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O que dizem parentes de desaparecidos e mortos pela ditadura em ato no RJ

Marina Lang

Colaboração para o UOL, no Rio

01/04/2019 04h00

A Cinelândia, no centro do Rio de Janeiro, foi tomada por fotos em preto e branco de desaparecidos e mortos pelo regime militar neste domingo. Ontem, completaram-se 55 anos do golpe que instalou uma ditadura militar no país.

Houve protestos contra e a favor da ditadura em várias cidades do país,como São Paulo, Brasília e Belo Horizonte.

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A dentista Tânia Roque, 72, ostentava um cartaz de seu marido, Lincoln Bicalho Roque, torturado e morto pelo regime
Imagem: Marina Lang/UOL

No Rio, parentes de mortos e desaparecidos políticos usaram a manifestação para homenagear seus entes queridos.

Perseguida, presa e torturada pela ditadura militar, a dentista Tânia Roque, 72, ostentava um cartaz de seu marido, o sociólogo e professor Lincoln Bicalho Roque, torturado e morto pelo regime em 1973.

"Nós nos conhecemos na luta contra a ditadura, em 1965. Após a passeata dos 100 mil, começou uma repressão muito grande. Não era possível fazer manifestações porque elas eram reprimidas a bala e com prisões. O Lincoln se formou em 1967, se tornou professor da Uerj [Universidade Estadual do Rio de Janeiro] e logo foi cassado pelo AI-5. Ele sempre foi ligado na resistência à ditadura", conta Tânia.

Embora tenha sido preso em duas outras ocasiões, foi em 1973 que o sociólogo foi barbaramente torturado e morto pelo regime.
"Ele foi preso pelo DOI-Codi [órgão da repressão] desarmado. Foi levado para o DOI-Codi, que na época funcionava nas dependências do Exército na rua Barão de Mesquita. Ele foi levado pelo DOI-Codi a um pavilhão de São Cristóvão e metralhado. Conseguimos recuperar seu corpo e enterrá-lo, a muito custo, porque queriam sumir com ele", contou ela.

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Ato no Rio homenageou as vítimas da ditadura militar
Imagem: Marina Lang/UOL

Tânia conta que foi presa em outra ocasião e levada para a Ilha das Flores, na qual há uma unidade da Marinha.

"Lá eu sofri tortura", contou ela, com a voz embargada. "Depois me soltaram, porque eles costumavam fazer isso para, em seguida, prender de novo e desaparecer. Eram muitas as arbitrariedades feitas com as pessoas. Eu vivi clandestina, me escondendo, por muito tempo apenas porque me opunha ao golpe e à ditadura", prosseguiu ela.

Sobre as declarações do presidente Jair Bolsonaro, ela resume em uma palavra: revolta.

Em vez dessas pessoas responsáveis por todos esses arbítrios e crimes contra a humanidade estarem na cadeia, essas pessoas, Jair Bolsonaro e seus seguidores têm a petulância de querer comemorar esse período longo da história. É um absurdo total. A população do Brasil precisa conhecer a história para não concordar com esse tipo de coisa".
Tânia Roque, presa e torturada pela ditadura

Na segunda-feira da semana passada, o porta-voz da Presidência anunciou que o presidente Jair Bolsonaro (PSL) tinha revertido uma proibição de comemorações do golpe militar pelas Forças Armadas. Depois, o presidente recuou e disse que o objetivo era "rememorar", e não comemorar.

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Ditadura não se comemora, diz cartaz de Iara da Silva Pereira
Imagem: Marina Lang/UOL

A estudante de biologia Iara da Silva Pereira, 19, também protestava contra a fala de Bolsonaro. "Estalos demonstrando que estamos lutando porque estamos vendo o Brasil cada vez mais numa posição neofascista. É um perigo muito grande, são muitos retrocessos", declarou.

O advogado Ramires Beltrão do Valle foi ao ato na tentativa de resgatar a memória do seu tio. Ramires Maranhão do Valle, o tio, foi assassinado no Rio de Janeiro em 1973.

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Ramires Beltrão do Valle segura uma foto do tio, Ramires Maranhão do Valle, assassinado em 1973
Imagem: Marina Lang/UOL

"Ele era militante do PCBR (Partido Comunista do Brasil Revolucionário, hoje extinto) desde o movimento secundarista. Foi preso pela 1ª vez aos 16 anos. Com 23, ele tombou assassinado. Ainda não sabemos as circunstâncias do que, de fato, ocorreu e não temos a identificação do corpo. Ele, hoje, é um desaparecido político", contou ele. "É uma página histórica que a gente não conseguiu virar. A família ainda busca as circunstâncias de morte do meu tio. Meus avós já faleceram sem as respostas de como seu filho morreu. A persistência dessa luta é uma agenda humanitária, da dignidade humana. Ainda mais neste ano em que temos um presidente que incentiva a comemoração à barbárie", prosseguiu o advogado.

Sequestro de embaixador

O advogado André Barros, 52, relembrou a tia, Vera Silvia Magalhães, única mulher que participou do sequestro do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick, em setembro de 1969.

"Minha tia, com 21 anos de idade, entrou na luta armada. Não se podia fazer política em lugar nenhum do Brasil. Inclusive o levantamento da rotina do embaixador foi feito por ela -- comigo, com três anos, e ela fingindo que era minha babá. Essa ação armada foi muito bem-sucedida: 15 líderes políticos presos e torturados foram libertados [em troca de Elbrick]", relatou ele ao UOL.

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André Barros relembrou a tia, Vera Silvia Magalhães, em manifestação na Cinelândia
Imagem: Marina Lang/UOL

Vera, no entanto, foi presa no final de 1969. "Ela foi barbaramente torturada. No dia do julgamento dela, cinco seriam julgados. Ela não apareceu. O advogado dela falou para minha avó, Maria Virgínia, que ele não tinha, juridicamente, mais o que fazer, porque minha tia estava à beira da morte no DOI-Codi", prosseguiu.

Segundo ele, a avó então invadiu o 1º Exército do Rio sozinha com as filhas, fazendo um escândalo. Conseguiu que Vera fosse transferida para o Hospital do Exército do Rio.

"Minha tia tem uma foto histórica, onde está sentada em uma cadeira porque ela saiu das torturas sem a movimentação do corpo, que ela recuperou depois numa cirurgia. Ela sai com o Cid Benjamin a carregando em 1970. Foi uma denúncia real de que a tortura ocorria no Brasil", declarou o advogado.

Depois do episódio, Vera e outros 39 militantes políticos se refugiaram na Argélia.

"O que ela sempre pediu foi o reconhecimento de que tortura, assassinato e desaparecimento de pessoas era uma política de Estado. Existiu um decreto de lei, nº 898/69, que permitia aos delegados deixarem as pessoas presas e incomunicáveis por 30 dias, prorrogáveis por mais 30. As pessoas ficavam 60 dias, incomunicáveis, sendo torturadas. Isso é a prova cabal de que a tortura, o desaparecimento de pessoas e os assassinatos eram uma política de Estado", afirmou ele.

Ele também deixou um questionamento a Bolsonaro. "Ele pede para comemorar o golpe, mas ele não abre os arquivos da ditadura. São arquivos ultrassecretos. Se ele se orgulhasse tanto do que foi a ditadura, por que ele não abre os arquivos?", finalizou.

"Você não é nada, é um corpo à mercê deles para sentir dor", diz advogada torturada pela ditadura

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