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Ditadura militar escondeu atentado a bomba no Recife em 1969

Militantes do PCBR queriam chamar atenção para a luta contra a ditadura, mas ataque foi abafado pelos militares - Yasmin Ayumi
Militantes do PCBR queriam chamar atenção para a luta contra a ditadura, mas ataque foi abafado pelos militares
Imagem: Yasmin Ayumi

Eduardo Reina

Colaboração para o UOL, em São Paulo

31/10/2021 04h00

O relógio marcava 23h de sábado, 6 de setembro de 1969. Um Fusca branco com três homens circulava pelas ruas de Recife, bairro de Soledade. As placas do veículo estavam alteradas, encobertas, mas nenhum policial percebeu. Ao volante, Vitor. Ao seu lado, ansiosos, estavam Sérgio e Lucas.

Quando se aproximaram dos dois palanques montados num trecho da avenida Conde da Boa Vista para o desfile militar de comemoração ao Dia da Independência na capital pernambucana, um braço sai pela janela do carona e arremessa dois petardos sobre o equipamento.

Soldados do Exército conseguem ver vagamente o que estava acontecendo. Ao explodir, as bombas furam a lona de cobertura, fazem um buraco no piso de madeira e entortam uma grade de metal que protegia o palanque. A ação foi considerada pelo governo militar como um atentado terrorista a bomba realizado por subversivos.

Essa história não ficou registrada em nenhuma reportagem. A notícia foi abafada. Tampouco foi parar nos livros de história. Circulou somente nos tribunais militares e junto à polícia. Mas tal segredo militar foi relatado como sabotagem pelo cônsul-geral dos Estados Unidos no Recife, Donor M. Lion, em relatório enviado ao Departamento de Estado dos EUA, em Washington, no dia 9 de setembro de 1969.

A reportagem teve acesso a arquivos dos chamados "documentos secretos" do Departamento de Estado dos EUA, sobre o período da ditadura militar brasileira. Muitos ainda possuem trechos censurados pela NSA/CSS (National Security Agency/Central Security Service).

"Tentativa de sabotar a celebração ocorreu durante a madrugada de 7 de setembro, quando duas 'bombas' foram lançadas nas proximidades dos palanques por carros com placas cobertas, as bombas não explodiram", relatou Lion no comunicado.

O UOL localizou e entrevistou os participantes dessa ação de guerrilha urbana contra a ditadura militar. O motorista do Fusca, Vitor, é Carlos Alberto Soares. Quem acendeu o pavio das bombas, que explodiram, mas sem provocar estragos, foi Luciano de Almeida, o Lucas. Outro participante foi Rholine Sonde Cavalcante Silva, o Sérgio, já falecido.

Também foram entrevistados Francisco de Assis, que transportou a dinamite de Fortaleza até Recife, e outros integrantes do PCBR (Partido Comunista Brasileiro Revolucionário), responsável pelo ataque.

O consulado geral dos EUA de Recife fica localizado, até hoje, na primeira via transversal à avenida Conde de Boa Vista, logo após onde a bomba explodiu nos palanques, na rua Gonçalves Maia.

"O cônsul-geral esteve presente durante o desfile de duas horas e as comemorações posteriores da cidade e dos estados não notaram incidentes", diz o comunicado enviado a Washington.

Inspiração no sequestro do embaixador

"Queríamos fazer uma ação do mesmo nível daquela do sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick, realizada no dia 4 de setembro no Rio de Janeiro ", conta Alberto Vinícius.

"Não tinha como objetivo machucar ninguém. Tanto que escolhemos um horário quase sem movimento na avenida para lançar as maçarocas com a dinamite", diz Luciano de Almeida. "A gente só queria causar repercussão. Mas não dominávamos a técnica da dinamite", completa.

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O ex-embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Charles Elbrick, em foto de 1969
Imagem: Acervo UH/Folhapress

Após surgir a ideia da bomba, o plano foi levado ao Comitê Regional do PCBR no Recife. O secretário executivo Marcelo Mário de Melo aprovou a proposta.

Sentimento de fracasso

"A gente achou que deveria ser feito algo espetacular, sem prejudicar ninguém. A falta de experiência em manusear a dinamite foi o maior problema. E do modo como a bomba foi jogada no palanque, provocou pequenas avarias, consertadas durante a madrugada pelos soldados", conta hoje Melo, que disse ter ficado frustrado com o resultado.

"Pela madrugada peguei um táxi e fui ver o que havia acontecido. Mas o palanque já estava inteiro de novo", diz Melo.

"Tive sentimento de fracasso total. Não impedimos o desfile", diz Luciano de Almeida.

Explosivo foi levado de Fortaleza a Recife

No Recife, o PCBR não tinha acesso a dinamite. Foi necessário trazer o explosivo de Fortaleza. O responsável por adquirir o material —bananas e pavio— foi Francisco de Assis, que morava na capital cearense.

"Decidiram que eu precisava viajar com os cartuchos de dinamite. Tive muita sorte. No dia 6 de setembro embarquei com destino a Recife. Coloquei a dinamite na minha bolsa de couro, que usava a tiracolo. Ficou no meu colo dentro do avião. Na cintura um revólver calibre 38. Quando o avião pousou, vi que a pista estava cheia de militares. Havia um esquema especial para o embarque de Gregório Bezerra, que seria levado ao Rio de Janeiro", relata Chico de Assis.

Bezerra era líder das Ligas Camponesas. Foi um dos presos políticos trocados pelo embaixador dos Estados Unidos, Charles Elbrick, que havia sido sequestrado dois dias antes.

"Foi um momento de muita tensão. Tive muita sorte, estavam revistando algumas pessoas. Eu não fui", lembra Chico de Assis, que entregou a dinamite aos responsáveis pela ação, que estavam numa casa em Olinda.

"A gente queria fazer frente à ditadura porque a oposição estava sendo violentamente reprimida pelo governo militar. Mas nosso despreparo fez com que a explosão não desse certo. A gente não queria provocar mortes, mas impedir a realização dos festejos de 7 de setembro."

"Fogo fez buraco na calça"

A tensão era grande naquela noite. "A primeira maçaroca eu acendi. O pavio começou a faiscar e caiu no meu colo. O fogo fez um buraco na calça. Rholine pegou e jogou. Depois acendi a outra maçaroca e Rholine jogou também", conta Luciano.

Com os dois explosivos, foram lançados panfletos assinados pela Frente Popular Revolucionária. "Estava sendo formada essa frente popular. Mas os soldados do Exército pegaram o manifesto. A gente queria que fosse divulgado na imprensa", diz de Almeida.

O comunicado do cônsul-geral também faz referência a esse panfleto mimeografado. "[O panfleto estava] prometendo a continuação da violência contra a tirania e concluindo citação de olho por olho, dente por dente. A declaração referiu-se à libertação de 15 presos políticos reclusos como capacidade de prova para resistir à ditadura", diz o comunicado.

As duas explosões pouco danificaram os palanques.

"Meus pais moravam na rua do Progresso, na quadra atrás de onde estavam os palanques. Conversei com eles na época para saber se haviam ouvido alguma coisa. Me disseram que fora ouvido um pequeno estampido, fraco, como se fosse uma bombinha de festa junina", diz Chico de Assis.

De acordo com o pesquisador e historiador da UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro) Maicon Maurício Ferreira, havia despreparo em ações táticas de guerrilha de alguns militantes políticos, com exceção de ex-militares engajados na oposição.

"A maioria que compôs as organizações armadas era mesmo estudante, parcela relevante sem militância antes de 1964. Conseguiram realizar, a um preço alto, confronto com o Estado, que somente conseguiu 'enterrar' a via da luta armada com o massacre na Guerrilha do Araguaia, em 1974", diz Ferreira.

Após esse atentado a bomba no Recife e o sequestro de Elbrick, as forças de repressão do governo endureceram ainda mais a situação no Brasil. Foram criadas medidas extremas, que instituíram a pena de morte e o banimento dos militantes de oposição.

araguaia - Guilherme Xavier Netro/Divulgação - Guilherme Xavier Netro/Divulgação
Soldados do Exército rendem suspeitos de guerrilha no Araguaia
Imagem: Guilherme Xavier Netro/Divulgação

Rholine, Carlos Alberto e Luciano foram presos meses depois e condenados pelo Tribunal Militar. Ficaram detidos em penitenciárias por quase dez anos. As penas de cada um chegavam a cerca de 100 anos.

Mesmo com a anistia em 1979, continuaram encarcerados, em isolamento. Os militares alegavam que haviam participado de ação armada contra o governo militar. Foram obrigados a fazer movimentos reivindicatórios para conseguir deixar a prisão.

Houve greve de fome. Depois, conseguiram a liberdade. Francisco de Assis foi inocentado por falta de provas.