebido dinheiro para campanha eleitoral sem conhecimento da Justiça, fortalecido após a corte tornar Raupp réu, Fornazieri afirma que, se a anistia se concretizar, ela terá pouco efeito sobre quem praticou corrupção.

"Isso não livraria os políticos de sofrerem uma sanção penal. Eles podem ser julgados, ainda, por lavagem de dinheiro e corrupção passiva", afirma o professor da FespSP. 

Qual crime é mais grave?

O advogado Pierpaolo Bottini afirma que a lei considera o crime de corrupção como mais grave que o de caixa dois, por aplicar a ele uma pena maior, de 12 anos de prisão, ante 5 anos, no caso do caixa dois.

“Todo crime é um comportamento grave. Você pode ter uns mais ou menos graves, e isso você aponta pela pena”, diz.

O advogado eleitoral e professor do IDP (Instituto Brasiliense de Direito Público) Daniel Falcão afirma que os dois crimes são graves e que o caixa dois atenta contra a transparência e a igualdade da disputa nas eleições.

“Os dois são muito graves”, diz. “O caixa dois desequilibra a eleição, ele tira a legitimidade da eleição. Uma pessoa que está recebendo dinheiro por baixo dos panos está prejudicando seus adversários que tenham feito tudo dentro da lei”, afirma Falcão.

O professor do IDP está entre os que defendem que o caixa dois hoje em dia não é definido como crime pela lei eleitoral. Isso porque o Ministério Público tem utilizado o artigo 350 do Código Eleitoral para punir a prática, mesmo dispositivo que pune outros tipos de falsidade ideológica nas eleições.

“Tem gente que defende que esse artigo possa ser aplicado para punir o caixa dois. Mas falsidade ideológica é uma coisa totalmente diferente”, diz Falcão.

“Tanto não é crime eleitoral, o caixa dois, que o Ministério Público naquelas 10 propostas [contra a corrupção] que ele fez, uma das propostas é a criminalização do caixa dois eleitoral”, diz o professor do IDP.

A inclusão na lei de uma definição clara para o crime de caixa dois é uma das medidas propostas no projeto de lei conhecido como “10 medidas contra a corrupção”, apresentado pelo Ministério Público ao Congresso Nacional, com o apoio de dois milhões de assinaturas.