Reformas ou corrupção renovada? Especialista aponta cenários com a Lava Jato

"Uma investigação judiciária não pode cancelar ou enterrar os mecanismos que produzem a oportunidade, a ocasião para o envolvimento da classe política na corrupção. Para isso, são necessárias outras reformas, uma reforma política que previna novos fenômenos de corrupção." Essa é a avaliação do professor do Departamento de Ciências Políticas da Universidade de Pisa (Itália), Alberto Vannucci, em relação à Operação Lava Jato.
Vannucci é considerado um dos maiores estudiosos da Operação italiana "Mãos Limpas", a histórica investigação que, na década de 1990, revelou um mega esquema de corrupção envolvendo o setor político, a administração pública e o empresariado e que terminou com mais de 1.200 condenações, o desaparecimento dos principais partidos políticos da época, o suicídio de empresários e o fim da chamada Primeira República italiana. A operação europeia serviu de inspiração à Lava Jato.
Para Vannucci, tanto o Brasil como a Itália sofrem do que chama de "corrupção sistêmica" e a Lava Jato produzirá uma "profunda deslegitimação de todo o sistema político institucional". Porém, segundo ele, se for bem aproveitada, a operação "pode ser a ocasião para uma revolução cultural".
Leia, a seguir, os principais pontos da entrevista concedida por telefone:
UOL – Quais os pontos em comum entre as operações "Mãos Limpas" e "Lava Jato" e, para o senhor, que resultados semelhantes aos alcançados pela operação italiana deverão ser observados na investigação brasileira?
Vannucci – Primeiro é preciso dizer que a investigação Mãos Limpas apresentou características muito semelhantes àquelas da Operação Lava Jato. Também ali se partiu de um caso de corrupção não de altíssimo nível e depois ocorreu uma espécie de efeito avalanche, ampliando o envolvimento de sujeitos políticos de níveis sempre mais altos e de todas as cores.
Agora, quais foram os efeitos da Mãos Limpas que podemos, de qualquer forma, esperar que se manifestem também no caso brasileiro? Eu direi substancialmente dois, ligados naturalmente entre si. O primeiro é o fato de que a investigação sobre a corrupção produz uma profunda deslegitimação de todo o sistema político institucional.
Uma investigação sobre corrupção não é uma investigação como as outras porque ela destrói as ligações de confiança entre o povo e seus representantes. Essa ligação representa a alma, a linfa vital dos processos democráticos. Essa ruptura cria uma grave crise institucional que, na Itália, teve o efeito dramático do colapso do sistema político. Fala-se, inclusive, de passagem de uma Primeira a uma Segunda República. Quer dizer, como se tivesse ocorrido uma revolução.
O segundo fator é o aparecimento da demanda de uma política nova e inovadora, que salte as barreiras "direita" e "esquerda" até porque, seja na Mãos Limpas ou na Lava Jato, estão envolvidos sujeitos de todos os alinhamentos políticos. Transforma-se em algo significativo na competição política a capacidade de apresentar atores que se mostrem desligados, destacados daquelas velhas lógicas de poder e de corrupção que foram objeto da investigação.
Se um ator consegue colher essa demanda pode produzir uma espécie de cataclismo político. Mas é preciso estar atento. Na Itália, tivemos o exemplo extraordinário daquele que dominou a cena política por 20 anos: Silvio Berlusconi que, mesmo sendo profundamente ligado ao velho sistema corrupto, conseguiu, com um golpe de gênio, se apresentar como qualquer coisa de profundamente inovador. O empreendedor que desce em campo. O homem que é forte nos seus sucessos empreendedoriais, nos seus sucessos futebolísticos e, assim, se apresenta como o novo em contraposição ao velho e ineficiente.
Existe ainda um terceiro efeito que acredito possa ser verificado no Brasil com o passar do tempo que é a intensificação de atritos entre o sistema judiciário e o sistema político. Em uma primeira fase das investigações, a ninguém interessa se contrapor aos magistrados porque eles são vistos como heróis nacionais populares. Mas quando a investigação se alarga e começa a envolver toda a classe política sem exceções, ali, digamos, todos entraram no "moedor de carne" e também os magistrados começam a ser acusados de ser expressão de uma parte política.
UOL – E quais seriam as principais diferenças entre as operações?
Vannucci – Uma diferença fundamental é que, na Operação Mãos Limpas, os partidos que tinham até então representado o centro do governo dissolveram-se. Todos os principais partidos ou se transformaram radicalmente ou perderam consenso e praticamente acabaram evaporando. Isso não acontece no caso da Lava Jato. Sim, provavelmente as investigações contribuíram para determinar insucessos dos dois lados, mas os partidos permanecem com sua capacidade de mobilização. No Brasil, os partidos conseguiram suportar o golpe desferido pela operação enquanto na Itália, foram devastados.
UOL – Como o senhor avalia essa permanência dos partidos brasileiros?
Vannucci – É evidente que a dissolução dos partidos de massa apresenta riscos para a própria estabilidade das instituições democráticas. Na Itália, ocorreu uma situação em que se temeu pela própria existência da democracia. Existiu uma fase de vazio e dramaticamente a herança principal de Mãos Limpas foi a afirmação e o domínio da cena política por um partido e um sujeito [Berlusconi] que envolveram o país na mesma corrupção. Quer dizer, não existiu a capacidade de renovação do sistema. Por isso, é possível perguntar se a operação não teria sido melhor aproveitada politicamente se os partidos, ao invés de desaparecer, tivessem feito uma reforma profunda no seu interior. Pode ser positivo que esses partidos no Brasil tenham suportado o golpe desferido pela investigação se souberem administrar os desafios que essa mesma investigação lhes apresentar e forem capazes de se reformar internamente. Quer dizer, depende de como a oportunidade que vem apresentada pelas investigações é acolhida, revelando transparência ou produzindo um endurecimento do poder corrupto.
UOL – A Mãos Limpas não acabou com a corrupção na Itália. O senhor acha que essas mega operações são ineficazes?
Vannucci – Não. A Operação Mãos Limpas levou à luz uma grande parte daquela realidade de corrupção que punia o país. Mas é claro que uma investigação judiciária não pode cancelar ou enterrar os mecanismos que produzem a oportunidade, a ocasião para o envolvimento de parte da classe política na corrupção. Para isso, são necessárias outras reformas, uma reforma política que previna novos fenômenos de corrupção. Na Itália, essas reformas não foram feitas. Aquilo que dizem alguns dos protagonistas da operação é que o efeito dela existiu, mas por pouco tempo. Quer dizer, até quando os corruptos tiveram medo das investigações, eles se controlaram e a corrupção, por um curto período, caiu na Itália. Mas, na ausência de reformas, com o tempo, aquelas redes de corrupção se reformularam, inevitavelmente.
UOL – O senhor está dizendo que uma operação como esta sem uma reforma política posterior não serve a nada?
Vannucci – Corre o risco de ser dramaticamente contraproducente porque os sujeitos envolvidos, logo após a operação, passam a entender o que devem fazer para praticar melhor, com menos riscos, aquele mesmo tipo de atividade criminosa. Aí, a realidade da corrupção é reformada, torna-se cada vez mais impermeável, capaz de resistir a novas investigações judiciárias.
É preciso dizer também que uma investigação devastadora como foi Mãos Limpas, como é atualmente a Lava Jato, pode ser uma ocasião para uma revolução cultural no interior de um país. Na Itália, seguramente esta oportunidade foi perdida. No Brasil, talvez, ainda não seja assim. Se essa mudança de clima, de expectativa de uma maior integridade na gestão da coisa pública encontrar uma resposta na capacidade de reformulação dos partidos, na capacidade de reforma do Estado, na consolidação de uma classe política mais sensível a esses temas, aí sim pode produzir uma mudança, uma transformação profunda.
UOL - Pode-se afirmar que Brasil e Itália são países cronicamente corruptos?
Vannucci – Eu prefiro usar o termo corrupção sistêmica. Isso significa que a corrupção vira o próprio sistema, que cria suas regras internas de funcionamento, seus instrumentos de próprio governo ligando sujeitos do mundo da política, da economia, da administração pública, de profissões autônomas, todos no interior desta realidade. É sistêmica também porque se torna capaz de orientar as próprias escolhas das políticas públicas. Para deixar claro, a corrupção é binária. Aquela que existe em tantos países, pode se manifestar ocasionalmente quando, para organizar uma obra pública útil, alguém se enriquece. Continua a ser uma corrupção perigosa, que produz um desperdício de recursos, mas é vista ainda, de qualquer forma, como uma corrupção "fisiológica". Mas a corrupção sistêmica realiza a obra pública mesmo sabendo que ela é inútil, ou exatamente porque é inútil, e dessa forma os envolvidos podem se enriquecer muito mais.
UOL – Os sujeitos honestos ficam, então, de fora dos regimes de corrupção sistêmica?
Vannucci – Exatamente. O sistema tende a deixá-los à margem. É claro que é difícil imaginar um sistema no qual todos estejam envolvidos, mas digamos que os sujeitos envolvidos são numerosos e possuem um nível de autoridade suficientemente alto para poder incidir sobre a qualidade das escolhas públicas. Eles produzem uma seleção, por assim dizer, negativa da classe dirigente de um país. E isso que faz a corrupção: seleciona os piores.
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