Ditadura mentiu sobre identidade de homem que morreu em explosão em 1969
Documentos de órgãos de repressão contradizem a informação divulgada pela ditadura militar sobre a identidade de um homem que morreu quando uma bomba explodiu dentro de um carro, na madrugada de 4 de setembro de 1969, em São Paulo. A documentação mostra que agentes da ditadura militar brasileira omitiram dados que poderiam ajudar a identificar a verdadeira vítima da explosão.
O UOL analisou a documentação do DEOPS (Departamento de Ordem Política e Social) de São Paulo, da Polícia Civil e de um inquérito Militar que revelam que os restos mortais apresentados não são de Sérgio Roberto Corrêa, conforme foi divulgado na época. O corpo recebeu a classificação de "cadáver desconhecido 3700/69" no Instituto Médico Legal de São Paulo.
A narrativa que circulou na imprensa durante a época da explosão e depois ficou registrada em livros e relatórios de Comissões da Verdade aponta que às 5h20 do dia 4 de setembro de 1969, uma quinta-feira, um Volkswagen explodiu na altura do número 578 da rua da Consolação, centro da capital paulista.
Tal explosão teria levado à morte imediata de Sérgio Roberto Corrêa, que era acusado de integrar o GTA (Grupo Tático Armado) da ALN (Ação Libertadora Nacional) em São Paulo. O outro ocupante do veículo era Ichiro Nagami, também da ALN, que sobreviveu e chegou a ser socorrido ao Hospital das Clínicas, onde foi interrogado e depois morreu.
O corpo atribuído a Corrêa ficou totalmente despedaçado, sobrando apenas fragmentos, e os dois pés e canelas. Os despojos foram enterrados em 19 de setembro no cemitério de Vila Formosa, em São Paulo, como indigente, pois não foram requisitados pelos familiares.
Nascido em 1941, Sérgio Roberto Corrêa tinha dois irmãos. Um deles, José Benedito, já falecido, foi casado com Leila, filha do ex-prefeito de Mogi das Cruzes, Valdemar da Costa Filho, que era da Arena, partido de sustentação dos militares durante a ditadura.
A indicação da identidade de Corrêa pela ditadura está baseada em suposto reconhecimento feito por outro membro da ALN, Hans Rodulf Manz, um suíço naturalizado brasileiro que passou a cooperar com a polícia.
Manz teria reconhecido um pé de sapato que seria de Corrêa, que aparece em fotografia de jornal no local da explosão.
De março de 1967 a setembro de 1968, Manz, Corrêa e outros membros da ALN estiveram em Cuba para participar de cursos. Foram enviados pelo guerrilheiro Carlos Marighella. Nesse período, teriam começado os desentendimentos entre Manz e os outros sete integrantes da equipe e cubanos.
"Não era Sergio"
Integrante do GTA da ALN em São Paulo, Otávio Ângelo, afirma que não era Sergio Corrêa o acompanhante de Ichiro no Fusca que explodiu. "Não era ele. Estavam no carro o Ichiro e um outro rapaz, que era militar da Aeronáutica", disse Ângelo.
Ichiro e esse outro homem prepararam um petardo com cerca de dois quilos de explosivos que seria jogado na fachada de uma loja de eletrônicos Lutz Ferrando na Avenida Ipiranga naquela madrugada.
"Falei que não podiam colocar o detonador antes de chegar ao local. Pela manhã, quando passei por um ponto, cruzei com o carro deles. Ichiro deu até uma buzinada para mim. Quando voltei, vi os pedaços do Fusquinha espalhados", disse Ângelo.
A bomba na loja de eletrônicos seria uma "vingança" do grupo pela morte de José Wilson Lessa Sabbag, baleado na tarde do dia 3 de setembro de 1969 durante troca de tiros com a repressão. Essa versão é contada pelo jornalista Mário Magalhães na biografia de Marighella. Sabbag e outros integrantes da ALN haviam comprado um gravador com cheque na loja e iriam trocá-lo por dinheiro. Mas o dono do comércio desconfiou e chamou a polícia.
"No dia da morte do Sabbag, a gente havia preparado uma ação em Campinas, para o dia seguinte", contou Otávio Ângelo. Por coincidência, no mesmo dia 4 de setembro, mas na hora do almoço, a ALN sequestrava no Rio de Janeiro o embaixador dos Estados Unidos Charles Elbrick.
Reportagens veiculadas pela imprensa em setembro de 1969 mostram ainda que o Fusca azul com Ichiro e seu carona estaria sendo seguido de perto por um Chevrolet Bel Air. O relato é de policiais após a explosão. Uma coincidência: no inquérito sobre a morte de Carlos Marighella, há foto de um Bel Air utilizado pelos agentes da repressão no cerco que culminou no assassinato do líder de esquerda, dois meses depois da explosão do Fusca na madrugada do dia 4 de setembro.
Armas encontradas nos destroços
No meio dos destroços do Fusca, foram encontradas duas armas. Uma Beretta, que era propriedade de Manz, e um revólver calibre 38, além de alguns panfletos que falariam sobre a explosão na loja de eletrônicos na avenida Ipiranga, e que nunca foram vistos ou anexados ao inquérito.
"No carro, havia folhetos sobre a bomba e a morte de Sabbag", confirma Aton Fon, outro integrante do GTA da ALN em São Paulo.
As autoridades policiais, segundo relatório da Comissão Estadual da Verdade do Estado de São Paulo, presumiram que estava sendo transportada uma bomba-relógio ou uma carga de nitroglicerina capaz de explodir pelo próprio balanço do veículo.
"Conheci ele [Sergio Corrêa] na clandestinidade. Tive uns três contatos com ele e o Ichiro. Conhecia eles pelo nome de guerra. Sérgio era Gilberto e Ichiro era Charles", afirma Gilberto Beloque, também integrante da ALN.
O relatório final da Comissão Estadual da Verdade indica que a perseguição do Fusca poderia "ter provocado a explosão no carro das vítimas e, principalmente, o fato de Ichiro ter morrido no hospital, após ser 'interrogado'", enfatizando a necessidade de mais investigações para esclarecer o caso.
Os órgãos de segurança informaram ainda que o explosivo que destroçou imediatamente o Fusca e o corpo de uma pessoa seria dinamite roubada da Indústria de Explosivos Rochester, de Mogi das Cruzes, em dezembro de 1968. Mogi é a cidade natal de Corrêa.
Comunicado confidencial feito pelo então cônsul-geral dos Estados Unidos em São Paulo, Robert Corrigan, ao Departamento de Estado dos EUA em Washington em 5 de setembro de 1969 relata "dois incidentes envolvendo terroristas". Fala de tiroteio no centro de São Paulo entre policiais e grupo de jovens, onde morreram um policial e um "terrorista", além da explosão do Volkswagen que Corrigan diz estar "carregado de dinamite", onde morreram outros "dois terroristas". O comunicado não informa os nomes dos mortos e possui ainda trecho sob censura dos EUA.
"São muitas versões para o mesmo caso, que já era de desaparecimento forçado. Agora está mais que provado que sim", diz Janaina Teles, professora de História da Universidade do Estado de Minas Gerais.
Dados escondidos pela repressão
A partir do comunicado do governo dos EUA a reportagem fez amplo levantamento sobre a explosão que matou Ichiro e outra pessoa naquela madrugada de setembro de 1969. O resultado da apuração revela outros dados que os órgãos de repressão esconderam.
Por exemplo: o exame necroscópico 30.107 do Instituto Médico Legal chama os despojos dentro do Fusca como "desconhecido nº 3700". Os médicos legistas José Gonçalves Lira e Paulo Augusto de Queiroz Rocha concluem em 17 de setembro de 1969 que os fragmentos são "de um corpo humano, de cor branca, do sexo masculino e de adulto não velho".
Análise de outros laudos do Instituto de Polícia Técnica de São Paulo e do inquérito policial militar apontam inúmeras incongruências. A primeira e mais forte é o exame da digital de um dedo encontrado em meio aos escombros do Fusca. A comparação com os documentos de Sérgio Roberto Corrêa mostra que a digital do dedo não é de Corrêa.
"Obteve-se resultado negativo, não se confronta o supracitado dactilograma com qualquer das impressões de Sérgio Roberto Corrêa, revelando assim, tratar-se de duas pessoas diferentes", atestam os peritos Geraldo Souza Brito e Paulo Vitale, em 11 de março de 1970. Também não há similaridade da digital como sendo de Ichiro.
Relatório da agência paulista do SNI (Serviço Nacional de Informações), de 17 de setembro de 1969, aponta que diligência em residência na rua das Palmeiras havia encontrado documentos de Corrêa que serviram para o exame comparativo da digital.
O delegado Edsel Mangotti, do DOPS, cinco dias depois do documento do SNI, também conclui que "sabendo-se que Sérgio Roberto Corrêa havia recebido o revólver de Hans e (que) encontra-se desaparecido até a presente data, procedeu-se o exame comparativo das impressões papilares de Sérgio Roberto Corrêa com as impressões do dedo encontrado no local da explosão, cujo resultado também foi negativo".
Ichiro teve atestado de óbito assinado pela Secretaria de Segurança Pública de São Paulo. Foi enterrado pela família no dia 6 de setembro de 1969 no Cemitério de Picanço, em Guarulhos.
O Exército, no livro que era para mostrar sua versão sobre a ditadura, chamado Projeto Orvil (anagrama da palavra livro), relata que o segundo ocupante do Fusca não fora identificado. "Companheiro desconhecido", descreve o texto coordenado pelo general Agnaldo Del Nero e pelo então ministro do Exército Leônidas Pires Gonçalves. Orvil não chegou a ser veiculado oficialmente.
Outros militares que ganharam destaque em blogs e livros também não falam de Corrêa como sendo a quem pertencia o corpo que explodiu no dia 4 de setembro. Documentos do CIE (Centro de Informações do Exército) identificam apenas Ichiro.
O prontuário de Corrêa no DOPS descreve curso que ele fez em São Paulo com Hans Rudolf Manz - "seu amigo íntimo" - para aprender a confecção de explosivos. Morariam na mesma casa na rua Ibituruna, bairro da Saúde, capital. Quando voltou ao Brasil, Manz promoveu curso de manipulação de bombas e montagem de estrutura elétrica para detonar os explosivos. Os cursos eram realizados na casa na Saúde e também num aparelho na zona leste da capital.
Maria Aparecida Costa, integrante da ALN, frequentou as aulas e teve contato com Sérgio Roberto Corrêa. "É provável que o tenha encontrado no curso de bombas do Hans. Fui lá uma meia dúzia de vezes. Ele (Corrêa) era uma pessoa muito calma, usava bigodes, tinha o rosto fino. Não era muito alto.", diz hoje Maria Aparecida.
Assalto depois da "morte"
Para a Polícia e órgãos de repressão, Sérgio Roberto Corrêa estava vivo e atuante em setembro de 1969. Chama a atenção o registro de um assalto a banco que teria participado em 22 de setembro, 18 dias depois de sua suposta morte.
No ano de 1970 a polícia deu prosseguimento ao indiciamento do "morto" Corrêa. Ele foi indiciado por infração à Lei de Segurança Nacional em 19 de janeiro de 1970. Relatório do DOPS de 16 de março de 1970, assinado pelo delegado Edsel Magnotti, pede a prisão preventiva dele e de Manz, que já havia sido preso em dezembro do ano anterior.
Uma semana depois do pedido do delegado, o juiz auditor Nelson da Silva Machado Guimarães decreta a prisão preventiva do "morto". No despacho, Guimarães fala da necessidade de fazer a prisão preventiva de Corrêa, "foragido". Mandado de prisão é expedido na mesma data. Deveria ser recolhido ao Presídio Tiradentes.
A Polícia efetuou buscas ao "morto". O delegado-adjunto Fabio Lessa de Souza Camargo informa em 31 de março de 1970 que Corrêa se encontrava "em local incerto e não sabido". E anos depois, a Segunda Auditoria de Guerra da Justiça Militar condena o "morto" a três anos e quatro meses de prisão e suspensão dos direitos políticos por 10 anos. Sentença é de 22 de março de 1975.
"Naquela época, eram comuns julgamentos à revelia. Davam prosseguimento a processos com desaparecidos", explica Suzana Lisboa, ex-ALN, que disse não se lembrar qual a origem de Sérgio Roberto Corrêa na ALN.
A continuidade do processo de condenação para uma pessoa morta é questionada por especialistas. "O certo seria extinguir o processo", afirma o presidente da Academia Paulista de Direito, desembargador Alfredo Attié.
O mistério sobre a identificação do corpo desconhecido 3700/69 continuou anos depois. Em 2 de dezembro de 2010, a Polícia Federal e o Ministério Público Federal exumam o que seria o corpo de Sérgio Roberto Corrêa na Vila Formosa. A ossada foi levada para exames de DNA. O MPF informou à época: "como as indicações da sepultura suspeita de corresponder à de Sérgio Correia eram menos incertas, a equipe de peritos se dedicou à exumação da ossada deste local".
Perguntas permanecem
Recentemente, em 12 de julho de 2021, o MPF afirmou que "consta dos registros do MPF sobre este caso que o resultado da análise da ossada é inconclusivo. Ou seja, os peritos não conseguiram reunir elementos que permitissem identificar os restos mortais encontrados".
Diante de tantas incertezas, como a própria Comissão Nacional da Verdade registrou em seu trabalho que apresentou perfis de 434 mortos ou desaparecidos políticos o "rol de vítimas exposto não é definitivo"
Nos documentos analisados, a reportagem encontrou uma informação que pode identificar o corpo que ficou em fragmentos na explosão. Trata-se de uma aliança de cor amarelo dourado com o nome Darcy inscrito, junto com a data 24/12/67, segundo auto de arrecadação da Polícia Civil.
Mesmo assim, permanecem 52 anos depois sem respostas duas questões importantes: a identidade do corpo desconhecido 3700/69 que morreu na explosão do Fusca em 4 de setembro de 1969 e o real paradeiro de Sérgio Roberto Corrêa.
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