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Desafio de Bolsonaro é entender nossa autonomia, diz união das prefeituras

Glademir Aroldi, presidente da CNM (Confederação Nacional dos Municípios) entre 2018 e 2021 - Agência LAR/CNM - 11.dez.2018
Glademir Aroldi, presidente da CNM (Confederação Nacional dos Municípios) entre 2018 e 2021 Imagem: Agência LAR/CNM - 11.dez.2018

Gabriela Fujita

Do UOL, em São Paulo

12/12/2018 04h00

Negociar com as 5.568 prefeituras brasileiras estará entre as muitas tarefas que serão assumidas pelo governo Bolsonaro a partir de 2019. Cerca de 54% -- ou 3.000 cidades -- têm orçamento que depende majoritariamente de verbas recebidas do governo federal, e várias ainda mantêm parcerias com a União em programas de atendimento à população.

"(Esperamos) que a gente possa ter na Casa Civil, na Secretaria de Assuntos Federativos um espaço para o diálogo, para a conversa, para que a gente possa construir as coisas juntos", diz Glademir Aroldi, presidente da CNM (Confederação Nacional dos Municípios) entre 2018 e 2021. "Esse é o objetivo, não tem outro caminho. Sem que a gente perca a autonomia, a autonomia é indispensável."

Em entrevista à reportagem do UOL, Aroldi afirma que, ao longo dos anos, os governos federal e estaduais transferiram suas atribuições para os municípios sem oferecer uma contrapartida financeira equivalente, como no caso do sistema público de saúde. Ele critica também a quantidade de programas federais oferecidos aos municípios, que são muitos, mas de pouca qualidade, na sua avaliação. E aponta a lentidão causada pela burocracia como um dos principais problemas no processo de transferência de recursos da União para os municípios.

Veja abaixo os principais trechos da entrevista.

UOL - O que os municípios esperam do novo governo?

Glademir Aroldi - A expectativa é boa, que a gente possa possibilitar um clima favorável para investimentos no país, porque isso aumenta nosso PIB (Produto Interno Bruto). O aumento da receita depende do crescimento do PIB.

A gente briga pela regulamentação do pacto federativo (o conjunto de regras sobre quem faz o quê e com que fonte de arrecadação), por uma participação maior no bolo tributário, já que nós estamos participando com apenas 19%. Os estados têm 31% e a União acaba ficando com 50%.

Com a Constituição de 1988, nós ficamos com uma participação de 13%. De lá para cá, aumentamos para 19%. Mas os estados e a União se afastaram dos serviços à população brasileira e transferiram isso para os municípios. Houve uma transferência de responsabilidades muito maior do que o aumento da participação no bolo tributário. É isso que está prejudicando a gestão econômica dos municípios. 

Qual seria o ideal?

Todo ano a gente briga por uma participação maior. Para fazer frente a todas as nossas atribuições, que ao longo do tempo eram da União e dos estados e passaram a ser esses serviços prestados pelos municípios, nós teríamos que ter em torno de 23%, 24% de participação no bolo tributário. 

A União se afastou desses serviços e criou programas federais. Todos eles, subfinanciados. Por exemplo, o Estratégia Saúde da Família. Sem contar o Mais Médicos, a União não tem médicos trabalhando [nos municípios]. Antigamente, tinha médicos atendendo nos postos de saúde, do estado e da União.

O custo de cada equipe do Estratégia Saúde da Família varia de R$ 45 mil a R$ 50 mil por mês. Médico, enfermeiro, agentes comunitários de saúde etc. A União repassa R$ 10 mil por mês para municípios até 30 mil habitantes e R$ 7.000 para municípios acima de 30 mil habitantes. Esses valores nunca foram atualizados. Quando o programa começou, em 1994, o custo da equipe era de R$ 17 mil. Os salários aumentam todos os anos, aí o município tem que tirar do seu orçamento essa contrapartida. 

1º.fev.2016 - Pacientes enfrentam fila para atendimento no Hospital Universitário Professor Edgard Santos, em Salvador (BA) - Romildo de Jesus/Futura Press/Estadão Conteúdo - Romildo de Jesus/Futura Press/Estadão Conteúdo
1º.fev.2016 - Pacientes na fila por atendimento no Hospital Professor Edgard Santos, em Salvador (BA)
Imagem: Romildo de Jesus/Futura Press/Estadão Conteúdo

Por que os municípios estão aumentando o índice de gastos com pessoal?

É muito comum a gente ouvir críticas ao gestor local por conta disso: aumentou o limite de gasto com pessoal, não está cumprindo a Lei de Responsabilidade Fiscal. É que a União coloca à disposição mais de 390 programas, e quando o município adere ao programa, ele tem que contratar pessoas. 

No programa da Merenda Escolar, para receber o valor que a União coloca à disposição, você precisa contratar uma nutricionista para atender ao programa. Em municípios pequenos, com até 20 mil habitantes, o valor que a União repassa não cobre o salário da nutricionista. Era R$ 0,30 por dia, por aluno. O presidente Temer (MDB) reajustou em 20% o valor, que foi para R$ 0,36. Um município pequeno, que tem 300 alunos na sua rede municipal, o que ele recebe da União paga, talvez, somente o salário da nutricionista. E o restante da equipe, a compra da alimentação? 

O Bolsa Família é um programa interessante, é um programa federal. Quem controla o Bolsa Família? Quem é responsável pelas informações? Precisa ter uma equipe no município. É bom porque entra um dinheiro interessante naquele município, mas aí, para poder fazer esse controle, precisa contratar pessoas.

É por isso que nosso gasto com pessoal tem aumentado nos últimos anos.

11.dez.2018 - Glademir Aroldi, presidente da CNM (Confederação Nacional dos Municípios) entre 2018 e 2021 - Jeff Viana/Agência CNM - Jeff Viana/Agência CNM
Glademir Aroldi, presidente da CNM (Confederação Nacional dos Municípios)
Imagem: Jeff Viana/Agência CNM

Qual será o principal desafio do próximo governo com os municípios?

Nós temos várias proposições, entre elas as transferências dos valores. Nós precisamos simplificar isso. Nós entendemos que a equipe do governo não precisa trabalhar no controle, mas precisa trabalhar na orientação. Precisa nos ajudar a trabalhar na qualificação dos servidores que atuam na ponta, na transferência de fundo a fundo, sem descuidar do controle. Mas quem faria esse controle? Nós temos os Tribunais de Contas dos estados, o Tribunal de Contas da União, os controles internos dos municípios, e quem cometer bobagem, que vá pagar por isso.

Essa burocracia é muito pesada, acaba prejudicando a população. O dinheiro demora a chegar. Quando chega, chega com defasagem. Isso cria uma dificuldade. É por isso que a gestão pública no país é malvista

Nós estamos propondo para o governo uma plataforma nacional de transferências. Que o governo possa efetivamente fazer um rastreamento do valor que é transferido. Nós precisamos de um sistema único. Cada ministério tem uma regra, é uma dificuldade enorme [para receber a verba]. A equipe lá na ponta não compreende direito, aí demora na prestação de contas. Quando você tiver rastreabilidade desses valores, simplificada, isso já vai ser uma forma de controle.

As emendas parlamentares, em média, levam 36 meses entre a solicitação e a prestação de contas. Por que não fazer a transferência fundo a fundo? O FPM (Fundo de Participação dos Municípios) é uma transferência fundo a fundo. Ele entra no dia 10, no dia 20 e no dia 30. Você nunca ouviu um escândalo de transferência de FPM no Brasil.

De compra de ambulância, de merenda escolar, você vê escândalo todo dia. Quantas obras estão paralisadas no país? Até liberar o dinheiro leva meses

Outra coisa é o enxugamento no número de programas. Vamos manter os principais e vamos botar o recurso adequado para esses programas. Porque, senão, você fica atendendo um monte de coisinhas da população brasileira e, em todos eles, o serviço não tem a qualidade que a gente espera. Diminui o número de programas, deixa os principais e faz um atendimento com qualidade.

22.out.2015 - Presidente Dilma Rousseff durante audiência com a Confederação Nacional dos Municípios no Palácio do Planalto - Roberto Stuckert Filho/PR - Roberto Stuckert Filho/PR
22.out.2015 - Presidente Dilma Rousseff durante audiência com a Confederação Nacional dos Municípios
Imagem: Roberto Stuckert Filho/PR

O que é o mais difícil hoje nos municípios?

Nós precisamos estruturar melhor o nosso sistema de saúde, para que as referências possam efetivamente funcionar. Os municípios estão investindo, em média, quase 23% em saúde, quando deveriam estar investindo 15%, que é o que a lei estabelece. Isso por causa da judicialização dos serviços públicos, especialmente na área da saúde.

A atenção básica, o município consegue atender. Quando o cidadão precisa da média e da alta complexidade, ele tem dificuldade. É uma demanda reprimida muito alta, especialmente na média complexidade

Quando o cidadão não é atendido, e aí não seria obrigação da gestão local, ele entra na Justiça, buscando um atendimento através das vias judiciais. Normalmente, o juiz da comarca determina esse atendimento para o gestor local. E isso fez com que a gente tenha um número enorme de ações judiciais, fez com que a gente tivesse que sair na corrida para atender a decisão judicial, precisando investir mais do que nós deveríamos estar investindo pela lei. Tenho casos de municípios que estão investindo até 38% do seu orçamento em saúde. A média é 22%. Imagina como é que ficam as outras atividades.

Bolsa Família - Edson Silva - 2011/Folhapress - Edson Silva - 2011/Folhapress
O Bolsa Família é um dos programas federais à disposição dos municípios
Imagem: Edson Silva - 2011/Folhapress

Como a União poderia ajudar?

Aí não é só a União, mas os estados também. É esta relação que nós queremos ter com o futuro governo. Espaço para a gente dialogar, para a gente levar as dificuldades. Quem conhece a aldeia é quem mora nela, não é verdade? É o prefeito que está lá na ponta e o secretário municipal que sabem os problemas que enfrentam no dia a dia. E nós temos essa capacidade de, em poucos dias, em um curto espaço de tempo, levantar todas essas dificuldades.

Os municípios são a ferramenta mais importante na prestação de serviços da população brasileira. Se derem condições ao gestor local, evidentemente rastreando valor, com controle, com regras, a gente vai melhorar a qualidade dos serviços públicos no país

Como foi a relação dos municípios com os governos anteriores?

O presidente Temer, que eu acompanhei mais de perto, tem uma visão muito clara da federação brasileira. E ele compreende que o fortalecimento dos municípios, da gestão local é importante. E como é que fortalece? Também fazendo as reformas. A reforma fiscal, tributária, da Previdência. Precisamos avançar muito mais com o futuro governo nesse fortalecimento. E a relação, se possível, continuar essa que a gente está tendo com o atual governo.

Dois mil decretos em situação de emergência são emitidos todos os anos no Brasil para socorrer municípios por enchente, por estiagem. Dá para evitar isso, nós estamos investindo pouco na causa