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Bolsonaro ameaça cortar entrevistas se mídia não publicar dado distorcido

Do UOL, em São Paulo

25/08/2019 19h29Atualizada em 26/08/2019 13h20

O presidente Jair Bolsonaro (PSL) ameaçou ontem não dar mais entrevistas à imprensa caso um tema comentado por ele não fosse tema de reportagens "no dia seguinte". A suposta notícia sugerida pelo presidente, porém, não é verdadeira. Bolsonaro mencionou de forma distorcida informações publicadas há quase dois anos pelo site The Intercept Brasil.

Em outubro de 2017, o site publicou reportagem sobre uma auditoria nas despesas do Senac-RJ (Serviço Nacional de Aprendizagem do Comércio do Rio de Janeiro) com publicidade e palestras em 2016. Nas despesas, constavam 15 palestras feitas pelo jornalista Merval Pereira, da GloboNews e do jornal O Globo, no valor total de R$ 375 mil. Ou seja, R$ 25 mil por palestra.

Crítico frequente do atual governo em suas colunas, Merval foi alvo de Bolsonaro nas declarações feitas ontem à imprensa. Distorcendo as informações, o presidente afirmou que Merval recebeu R$ 375 mil por uma única palestra. Depois, ameaçou não dar mais entrevistas à "toda a imprensa" se a informação incorreta não fosse publicada.

"Acabei de postar aí uma matéria sobre o Merval Pereira. Palestra por R$ 375 mil, tá legal? Tá ok? 375 'pau' [por] uma palestra no Senac, tá ok? Façam matéria agora. Se vocês não fizerem nenhuma matéria sobre isso amanhã nos jornais, eu não dou mais entrevista para vocês, tá legal? Tá combinado? Toda a imprensa, tá combinado? E tem mais nome também, eu só botei um 'nomezinho' hoje. Não estou perseguindo ninguém. Agora, gastar dinheiro público para palestras, aí é brincadeira. Fica escrevendo o tempo todo lá críticas. [Tem que] Criticar, mas mostrar que é uma pessoa isenta, né? Imprensa isenta. Se não fizerem matéria escrita amanhã nos jornais, não tem mais entrevista para vocês aqui, tá legal?", declarou o presidente.

Na manhã desta segunda-feira (26), Bolsonaro de fato não quis responder as perguntas de jornalistas que estavam na frente do Palácio da Alvorada, mas fez um pronunciamento. Ele citou nomes de outros jornalistas da Globo que teriam recebido dinheiro público para dar palestras.

O Senac-RJ administra recursos públicos. O serviço é bancado pela arrecadação de um percentual fixo sobre a folha de pagamento das empresas do setor do comércio. A Receita Federal recolhe os valores e os repassa à entidade.

Ao The Intercept Brasil, a assessoria da Fecomércio-RJ, da qual o Senac-RJ faz parte, defendeu a contratação de Merval afirmando que as palestras estavam "dentro dos objetivos do Senac" de discutir as "circunstâncias vivenciais" de seus usuários.

Bolsonaro pode ser processado?

Bolsonaro cometeu "crime contra a honra" de Merval e pode ser processado por difamação. De acordo com juristas ouvidos pelo UOL, ele pode responder ao processo no STF (Supremo Tribunal Federal), mas provavelmente ele só seria julgado na Justiça comum depois de deixar o cargo.

Advogado constitucionalista, Marcellus Ferreira Pinto explica que só Merval pode processar Bolsonaro sobre o assunto e ele tem seis meses para fazer isso. Por conta do cargo, Merval teria que mover a ação no STF (Supremo Tribunal Federal).

Neste caso, caberia a Corte decidir se julga Bolsonaro durante seu mandato ou se acolhe a queixa-crime e congela sua tramitação. Se isso ocorresse, ele seria julgado pela Justiça comum apenas depois de deixar o cargo de presidente.

Se for um crime comum conexo com a atividade presidencial, ele pode ser processado durante o mandato. Se for comum e desconexo da atividade, o processo é suspenso
Marcellus Ferreira Pinto, advogado constitucionalista

Se a Corte entender que o crime cometido contra Merval esteve relacionado à função presidencial, ela repassa a queixa-crime para a Câmara dos Deputados. "Precisa que dois terços dos parlamentares autorizem a abertura de um processo no Supremo", diz Ferreira Pinto.

Bolsonaro, então, seria afastado por 180 dias. "É o período que o STF tem para julgá-lo."

Se congelada e retomada depois do mandato, a ação seria julgada pela Justiça comum, uma vez que Bolsonaro já não teria foro privilegiado. Para Castelo Branco, o parágrafo 4º do artigo 86 da Constituição garante a imunidade a Bolsonaro.

Outro lado

Em sua coluna de hoje em O Globo, intitulada "A fake news de Bolsonaro", Merval disse que não recebeu os R$ 375 mil, pois deu 13 palestras para o Senac. "As palestras eram abertas a representantes do comércio, da indústria, da educação, políticos locais, estudantes", afirmou o jornalista. "Cada palestra teve a respectiva nota fiscal, incluindo os impostos devidos, e foi declarada no meu Imposto de Renda."

O colunista também criticou a fala de Bolsonaro sobre parar de dar entrevistas se uma notícia sobre as palestras não fosse publicada.

"Deixar de dar entrevistas se jornalistas não fizerem o que ele deseja? Essa 'ameaça' seria apenas risível, não dissesse ela muito de uma personalidade que a cada dia se mostra mais autoritária. E desgostosa de poder muito, mas não poder tudo", escreveu.