Ao lado de processos da Lava Jato, STJ julga trem lotado, liberdade de macaco e papagaio da família
Ao lado de pedidos de habeas corpus de envolvidos na Lava Jato e processos em que governadores de Estado aparecem citados nas delações da Odebrecht, tramitam no Superior Tribunal de Justiça 339.553 processos distribuídos para os 33 ministros --média que supera 10 mil para cada um deles.
É impossível designar se todos eles são relevantes, como o próprio STJ reconhece, mas, em um mês, a corte teve que decidir sobre desde um vagão lotado de trem em São Paulo até um rato que assustou uma consumidora em uma unidade de rede de fast food. Ainda que eles estejam inseridos no direito do consumidor --e sirvam para que abusos cometidos por grandes corporações sejam coibidos-- surge a pergunta: eles deveriam estar ali, na segunda mais alta corte brasileira?
“Isso é uma anomalia, uma coisa absurda um tribunal como o STJ ficar julgando causas desse tipo”, afirma o jurista Luiz Flávio Gomes. “Deveria ter uma proibição [de esses processos chegarem até lá] e não passar da esfera estadual porque não tem relevância nacional. A facilidade como se vai ao STJ ou ao Supremo Tribunal Federal... É preciso colocar alguns obstáculos e usar uma mediação em que a estrutura da Justiça não seja atualizada. Devem ser criadas alternativas. É um sistema muito burocratizado.”
Na divisão hierárquica da Justiça brasileira, o STJ só deve julgar processos que ferem alguma lei em vigor no país; o Supremo, por exemplo, só avalia os casos em que há ameaça à Constituição. No ano passado, o Superior Tribunal de Justiça julgou 8,5% mais processos do que no ano anterior. O número de novos processos motivou a corte a adotar, nos últimos meses de 2016, uma triagem nas ações, o que, segundo a presidência do tribunal, evitou a distribuição de cerca de 30% de recursos recebidos.
É uma anomalia um tribunal como o STJ ficar julgando causas desse tipo. Deveria ter uma proibição [de chegarem até lá] e não passar da esfera estadual
Luiz Flávio Gomes, jurista
Mesmo assim, os processos continuam chegando --quase sempre motivados por recursos de empresas que se recusam a cumprir a sentença judicial professada por um tribunal estadual.
Foi o caso do advogado e professor constitucional Felippe Mendonça, 39. Em 2013, o Tribunal de Justiça de São Paulo conferiu ganhou de causa à ação em que ele exigia indenização da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) por transitar em vagão superlotado.
“Passei a madrugada fazendo a petição. O juiz de primeira instância disse que era degradante, mas que eu vivia numa grande cidade e deveria me acostumar com as mazelas. Aí recorri ao Tribunal de Justiça, que me deu o ganho de causa. E eles [a CPTM] recorreram ao STJ. No tribunal, consegui os cinco ministros concordando. Ainda cabe recurso extraordinário contra essa decisão”, afirma o advogado.
O próprio advogado reconhece que o processo não cabia ao STJ. Segundo ele, não é função dessa corte rever questão fáticas --a fase de conhecimento do processo é a primeira instância. “A CPTM queria que o STJ ouvisse testemunhas, e não tem isso. Dentro do recurso, eles questionam se estava dentro ou fora do vagão. E, no processo, era claro que eu estava dentro. Não havia o que discutir no STJ.”
Para Mendonça, pelo fato de o regime ser federalista, a decisão do Estado deve prevalecer, exceto se fere uma lei ou a Constituição. “A decisão da Justiça do Estado deve ser soberana. Deveriam ser bem mais raras e restritas essas revisões por um tribunal superior. Não cabia entrar com novo recurso.”
A decisão favorável ao advogado foi referendada pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça em maio. Cinco ministros optaram por manter o acórdão da Justiça de São Paulo que condenou a CPTM a indenizar Mendonça em R$ 15 mil.
Ratos, macaco e papagaio
No mesmo mês, a corte também reiterou que as decisões da primeira instância e do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro estavam corretas ao exigir que o McDonald’s pagasse R$ 40 mil a uma consumidora que se acidentou ao fugir de um rato. Em outra decisão, uma senhora do Recife teve finalmente o direito de residir com seu papagaio, e clientes que ficaram duas horas na fila de um banco em Aracaju foram contemplados com uma indenização.
“A matéria de fato acaba se imiscuindo em possíveis questões apenas de direito e subindo para o tribunal, e o tribunal julga casos que nem sabem como chegaram lá. Como o Supremo, que teve que decidir quem foi o campeão brasileiro de 1987. Pelo amor de Deus: deem uma decisão jurídica e afastem [esses processos do tribunais superiores]”, afirma o ex-ministro do STJ Gilson Dipp.
Ele lembra de um caso anterior, sobre se um macaco poderia ter direito a habeas corpus. “O sistema recursal permite algumas aberturas que chegam a esse desvio de finalidade”, afirma.
O tribunal julga casos que nem sabem como chegaram lá. Como o Supremo, que teve que decidir quem foi o campeão brasileiro de 1987. Pelo amor de Deus: deem uma decisão jurídica e afastem [esses processos dos tribunais superiores]
Gilson Dipp, ex-ministro do STJ
Segundo ele, o tribunal tem tentado filtrar suas decisões nos chamados recursos repetitivos --a exemplo do que ocorre com a repercussão geral no Supremo, que dá o mesmo entendimento para casos parecidos que chegam à corte. “Agora está se criando uma comissão dos casos que devem prioritariamente ser julgados no STJ. O STJ tem várias súmulas, e a súmula 7 diz que o recurso não pode reapreciar fatos e fórmulas, só questões de direitos.”
Dipp, no entanto, acha que o tribunal não deve se omitir, apenas filtrar o que deve ou não julgar. “Toda vez que o tribunal peca pela banalização das questões que julga ou se excede, trancando as decisões que deveria julgar, tanto um como outro repercutem na avaliação geral. Mas a banalização pode gerar novos processos. Essa do macaco e a do papagaio... pelo amor de Deus.”
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