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Marco Aurélio se despede do STF após 31 anos; relembre críticas e legado

Rafael Neves

Do UOL, em Brasília

01/07/2021 04h00Atualizada em 01/07/2021 07h55

Uma decisão do ministro Marco Aurélio Mello, do STF (Supremo Tribunal Federal), incendiou o país no início da tarde de 19 de dezembro de 2018. Com uma canetada monocrática, sem consulta aos colegas da Corte, ele mandou soltar todos os que estavam presos no país por força de uma condenação em segunda instância.

Com a liminar, concedida a pedido do PC do B, as atenções se voltaram para a sede da PF (Polícia Federal) em Curitiba, onde o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva cumpria pena de 12 anos e 1 mês de prisão pelo processo do tríplex do Guarujá. Lula estava preso porque o TRF-4 (Tribunal Regional Federal da 4ª Região), em Porto Alegre, já havia confirmado a condenação decretada pelo então juiz Sergio Moro no processo. O petista, dessa forma, estava apto a se beneficiar da decisão.

A defesa de Lula não perdeu tempo e, em menos de uma hora, já protocolava um pedido de liberdade na Justiça Federal do Paraná. Membros e apoiadores da Operação Lava Jato protestaram de imediato e pediram a derrubada da decisão. A futura deputada Joice Hasselmann (PSL-PR), à época alinhada ao recém-eleito presidente Jair Bolsonaro, disparou: "Marco Aurélio tem que ser arrancado do STF". Naquele momento, o nome do ministro era odiado pela direita brasileira.

A tensão reinou durante a tarde até que o ministro Dias Toffoli, à época presidente do STF, derrubou a liminar de Marco Aurélio e determinou que toda a Corte deveria discutir a questão. Foi só quase um ano depois que os ministros decidiram, por 6 votos a 5, que réus só podem cumprir a pena depois de esgotados todos os recursos. Ato contínuo, Lula foi solto depois de 580 dias de prisão.

Marco Aurélio votou com o lado vencedor e adicionou este caso ao seu histórico de posicionamentos garantistas, uma das marcas de sua carreira de 31 anos no STF. Mas a trajetória do decano, que se aposentará no dia 12 de julho, também será lembrada pelo protagonismo em julgamentos históricos e em mudanças estruturais no Judiciário brasileiro.

Pelas mãos de Collor

Marco Aurélio Mendes Farias de Mello nasceu no Rio de Janeiro em 12 de julho de 1946. Seu pai, o advogado alagoano Plínio Farias de Mello, mudou-se para o Rio de Janeiro aos 16 anos e casou-se com Eunice Mendes, uma carioca filha de portugueses. O casal teve cinco filhos.

Em entrevista ao projeto História Oral do Supremo, da FGV (Fundação Getúlio Vargas), o ministro contou que seu pai queria que ele cursasse engenharia e que a carreira no direito estava planejada para o primogênito, Manoel Affonso. Quando jovem, Marco Aurélio vendia lotes para a imobiliária do pai. "Qual seria a minha formação, pelo desejo de meu pai? Engenharia, já que tocava a imobiliária e gostaria de ter, em família, um engenheiro. Estava tão direcionado a fazer engenharia que, em vez de cursar o clássico, cursei o científico", contou ele à FGV.

O destino, porém, refez os rumos de Marco Aurélio aos 20 anos. Depois de sofrer um acidente em 1966, ele passou um tempo em uma fazenda da família. Quando voltou à cidade, havia mudado de ideia e decidido cursar direito. Formado em 1973 pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), mudou-se para Brasília em 1981. Com a idade mínima de 35 anos, foi nomeado por João Figueiredo, o último presidente da ditadura militar, a uma cadeira no TST (Tribunal Superior do Trabalho), onde permaneceu por oito anos.

Marco Aurélio chegou ao STF em 1990 por indicação do então presidente Fernando Collor, de quem é primo. O parentesco chegou a ser visto como um entrave para a nomeação, mas o ministro afirma que os dois nem sequer se conheciam pessoalmente até os anos 80, quando ele se mudou para a capital federal.

"As nossas famílias sempre estiveram distantes. Meu pai no Rio de Janeiro e meu tio, o pai do presidente Fernando Collor, governador e senador, em Alagoas", explicou ele no relato à FGV. Em 1993, quando Collor recorreu ao Supremo contra o impeachment aprovado pelo Congresso no ano anterior, Marco Aurélio declarou-se impedido e não participou do julgamento.

Legado de transparência

Marco Aurélio chegará à aposentadoria somando 31 anos e 1 mês à frente do Supremo. Encerrará, dessa forma, a terceira carreira mais longa da história do tribunal. À frente dele, segundo o STF, estão apenas José Nabuco de Araújo, que ocupou uma cadeira por 31 anos e 3 meses ainda antes da proclamação da República, e Celso de Mello, que fechou 31 anos e 57 dias no tribunal ao deixar o cargo, em outubro do ano passado.

No período em que esteve na corte, Marco Aurélio capitaneou mudanças importantes no Judiciário. Em 1996, era o presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) à época das eleições municipais daquele ano, as primeiras a fazerem uso de urnas eletrônicas. Ministros do Supremo vêm se esforçando para defender a digitalização do processo de votação, hoje colocado sob descrédito de Jair Bolsonaro e seus aliados.

O ministro assumiu a presidência do STF em 2001, no governo de Fernando Henrique Cardoso, e permaneceu à frente do tribunal até 2003, já na gestão de Lula. No período, implantou uma iniciativa que alterou drasticamente a relação entre o STF e a sociedade: a criação da TV Justiça. As sessões de julgamento da Corte, que antes eram quase secretas, passaram a ser acessíveis a milhares de pessoas.

Para tirar o projeto do papel, o ministro teve que vencer a resistência de colegas avessos à exposição pública. Em pouco tempo, porém, os relutantes aderiram à ideia. "Eu estava em viagem à China, quando houve uma revolução, capitaneada pelo ministro Moreira Alves (aposentado), pedindo para encerrar transmissões das sessões. Combinamos que, na volta da viagem, faríamos uma sessão para deliberar a respeito. Quando retornei, não foi necessário fazer nada, porque os ministros já tinham se convencido da necessidade da TV. Moreira Alves viu que não teria o apoio no colegiado", relembrou o ministro a Carolina Brígido, colunista do UOL, no final de maio.

"Dr. Voto vencido"

A liminar de Marco Aurélio que mandou soltar os condenados em segunda instância, em 2018, foi uma entre várias decisões do ministro em favor de réus famosos. Um dos primeiros casos ruidosos ocorreu em julho de 2000, quando ele concedeu um habeas corpus ao banqueiro Salvatore Cacciola, dono do falido Banco Marka, preso por corrupção, evasão de divisas e sonegação. Com a decisão, o banqueiro fugiu do país e só seria capturado sete anos depois.

Em 2012, foi Marco Aurélio quem mandou soltar alguns dos maiores bicheiros do Rio de Janeiro, que estavam condenados a até 48 anos de prisão. No mesmo ano, também colocou em liberdade Luiz André Ferreira da Silva, o Deco, preso sob acusação de chefiar uma das principais milícias de Jacarepaguá e suspeito de planejar o assassinato do deputado Marcelo Freixo. Outro beneficiado por ele, em 2017, foi Bruno Fernandes de Souza, o goleiro Bruno, condenado pelo assassinato da ex-mulher Eliza Samudio.

Mais recentemente, em novembro de 2020, o ministro voltou a entrar na mira dos críticos ao mandar soltar o traficante André do Rap, um dos líderes do PCC. A decisão foi revertida pelo presidente do STF, Luiz Fux, mas àquela altura o criminoso já estava solto e foragido. A concessão da liberdade de André do Rap rendeu a Marco Aurélio até um pedido de impeachment.

Com o passar dos anos, o ministro cristalizou a fama de ficar do lado derrotado em julgamentos importantes, às vezes de forma isolada. Em um dos casos mais memoráveis, em 2003, ele alinhou-se a dois colegas contra a condenação por racismo de Siegfried Ellwanger, um editor que publicou livros questionando as visões históricas predominantes sobre o Holocausto judeu e os crimes de Adolf Hitler. Em seu voto, Marco Aurélio escreveu que a obra do editor era "muito pouco atraente e em parte quixotesca", mas considerou que ela não falava "nem de superioridade racial alemã, ou de inferioridade racial judaica".

Em junho deste ano, em um dos últimos atos de Marco Aurélio no STF, o ministro foi contra a decisão do STF que declarou Moro parcial no julgamento de Lula no caso do tríplex. Na leitura de seu voto, surpreendeu ao tecer elogios ao ex-juiz da Lava Jato. "O juiz Sergio Moro surgiu como verdadeiro herói nacional e então, do dia para a noite, ou melhor, passado algum tempo, é tomado como suspeito", criticou Marco Aurélio.

A tendência de alinhar-se à parte vencida, no entanto, se manteve nesse caso. Por 7 votos a 4, o plenário decidiu pela suspeição de Moro e invalidou os processos contra o ex-presidente petista que correram no Paraná.