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Mandetta venceu Bolsonaro em 'guerra' da pílula do câncer

Jair Bolsonaro e o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, têm adotado discursos diferentes em relação ao uso da cloroquina Imagem: Foto: Isac Nóbrega/PR

Eduardo Militão

Do UOL, em Brasília

01/04/2020 04h00

Resumo da notícia

  • Bolsonaro e Mandetta estavam em lados opostos na votação da fosfoetanolamina, a "pílula do câncer", em 2016
  • À época na Câmara, Bolsonaro convocou deputados para votar e comemorou a aprovação da lei que liberava a "pílula do câncer"
  • Associação Médica Brasileira, que indicou Mandetta ao cargo de ministro, derrubou a lei no STF
  • Ministro diz que "ciência não é dever de quem não é da área" e que a fosfoetanolamina "não serve nem para placebo"

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta (DEM), têm adotado discursos diferentes em relação ao uso da cloroquina como medicamento contra o novo coronavírus: um é mais esperançoso, o outro, mais cauteloso. No passado, os dois travaram uma 'guerra' em torno de outro remédio. A chamada "pílula do câncer", droga sem eficácia comprovada cientificamente, opôs os dois no Congresso Nacional.

Na noite de ontem, Mandetta afirmou ao UOL que a ciência "não é dever dos que não são da área". Mas destacou que a fosfoetanolamina, a pílula do câncer, "não serve nem para placebo" — espécie de comprimido sem remédio, usado para medir eventuais efeitos emocionais e psicológicos do próprio tratamento nos pacientes.

Em 2016, enquanto o então deputado Bolsonaro apresentava projeto a favor da liberação do remédio e pressionava por quórum de votação no plenário, Mandetta fazia discursos a favor da ciência e da busca da verdade na Câmara.

Ao final, a fosfoetanolamina foi aprovada pelo Congresso e sancionada pela então presidente Dilma Rousseff (PT). Mas a distribuição do medicamento foi suspensa pelo Supremo Tribunal Federal (STF), a pedido da Associação Médica Brasileira (AMB), uma das entidades patrocinadoras da indicação de Mandetta para o cargo que ocupa hoje.

Em 15 de janeiro deste ano, Bolsonaro voltou a defender a pílula do câncer: "Não dá para esperar", disse. O UOL pediu esclarecimentos ao presidente, por meio da Secretaria de Comunicação (Secom) do Palácio do Planalto. Não houve resposta.

A substância "jamais passou por qualquer estudo clínico que comprovasse sua eficácia e segurança", informou a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

"Cloroquina tem seu valor", diz Mandetta

O ministro da Saúde contemporizou as diferenças com Bolsonaro. Mandetta destacou que a cloroquina tem alguma utilidade contra o coronavírus. "Cloroquina tem seu valor, sim", disse ao UOL. "Amanhã [hoje] deve sair um trabalho que nos dará mais luz."

Mais cedo, na apresentação do balanço de casos e mortes em razão da covid-19, o ministro declarou que o estudo será "um primeiro passo". "Não tem evidência ainda que pode ser usada [como] profilático [para prevenção de doenças, como as vacinas] e muito menos ainda em pessoas que não estão em estado grave."

O estudo mostrará redução do tempo de permanência dos pacientes nas UTIs (Unidades de Terapia Intensiva). A cloroquina hoje é usada para tratar malária, artrite e lúpus.

Falta transparência na pesquisa da pílula, dizia ministro

A "fosfo" foi desenvolvida pelo professor aposentado da Universidade de São Paulo (USP) Gilberto Chierice, falecido em 2019. E-mails interceptados pela Operação Lava Jato mostram que o ex-senador Gim Argello (PTB-DF) propôs um contrato ao professor para dividir a propriedade intelectual do medicamento. O professor Chierice disse à Polícia Federal que não aceitou a proposta.

Numa Comissão Geral no plenário da Câmara, o então deputado Mandetta disse que faltava transparência à forma como foi feita a pesquisa da fosfoetanolamina. "Esta situação em que nos encontramos agora, desta possível droga com efeitos para o tratamento do câncer, retrata uma sequência de equívocos", disse, em 25 de novembro de 2015, o hoje ministro da Saúde.

Retrata o equívoco do início, de não ter sido submetida, de ter sido distribuída às pessoas sem fazer as perguntas com método, com clareza e com transparência"
Luiz Mandetta, em 25 de novembro de 2015, sobre a "pílula do câncer"

Quando começou a votação de um dos projetos que autorizava o uso e comércio da pílula, o então deputado Jair Bolsonaro procurava fazer os deputados comparecerem ao plenário para dar quórum e aprovar a proposta, chamando até adversários políticos, como Arlindo Chinaglia (PT-SP).

"Convido o querido deputado missionário José Olímpio para que, juntos, sob o comando do deputado Arlindo Chinaglia — comigo não há problema partidário, quando o bem comum é de interesse de todos —, possamos dar o devido polimento a um dos três projetos que estão em andamento", disse, em 3 de março de 2016, o hoje presidente da República.

Em 8 de março de 2016, horas antes de o projeto ser aprovado, Bolsonaro ia para um lado, e Mandetta, para outro.

"Vamos atingir o quórum para votar esse projeto. Tem gente desesperada nos vendo agora", declarou Bolsonaro naquela votação, em plenário.

Eu duvido que alguém aqui não tenha um parente, um amigo acometido desse mal. Nós podemos agora dar uma esperança a essas pessoas"
Jair Bolsonaro, em 8 de março de 2016

Mandetta apelou para a razão. "A maneira como se encaminha esse tema é extremamente perigosa de se fazer ciência", reclamou o então deputado. "Nós estamos reduzindo este debate a quem é a favor de curar o câncer e a quem é contra. Eu vou votar contra, porque tenho responsabilidade com a saúde e com os profissionais que estão do outro lado a prescrever, tratar e dedicar as suas vidas à pesquisa, ao conhecimento, à busca da verdade."

"Tenho certeza que Dilma vai sancionar, tá ok?"

O projeto foi aprovado naquele dia 8 na Câmara. Bolsonaro e seu filho Eduardo Bolsonaro (hoje deputado federal pelo PSL-SP) comemoraram em rede social com dois ativistas a favor da pílula. "Quero agradecer ao deputado Eduardo e Jair Bolsonaro", disse um deles, identificado num vídeo como Wilson. "Se não fossem eles, as coisas iam estar travadas até agora. Depois que eles entraram, foram para cima do pessoal para atropelar e passar por cima de quem estivesse atrapalhando."

Eduardo Bolsonaro afirmou que houve "consenso" na Câmara, "em que pese haver uma pouca resistência".

"É uma vitória da esperança", completou Jair Bolsonaro, que apostou suas fichas em Dilma Rousseff. "Conversamos com o senador Magno Malta. Ele vai pegar esse projeto e vai levar avante. Nos próximos dias, teremos esse projeto na mesa da presidente para ela sancionar. Eu tenho certeza que ela vai sancionar, tá ok?"

Bolsonaro acertou. O Senado aprovou a proposta em poucos dias, em 22 de março. Dilma sancionou em 14 de abril. Mas o STF suspendeu a lei 13.269/16, em 19 de maio de 2016.

Pílula não é remédio ou suplemento alimentar, diz Anvisa

Em 18 de dezembro de 2018, a Anvisa atualizou uma nota sobre a pílula do câncer. A agência disse que ninguém nunca pediu o registro da "fosfo" como remédio ou como suplemento alimentar. "Propagandas nas redes sociais que induzam o consumidor a crer que a fosfoetanolamina, como suplemento alimentar, combata o câncer — ou qualquer outra doença — e atribuam propriedades funcionais e/ou de saúde também são irregulares", disse a Anvisa em nota.

Em 15 de janeiro deste ano, o presidente Jair Bolsonaro voltou a criticar a agência por causa da pílula do câncer. "Tem certas coisas que não dá para esperar", afirmou o presidente na porta do Alvorada. "A Anvisa, por exemplo, não pode protelar por muito tempo a liberação das pautas que interessam à sociedade."

Ontem, o UOL questionou a agência se houve modificação no entendimento a respeito da pílula, mas não houve resposta.

"A ciência tem seus critérios", diz Mandetta

Na noite de ontem, o ministro da Saúde afirmou à reportagem que "ciência tem seus critérios". Mandetta minimizou as discordâncias com Bolsonaro sobre a pílula do câncer.

"Ciência tem seus critérios. Só acredito quando ela concretiza. É meu ofício, é meu dever. Não é ofício nem dever dos que não são da área. Medicina cobra preços muito caros quando seus discípulos infligem as regras hipocráticas. Simples assim", comentou o médico e ministro.

Sem evidências científicas sobre a cloroquina

A Anvisa e o Ministério da Saúde não encontraram evidências científicas cabais da eficácia da cloroquina contra o coronavírus. Mas, se houver acompanhamento médico, dentro de "regras estritas", o uso é permitido para pacientes hospitalizados em estado grave.

O uso se dá no modo "compassivo (por compaixão), já que não há alternativa terapêutica específica para esses pacientes", explicou a Anvisa em um comunicado.

Presidente para cá, ministro para lá

As diferenças entre Bolsonaro e Mandetta:

Quando o assunto é pílula do câncer...

"Eu apelo a parte da oposição que tome o mesmo caminho. Vamos atingir o quórum para votar esse projeto. (...) O partido do câncer é o cemitério. Tem gente desesperada nos vendo agora. Eu duvido que alguém aqui não tenha um parente, um amigo acometido desse mal. Nós podemos agora dar uma esperança a essas pessoas." — Jair Bolsonaro, em 8 de março de 2016.

"A maneira como se encaminha esse tema é extremamente perigosa de se fazer ciência. Nós estamos reduzindo este debate a quem é a favor de curar o câncer e a quem é contra. (...) Eu vou votar contra porque tenho responsabilidade com a saúde e com os profissionais que estão do outro lado a prescrever, tratar e dedicar as suas vidas à pesquisa, ao conhecimento, à busca da verdade." — Luiz Mandetta, em 8 de março de 2016.

Resultado: Anvisa não reconhece eficácia da pílula do câncer contra a doença. Uso e distribuição seguem proibidos pelo STF.

Quando o assunto é coronavírus...

"O FDA americano e o Hospital Albert Einsten, em São Paulo, buscam a comprovação da eficácia da cloroquina no tratamento da covid-19. Nosso governo tem recebido notícias positivas sobre este remédio fabricado no Brasil e largamente utilizado no combate à malária, lúpus e artrite." — Jair Bolsonaro, em 24 de março de 2020.

"Se sairmos com a caixa (de cloroquina) na mão dizendo que pode tomar, podemos ter um problema." — Luiz Mandetta, em 28 de março de 2020.

"Não tem evidência ainda de que pode ser usado profilático [preventivamente] e muito menos ainda em pessoas que não estão em estado grave." — Luiz Mandetta, em 31 de março de 2020.

Resultado: Anvisa e Ministério da Saúde não reconhecem a eficácia da cloroquina contra o coronavírus. Mas, se houver acompanhamento médico, dentro de "regras estritas", o uso é permitido para pacientes hospitalizados em estado grave. O uso se dá no modo "compassivo (por compaixão), já que não há alternativa terapêutica específica para esses pacientes", explica a Anvisa.

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