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MPF quer impugnar lei da ditadura que permite a Exército vender terrenos sem licitação

Terreno em Osasco destinado a construção de um campus da Unifesp - Fernando Moraes/UOL
Terreno em Osasco destinado a construção de um campus da Unifesp Imagem: Fernando Moraes/UOL

Flávio Costa

Do UOL, em Brasília

06/06/2017 04h00

O MPF-SP (Ministério Público Federal em São Paulo) quer que o STF (Supremo Tribunal Federal) considere inconstitucional uma lei vigente desde a ditadura militar que permite ao Exército vender imóveis sem licitação e autorização de outro órgão público.

O UOL revelou no domingo (4) que procuradores da República em São Paulo abriram pelo menos dois inquéritos para apurar suspeitas de irregularidades em contratos de repasses de terrenos envolvendo o Exército brasileiro e a FHE (Fundação Habitacional do Exército), uma entidade dirigida por militares, mas de direito privado.

O procurador da República Edilson Vitorelli enviou na sexta-feira (2) ao procurador-geral da República, Rodrigo Janot, um pedido para que o chefe do MPF entre no STF com uma ação chamada ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental).

A ADPF é uma ferramenta jurídica utilizada para reparar atos lesivos do poder público, especialmente aqueles decorrentes de leis anteriores à Constituição de 1988. Caso o plenário do Supremo julgue a ação procedente, a lei em questão será impugnada.

Placa do Exército - UOL - UOL
Placa indica área militar na estrada da Coudelaria, no interior de São Paulo
Imagem: UOL
Promulgada pelo presidente general Emílio Garrastazu Médici, durante a ditadura militar, a lei 5.561/1970 permite que o Comando do Exército aliene imóveis destinados à Força Armada, sem a necessidade de consultar qualquer outro órgão público.

Procurada pelo UOL,  a assessoria de comunicação do Exército afirmou que "tem a possibilidade de fazer a permuta de áreas que não mais atendem aos interesses militares por obras a construir". O Exército afirma ainda que a lei foi, posteriormente, referendada pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça). A Força Armada declara ainda que os contratos firmados com FHE foram regulares e estão de acordo com a legislação vigente.

Lucro milionário

Em um dos casos investigados, a FHE teve lucro milionário ao receber do Exército, por conta de um contrato de permuta firmado em 2004, uma área de 211 mil m² localizada em Osasco --cidade da região metropolitana de São Paulo-- e conhecida como "Morro do Farol".

Procurador Edilson Vitorelli - UOL - UOL
O procurador da República Edilson Vitorelli em seu gabinete
Imagem: UOL
Pelo contrato de permuta --quando uma das partes se obriga a dar algo em troca de alguma coisa, que não seja dinheiro--, a fundação deveria prestar serviços para a Força Armada, a exemplo de construção de casas no interior paulista, no valor total de R$ 15 milhões. Esta cifra corresponderia à avaliação feita pelo próprio Exército a respeito do preço do terreno, à época.

Quatro anos depois, a FHE vendeu o terreno para a Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) pelo preço de R$ 25 milhões. Durante a negociação, o terreno chegou a ser oferecido por R$ 35 milhões, apurou a reportagem. No local, está prevista a construção de um campus da instituição de ensino.

Ação civil pública

Em outro caso, uma ação civil pública de autoria do procurador da República Edison Vitorelli impede, desde 2012, que o Exército repasse à FHE (Fundação Habitacional do Exército) um terreno localizado entre as cidades de Campinas e Valinhos (86 km distante da capital paulista).

Vitorelli alega que a área tem grande valor ambiental e a transferência de posse não é legal. O processo tramita na 8ª Vara Federal em Campinas. Por sua vez, o Exército contesta essa avaliação e afirma que o contrato de permuta com a fundação é regular.

O procurador também contesta o valor atribuído ao terreno que consta no contrato, R$ 12,4 milhões. "Essa avaliação está eivada de vícios e é de frágil credibilidade", diz.

Exército - UOL - UOL
Vista área do terreno de propriedade do Exército na região de Campinas
Imagem: UOL
O contrato prevê que, em contrapartida, a FHE realizaria obras para o Exército, por meio "da construção e entrega de edificações”, sendo que uma parte do valor do contrato ficaria como crédito do Exército junto à fundação.

"As obras de contrapartida previstas já haviam sido realizadas naquela ocasião e já estavam sendo utilizadas pelo Exército desde meados de 2008. Contudo, considerando que há uma ACP (ação civil pública) em curso, o Comando da Força aguarda o deslinde da ação judicial", informa o Exército.

Fundação criada em 1980

Criada por lei no ano de 1980, ainda no regime militar, a FHE é uma fundação vinculada ao Exército, com finalidade social e sem "fins lucrativos", como prevê seu estatuto.

Em seu site, está escrito que a missão da fundação é "promover melhor qualidade de vida aos seus beneficiários, facilitando o acesso à casa própria e a seus produtos e serviços".

"A natureza jurídica da FHE é sui generis e merece estudo acadêmico a seu respeito; afinal de contas, age como instituição de crédito/financeira, incorporadora e empreiteira, auferindo lucro em transações que deveriam atender tão somente os fins institucionais a que foi criada. A Fundação Habitacional do Exército é, pois, em verdade, entidade privada, injustificadamente beneficiada nos negócios jurídicos firmados com o Exército Brasileiro", afirma o procurador Edilson Vitorelli, em sua representação a Janot. 

O procurador acrescenta: "Isso sem explorar em demasia a promíscua relação entre a FHE e o próprio Exército: os cargos de diretoria da fundação são exercidos por oficiais da ativa ou reformados, a maioria de alta patente, que sujeitam aqueles de patente inferior --ainda que de forma velada, em razão da hierarquia típica da organização militar-- a contratarem com a fundação".

Placa Unifesp - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Placa indica parceria entre governo federal e Unifesp em Osasco
Imagem: Fernando Moraes/UOL
A FHE afirmou, por meio de respostas enviadas por sua assessoria de imprensa, que, em relação ao terreno de Osasco, "cumpriu os termos do contrato, executando as contrapartidas nele previstas" e que a extensão da área "não a vocacionava" para finalidade de construção de um projeto habitacional.

Ao ser questionada a respeito da discrepância de valor do mesmo terreno, em tão pouco espaço de tempo, a FHE disse que "a valorização ou a desvalorização de imóveis dependem de variáveis do mercado, sobre as quais não tem ingerência alguma".

A FHE disse ainda que "todo o processo relacionado à aquisição do Morro do Farol pela Unifesp foi objeto de análise pelo Tribunal de Contas da União, que julgou regulares o procedimento e seus valores".

A respeito do terreno de Valinhos, que "aguarda o julgamento da ação civil pública para avaliar a vocação do terreno e, se for o caso, desenvolver um projeto para a área". Não há previsão para que o juiz federal responsável pelo caso emita sua sentença.

Por sua vez, a Unifesp afirmou que o processo de compra do terreno de Osasco foi feito pelo Ministério da Educação e, posteriormente, "analisado por uma Comissão de Sindicância da universidade por solicitação da Controladoria Geral da União (CGU), no qual não foram encontradas irregularidades".