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TJ e MP paulistas abrem mão de fiscalizar Estado em troca de cargos e salários, diz estudo

O ex-presidente do TJ-SP José Renato Nalini, com o governador Geraldo Alckmin (à dir.), ao assumir a Secretaria da Educação um mês após sair do cargo - Hélvio Romero/Estadão Conteúdo
O ex-presidente do TJ-SP José Renato Nalini, com o governador Geraldo Alckmin (à dir.), ao assumir a Secretaria da Educação um mês após sair do cargo Imagem: Hélvio Romero/Estadão Conteúdo

Marcos Sergio Silva

Do UOL, em São Paulo

05/08/2017 04h00

Responsável por fiscalizar as ações do Estado, o Ministério Público paulista estaria abrindo mão de tarefas que garantem a cidadania por interesse em cargos no Executivo e vantagens pecuniárias, como abonos e adicionais como o auxílio-moradia que fazem os vencimentos ultrapassarem o teto do funcionalismo público, de R$ 33.763, em 97% dos casos. Por sua vez, o Tribunal de Justiça de São Paulo trabalharia em conjunto com o governo do Estado, a não ser quando vantagens salariais são questionadas. 

Estas conclusões são do estudo “Uma Espiral Elitista de Afirmação Corporativa: Blindagens e Criminalizações a partir do Imbricamento das Disputas do Sistema de Justiça Paulista com as Disputas da Política Convencional”, apresentado em fevereiro deste ano como tese de doutorado em administração pela FGV (Fundação Getúlio Vargas) pela supervisora-geral do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), Luciana Zaffalon, advogada e ex-ouvidora externa da Defensoria Pública. A base da pesquisa são todos os 566 processos analisados pela presidência do TJ-SP entre 2011 e 2015.

“Eu tinha clareza do impacto desses dados. Por isso optei pela metodologia mais conservadora e completa possível para que não houvesse a possibilidade de apontar recorte enviesado da minha análise”, afirma Zaffalon. “Trabalhei apenas com o universo de dados, sem nenhum recorte. É uma proteção para que o resultado seja considerado sem o questionamento do viés que teria tomado.”

O estudo durou três anos e foi elaborado a partir de um estágio de pesquisa com o sociólogo Boaventura de Souza Santos. Zaffalon analisou todas as vezes em que o Estado de São Paulo recorreu na Justiça após ser derrotado em primeira instância, e como o MP (que tem como dever constitucional justamente questionar o Estado) agiu nessas situações.

Enquanto José Renato Nalini presidiu o TJ-SP, entre 2014 e 2015, foram acolhidos todos os recursos do Estado em relação a licitações, atos e contratos e em casos de privação de liberdade. Ou seja, o Estado de São Paulo reverteu todas as decisões em que havia sido derrotado e recorreu. Na gestão de Ivan Sartori (2012-2013), as taxas de acolhimento foram menores, mas expressivas (85% em casos de prisão e 77% em licitações). Nalini hoje é secretário estadual da Educação do governo Geraldo Alckmin. 

Por meio de nota, o Tribunal de Justiça afirmou que teve conhecimento da tese divulgada pela pesquisadora Luciana Zaffalon somente pela imprensa. "De qualquer forma, o TJ-SP tem todo o interesse que se produzam análises que possam ajudar a Justiça paulista e brasileira e, a partir das informações trazidas pela pesquisadora, deu início a uma série de estudos para verificar a pertinência dos dados por ela levantados e a consistência dos recortes utilizados para as conclusões. Por essas razões, nesse momento, o TJ-SP não tem elementos para emitir pronunciamento sobre a tese divulgada dada, inclusive, a sua extensão. Mas, todo o trabalho será devidamente analisado e, se for o caso, contrastado."

Sem mexer nos supersalários

Outro ponto apontado pelo estudo é que, das 129 vezes em que o Estado de São Paulo questionou os supersalários (vencimentos acima do estimulado pela Constituição) de funcionários do MP e do TJ, foi derrotado em todos. Ou seja: neste tema específico, aplicar os limites dos tetos dos salários, o Estado perdeu todas.

O estudo não pode tabelar os salários do tribunal porque os arquivos cedidos não permitiam a catalogação --é usada como base o Anuário do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) de que a média salarial do TJ era de R$ 45.906,02 em 2015.

“Os 129 casos que trataram da não aplicação do teto remuneratório apresentaram-se de diferentes formas nas decisões dos processos de suspensão. As diferenças, contudo, não implicaram alteração no percurso processual dos debates nem nos resultados das decisões proferidas pelos presidentes do tribunal frente ao inconformismo das pessoas políticas afetadas, que requereram a suspensão”, aponta o estudo. “Se o Estado buscou aplicar os limites do teto remuneratório, [...] a presidência do tribunal, por sua vez, não teve reservas em afastá-lo em nenhum dos 129 processos analisados, consolidando, em 100% dos casos, o entendimento pela não aplicação dos limites de recebimentos.”

Se o Estado buscou aplicar os limites do teto remuneratório, [...] a presidência do tribunal, por sua vez, não teve reservas em afastá-lo em nenhum dos 129 processos analisados

Luciana Zaffalon em seu estudo

Os vencimentos mensais do MP-SP, assim como os do TJ-SP, também ultrapassam o teto constitucional. De acordo com a tese de Luciana Zaffalon, apenas 60 dos 1.920 registros de vencimentos do Ministério Público paulista não ultrapassam R$ 33.763.

Isso não significa que o salário de 97% do corpo de promotores e procuradores do Estado seja maior do que determina a Constituição. O próprio estudo aponta que os salários batem, no máximo, em R$ 30 mil, mas são acrescidos de vantagens como abonos, indenizações e adicionais. Com a soma desses penduricalhos, existem 109 vencimentos no MP-SP que ultrapassam R$ 60 mil. 

“A legislação não proíbe o pagamento de verbas indenizatórias”, afirma Ricardo Prado, procurador de Justiça do Ministério Público de São Paulo. “Óbvio que as verbas extrateto deveriam ser limitadas. Não há ilegalidade, mas uma questão política de governo: eles trocaram a designação --vencimentos, verbas de representação-- que virou subsídio. Algumas coisas permaneceram de fora.”

Segundo Prado, foi uma estratégia do governo para que promotores e procuradores aposentados não recebessem salários equivalentes ao de quem está na ativa. “O abono permanente foi algo criado para a turma não se aposentar. É a verba que você paga para a Previdência e o Estado, para quem já tem tempo de se aposentar, devolve esse valor. Como o salário é alto, você vai ter que pagar duas pessoas --uma inativa e outra ativa. Isso cria deformações, já que a nossa lei prevê igualdade de vencimentos entre o pessoal da ativa e os inativos. O inativo não ganha a mesma coisa, porque, se aposentar, perde verbas. [Por isso] eles querem aumento de salário”, afirma.

O Ministério Público, por meio de nota, afirmou que "tem sido comum, às vezes por má-fé e às vezes por desconhecimento, que muita gente confunda remuneração com indenização, conforme já reiteramos na publicação de reportagem sobre o mesmo estudo em 28 de abril deste ano". "Nenhum membro do MP-SP recebe mais do que o teto. Pagamentos de natureza indenizatória, em que o promotor de Justiça é ressarcido por despesas que realizou no cumprimento de sua função, não constituem remuneração, segundo estabelecem a Constituição Federal, a Lei Orgânica do Ministério Público, as resoluções do CNMP, do CNJ e, por fim, o Supremo Tribunal Federal."

O governo do Estado, também por meio de nota,  afirmou que não cabe ao Executivo a definição da política salarial dos integrantes dos Poderes Legislativo e Judiciário, bem como dos membros do Ministério Público e do Tribunal de Contas. "Portanto, é absolutamente descabida a suposta associação feita pela pesquisadora, vez que as remunerações de outros poderes independem das decisões e atos do governador."

Quando a política interfere

Nos últimos 18 anos, o cargo de secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo foi ocupado por egressos no Ministério Público. A lista começa com Marco Vinicio Petrelluzzi, ainda no governo Mário Covas (PSDB), em 1999, e passa por Saulo de Castro Abreu, Ronaldo Marzagão, Antonio Ferreira Pinto, Fernando Grella, Alexandre de Moraes e o atual, Magino Barbosa.

Fernando Capez, o ex-secretário de Segurança e atual ministro do STF Alexandre de Moraes (ambos egressos do MP) e Alckmin na posse de Magino Barbosa - Chello Fotógrafo/Futura Press/Estadão Conteúdo - Chello Fotógrafo/Futura Press/Estadão Conteúdo
Fernando Capez, o ex-secretário de Segurança e atual ministro do STF Alexandre de Moraes (ambos egressos do MP) e Alckmin na posse de Magino Barbosa
Imagem: Chello Fotógrafo/Futura Press/Estadão Conteúdo

“O que você pode reclamar de facilidades do MP é a ligação do MP com o governo do Estado”, afirma o procurador Ricardo Prado. “Isso realmente não nos tem beneficiado --pelo contrário, isso nos prejudica. Já começa com a chefia do Ministério Público ser escolhida pelo governo. A chefia do Judiciário é escolhida pelos próprios desembargadores. O interesse do governo pende para um lado. É uma tentativa de controlar a instituição.”

A ligação do MP com o governo do Estado [...] não nos tem beneficiado --pelo contrário, isso nos prejudica. Já começa com a chefia do Ministério Público ser escolhida pelo governo

Ricardo Prado, procurador do Ministério Público do Estado de São Paulo

Segundo a pesquisadora Luciana Zaffalon, como todas as carreiras do MP passam regularmente por eleições onde os únicos atores que votam nos cargos para preenchimentos são os próprios membros da carreira, as eleições coroam projetos corporativos, com uma dinâmica de financiamento do governo do Estado. Procuradores e promotores elegem uma lista com três nomes, que é submetida ao governador, que escolhe o nome do procurador-geral do Estado baseado nela.

“No ano de 2015, o MP gastou só com benefícios 421 milhões. Ele recebeu de suplementação orçamentária 216 milhões. Se não tivesse esse gasto com penduricalhos, não precisaria recorrer ao Executivo para a suplementação orçamentária de suas despesas. Há a necessidade de o gestor da carreira negociar com o Executivo para pagar os penduricalhos corporativos que mobilizam as eleições internas, e os órgãos estão preocupados com questões corporativas nas eleições”, aponta o estudo.

Procurado, o Ministério Público do Estado de São Paulo afirmou que "quanto à pretensa passividade do Ministério Público em relação aos atos do governo do Estado, a crítica não guarda a mínima ligação com a realidade dos fatos". "Inúmeros membros do governo estadual têm sido processados na esfera cível e penal pelos membros do MP-SP, que têm autonomia no exercício de suas prerrogativas garantida pela Constituição. Só nas Promotorias do Patrimônio Público há cerca de 1.500 inquéritos e ações civis que envolvem agentes públicos, boa parte deles ligada ao governo estadual. Isso sem contar os feitos de natureza penal por iniciativa de outros promotores. Promotores e procuradores que integram o governo aceitam o convite em caráter estritamente pessoal, não institucional. A indicação do procurador-geral de Justiça pelo governador a partir de lista tríplice se dá por comando legal."

O Estado afirmou que a análise da pesquisadora "é parcial e equivocada em relação à composição do secretariado estadual". "O quadro de secretários é amplo e conta, além de ex-integrantes do Judiciário e do Ministério Público, com professores universitários, pesquisadores, representantes da sociedade civil e das áreas científicas, cultural e servidores públicos de carreira. A escolha é feita de forma a melhor atender ao interesse público, aproveitando-se do conhecimento, da competência técnica e capacidade de gestão de cada um destes profissionais. Importante destacar também que o Estado é defendido judicialmente pela Procuradoria-Geral do Estado, que possui nos quadros profissionais que praticam a advocacia pública com reconhecida competência, eficiência e espírito público."