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Leia a íntegra da entrevista do presidente Lula à GloboNews

O presidente Lula e a jornalista Natuza Nery                              - Reprodução / Twitter
O presidente Lula e a jornalista Natuza Nery Imagem: Reprodução / Twitter

Do UOL, em Brasília

18/01/2023 19h51

O presidente Lula (PT) indicou que houve falha dos setores de inteligência do governo federal ao comentar os atos terroristas que ocorreram em Brasília no último 8 de janeiro.

Em entrevista à Globonews, Lula criticou o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e ressaltou ser contra a abertura de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) no Congresso Nacional para investigar quem financiou e participou dos atos.

Leia a íntegra da entrevista:

Natuza Nery: Presidente, eu gostaria de começar fazendo uma pequena viagem no tempo, voltar para o dia 8 de janeiro de 2023. Há poucos dias, portanto. Quando o senhor se depara com aquelas imagens do Congresso sendo invadido, do Palácio sendo invadido, do Supremo sendo invadido, com pouca resistência, inclusive, em algum momento o senhor achou que poderia perder o controle do país?

Presidente Lula: Não. Olha, primeiro é preciso só contar uma história que começou antes do dia 8, ou seja, que começou no dia 6. Na sexta-feira, eu tomei a decisão de ir a Araraquara, de ir a São Paulo, porque eu tinha deixado a minha casa sem ninguém, eu precisava ver a casa como é que estava, e resolvi visitar Araraquara, porque tinha tido uma chuva muito grande, tinha feito um buraco muito grande numa estrada, e tinha morrido seis pessoas da mesma família dentro do carro que foi levado pela enxurrada.

E quando eu estou em Araraquara, eu começo a saber das notícias. Começo a saber das notícias, fui para a sede da Prefeitura de Araraquara, fiquei acompanhando pelo computador as imagens, e eu liguei para o general Gonçalves Dias, que é o chefe do GSI, e eu dizia: Ô ministro, onde é que estão os soldados? Porque eu não via soldado, eu não via soldado. Só via gente entrando, não via soldado reagindo, não via soldado reagindo, sabe? Ele dizia que tinha chamado soldado, que tinha chamado soldado, ou seja, e esses soldados não apareciam.

Eu fui ficando irritado porque não era possível a facilidade com que as pessoas invadiram o Palácio do Presidente da República, e, na verdade, eles não quebraram para entrar, eles entraram porque a porta estava aberta, alguém de dentro do Palácio abriu a porta para eles, só pode ter sido, houve conivência de alguém que estava aqui dentro. Então, eu liguei para o Flávio Dino, conversei com o Flávio Dino, e decidimos, então, me propuseram fazer uma GLO, eu falei: não vou fazer.

Natuza: O que o senhor temia? Porque eu sei que a GLO e a intervenção federal na segurança pública no Distrito Federal foram duas ideias colocadas sobre a sua mesa para decisão. O senhor chegou até a comentar isso num café da manhã com jornalistas. A opção de não fazer a GLO e fazer uma intervenção federal vinha de algum temor?

Lula: Vinha de uma experiência que eu vi no Rio de Janeiro, quando fizeram a GLO no Rio de Janeiro, o Pezão, que era o governador, virou rainha da Inglaterra. Eu tinha acabado de ser eleito presidente da República. Não tem importância se foi com 12 milhões, com 20 milhões ou com milhão de votos, o importante é que fui eleito Presidente da República desse país, e eu não ia abrir mão de cumprir com as minhas funções e exercer o poder na sua plenitude.

Foi por isso que nós decidimos, ao invés de GLO, a gente fazer intervenção na polícia de Brasília, que tinha sido conivente com o caso. Ou seja, havia uma visão explícita minha, do Flávio Dino, de todas as pessoas, que havia uma negligência da Polícia Militar de Brasília, que permitiu que as pessoas fizessem o que bem entendessem.

Ou seja, quatro ou cinco mil pessoas invadiram isso aqui, tinha 50 policiais no Senado que reagiram, não tinha quase ninguém dentro da Suprema Corte, e quase ninguém dentro do Palácio do Planalto, ou seja, então, nós resolvemos tomar conta da polícia fazendo a intervenção.

E foi o que deu resultado. Foi o que deu resultado. Ou seja, quando a polícia teve comando e agiu, a gente conseguiu dispersar as pessoas. Eu fiquei com uma impressão que era o começo de um golpe de estado. Eu fiquei com a impressão, inclusive, que o pessoal estava acatando ordem e orientação que o Bolsonaro deu durante muito tempo, muito tempo ele mandou invadir a Suprema Corte, muito tempo ele desacreditou do Congresso Nacional, muito tempo ele pedia que o povo andasse armado, que isso era democracia.

Eu acho que a decisão dele de ficar quieto depois de perder as eleições, sabe, semanas e semanas sem falar nada, a decisão dele de tomar a decisão de não passar a faixa pra mim, de ir embora para Miami como se estivesse fugindo com medo de alguma coisa, sabe? E o silêncio dele, mesmo depois do acontecimento aqui, me dava a impressão que ele sabia de tudo o que estava acontecendo, que ele tinha muito a ver com aquilo que estava acontecendo.

Obviamente que quem vai provar isso são... sabe, as investigações. Mas a impressão que me deixava era isso. Possivelmente o Bolsonaro estivesse esperando voltar para o Brasil, sabe, na glória de um golpe. Sabe? E eu então não podia permitir GLO, eu tinha que tomar a decisão política, e tomamos a decisão certa.

Natuza: Por que o senhor acha que esse... que essa tentativa de golpe não vingou?

Lula: Olha, porque... porque eles perceberam que houve uma reação, imediatamente eu sou agradecido aos governadores que vieram a Brasília prestar solidariedade, imediatamente a gente se juntou e a gente percebeu que tínhamos que trabalhar juntos — Legislativo, Executivo e Judiciário. E nós, então, nos juntamos para garantir a democracia brasileira.

Natuza: Ou seja...

Lula: E eles perceberam que a gente tinha reagido, eles perceberam que a gente tinha tomado conta da situação, e eles então pararam. Mas aqui, quem veio aqui, Natuza, era gente muito profissional. Tinham pessoas que eram militantes comuns, pessoas que estavam raivosas, nem sei se tinham bebido ou não, mas o dado concreto é que segundo todo o depoimento, as pessoas que vieram aqui eram profissionais, as pessoas conheciam o Planalto, as pessoas conheciam o Poder Judiciário, as pessoas conheciam a Câmara dos Deputados.

Não foi nenhum analfabeto político que invadiu isso aqui. Era gente que preparou isso durante muito tempo. Eles não tiveram coragem de fazer nada durante a posse, e nós estávamos, na verdade, nós cometemos um erro, eu diria, elementar, a minha inteligência não existiu.

Eu saí daqui na sexta-feira com a informação que estava— que tinha só 150 pessoas no acampamento, que estava tudo tranquilo, que não iam permitir que entrassem mais ônibus, que não iam permitir que juntasse mais ninguém, eu viajei para São Paulo na maior tranquilidade. Não é? E aconteceu o que aconteceu. E depois que aconteceu, aí você vai ver na rede social, isso estava sendo convocado há mais de uma semana!

Natuza: A Polícia Federal, inclusive, no sábado, faz um ofício, o diretor-geral da Polícia, dizendo que havia esse risco. Mas quando o senhor fala de inteligência, o senhor está falando do gabinete— da ABIN, do Gabinete de Segurança Institucional?

Lula: Aqui nós temos inteligência do Exército, nós temos inteligência do GSI, nós temos inteligência da Marinha, nós temos inteligência da Aeronáutica, ou seja, a verdade é que nenhuma dessas inteligências serviu para avisar ao Presidente da República, ou seja, que poderia ter acontecido isso. Se eu soubesse, na sexta-feira, que viriam oito mil pessoas aqui, eu não teria saído de Brasília. Eu não teria. Eu saí porque estava tudo muito tranquilo, até porque a gente estava vivendo ainda a alegria da posse.

A posse foi uma festa marcante, que eu não sei em que momento da história vai acontecer outra igual àquela: muita gente, muita alegria, muita tranquilidade, muita festa, ou seja, a gente estava vivendo da alegria da posse. Foi... a gente não imaginava que pudesse acontecer isso. Eu, sinceramente, não imaginava que pudesse acontecer isso, porque nunca na história desse país aconteceu isso. Nunca, em nenhum momento da história, a esquerda, mesmo quando ela queria, na luta armada, derrubar o regime militar, ela invadiu o Congresso Nacional, invadiu a Câmara, invadiu o Palácio e a Suprema Corte.

Natuza: Quebrando tudo, não é?

Lula: Quebrando tudo. Então, é uma prática nazista, fascista, raivosa, que nós não estávamos acostumados a ver no Brasil. Tá? Eu acho que agora, Natuza, nós temos que ter muita tranquilidade e fazer a investigação mais correta possível. O secretário de segurança voltou dos Estados Unidos, mas deixou o telefone dele lá.

Natuza: O senhor está falando de Anderson Torres, que foi Ministro da Justiça de Bolsonaro e depois foi virar Secretário de Segurança Pública do DF?

Lula: Foi, foi, exatamente ele, exatamente ele. Ele sabia o que ia acontecer, foi embora e, quando voltou, deixou o celular lá para, quem sabe? sabe? A gente não fazer as investigações.

Mas nós vamos fazer a investigação, e eu posso te dizer que todas as pessoas que estiverem envolvidas, que invadiram, que fizeram algum estrago no Palácio, no Congresso ou na Suprema Corte, essa gente tem que ser condenada, senão a gente não garante a existência e a sobrevivência da democracia. E com a democracia, Natuza, a gente não pode brincar.

A democracia é o único regime político que dá o direito de você discordar, que dá o direito de você fazer oposição, que dá o direito de você se expressar livremente, desde que você não ultrapasse o limite dos outros. E essa gente ultrapassou o limite da Constituição, o limite da Justiça Eleitoral e o limite do resultado das urnas.

Ninguém perdeu mais eleições do que eu nesse Brasil, Natuza. Eu perdi três eleições consecutivas: 89, 94 e 98. E você não viu um gesto de rebeldia minha, do PT ou dos partidos que me aliaram. Eu fui para casa lamentar minha derrota, fui discutir com os meus companheiros, fui viajar o Brasil para reconstruir e levantar a moral da tropa.

Sabe, não? o cidadão fugiu. O cidadão se escondeu dentro de casa e depois ele fugiu sem prestar contas à sociedade; até hoje ele não disse: "Eu fui derrotado". Até hoje ele continua fazendo fake news, mostrando que as urnas, sabe, teve fraude. Então, isso é grave, e nós temos que apurar. Eu acho que eles permitiram que a gente fizesse, porque a gente não estava querendo fazer, que é fazer um processo de investigação muito séria do que aconteceu nesse país.

Natuza: Ou seja, os atos golpistas cavaram investigações, uma união dos poderes e uma exigência de punição para quem tem envolvimento.

Lula: Eu acho que é o que a sociedade espera. Veja, a sociedade brasileira, ela está precisando de um pouco de paz. A família brasileira, ela quer viver tranquilamente, ela quer trabalhar, ela quer estudar, ela quer morar tranquilamente, e ela quer ver a política mais saudável possível, porque, nos últimos quatro anos, o que nós vimos foi ódio, ódio disseminado todo dia, 24 horas por dia. Ódio e mentiras, ódio e mentiras.

Eu tenho 77 anos, Natuza, eu faço política há 50 anos, eu nunca tinha visto nada igual na minha vida. A quantidade de mentira, a quantidade de fake news, as coisas mais absurdas, coisas mais absurdas que eu jamais imaginei que alguém pudesse acreditar, pois as pessoas acreditam. Porque a mentira é muito mais fácil você acreditar do que a verdade. A verdade exige que você tenha responsabilidade, exige que você pense, exige que você tenha criatividade; a mentira, não.

Natuza: A mentira impacta mais do que a verdade.

Lula: Minha mãe dizia: Enquanto a verdade anda a passo de tartaruga, a mentira anda na velocidade de um avião. E é uma enxurrada de mentira, porque nós não tínhamos essa experiência, nós começamos a ter essa experiência a partir da eleição do Trump, nos Estados Unidos.

Natuza: Eu vou até chegar lá, presidente, mas antes eu ainda queria continuar nos dias seguintes. A gente ainda está nos dias seguintes, na verdade. Mas naquele momento, naqueles momentos agudos que o senhor viveu, e que o país viveu, uma parte dos integrantes do seu partido chegou a defender uma atitude mais energética em relação aos militares, em relação ao próprio Ministério da Defesa, do GSI. Alguns, eu ouvi de alguns, inclusive ideias sobre a troca imediata do comando que havia acabado de assumir. No entanto, o senhor optou por não fazer isso, não mexer nessa cadeia de comando. Por quê?

Lula: Olha, primeiro porque você não pode fazer caça às bruxas, sabe, sem você analisar corretamente o que aconteceu. Você não pode substituir um jogador porque ele perdeu um gol. O que você tem é que apurar corretamente, ver o que aconteceu, ver aonde houve negligência nossa, aonde houve erro nosso, aonde foi que nós cometemos. Veja, porque o país estava em festa.

Eu duvido que, além das pessoas que tramaram isso, tivesse alguém no Brasil imaginando que isso poderia acontecer. Ou seja, esse país estava em festa. Esse país, o povo tinha voltado a sorrir outra vez. Então, eu acho que foi pego todo mundo de surpresa.

O alerta importante é que a gente não pode mais ficar desprevenido. A gente não pode ficar mais desprevenido. Daqui pra frente, a segurança dos Palácios tem que estar funcionando 24 horas por dia, independente do que acontecer, seja época de Natal, seja época de Ano-Novo.

É preciso que a gente tenha responsabilidade. A minha mágoa, e nós vamos apurar porque eu também não quero culpar ninguém sem provas, a minha mágoa é que houve negligência. Houve negligência de quem tinha obrigação de tomar conta do Palácio, houve negligência, sabe, não sei se do secretário ou de toda a polícia, ou de quem foi a negligência, da Polícia Militar de Brasília, que é a responsável por tomar conta, sabe, da cidade, evitar o caos.

No dia da minha diplomação já tinha acontecido o caos, e esse caos foi acompanhado de perto pela Polícia Militar de Brasília, e que ninguém foi fotografado e ninguém foi punido. Invadiram a sede da Polícia Federal, e ninguém foi punido. A impressão que a gente tinha, eu estava na janela do hotel assistindo.

Natuza: Dia 12 de dezembro, dia da sua diplomação.

Lula: A impressão que a gente tinha era que a polícia estava dando guarida às pessoas, protegendo as pessoas que estavam fazendo quebra-quebra. Então, nós vamos apurar com muita paciência. Eu não quero ser precipitado, eu não quero cometer o erro que foi cometido na década de 70 contra a esquerda, que você prendia, torturava, nós não vamos fazer nada disso.

As pessoas que foram presas, vão ser ouvidas, as pessoas vão ter direito à defesa, sabe? As pessoas vão ser punidas se a gente provar que eles foram culpados e que eles fizeram alguma coisa de anormal. Fora disso, eles serão liberados, quem for inocente. Nós não queremos fazer nada que não garanta a presunção de inocência para as pessoas. Sabe? Não queremos fazer nada.

Mas você, eu tenho uma tese que é o seguinte: toda vez que você entra num bar, nunca aconteceu comigo porque eu não frequento bar nem restaurante, mas toda vez que uma pessoa famosa entra num bar e alguém xinga, aquele cidadão que xingou é 171, você pode ter certeza que ele é alguma coisa de errada na vida. Quando ofende o Chico, quando ofenderam o Gilberto Gil lá no Qatar, na Copa do Mundo, o cara xingando ele. Pode saber que esse cara que xinga tem um passado nebuloso.

Essa gente tem algum crime cometido na vida, essa gente tá ligada ao tráfico, essa gente tem processo de sonegação, sabe? Pode saber que tem alguma coisa, porque um ser humano normal, mesmo que seja de direita, se ele vê a Natuza entrando num restaurante com o namorado dela, por menos que ele goste da Natuza, ele não vai xingar ela e não vai ofendê-la.

É isso que acontece no mundo civilizado, e é isso que eu quero reconstruir no Brasil. Sabe, eu quero reconstruir o direito das pessoas viverem, sabe, com tranquilidade. É para isso que eu ganhei as eleições, para recuperar, sabe, o processo civilizatório desse país.

Natuza: Presidente, na sexta-feira, a gente está falando na quarta, na sexta, o senhor vai encontrar novamente com... vai se encontrar novamente com os comandantes das Forças Armadas. Como é que o senhor imagina essa conversa? O que o senhor quer dessa conversa? O que o senhor vai dizer para os comandantes?

Lula: Antes de falar dos militares, eu queria te dizer que no mesmo dia 8 à noite, quando eu cheguei aqui, eu vim visitar, o pessoal tentou me aconselhar a não vir ao Palácio do Planalto, porque poderia ter bomba dentro e tal, resolvi vir visitar o Palácio do Planalto. E no dia seguinte, eu fui visitar, sabe, a Suprema Corte, à noite, os 27 governadores vieram aqui. Nós descemos a rampa juntos, foi um gesto muito forte em defesa da democracia, a Suprema Corte, o Poder Executivo, o Poder Legislativo, sabe, foi uma coisa muito forte.

Natuza: E a repercussão internacional também.

Lula: Foi uma coisa muito importante. E muita repercussão internacional. Eu espero que daqui pra frente a gente volte à normalidade, a gente apurando com correção, e nós não vamos permitir, sabe, que continue essas ofensas bárbaras que existem, de ameaças, de xingar as pessoas em qualquer lugar. As pessoas têm que ser punidas.

Esses dias eu vi uma foto, uma gravação de um cidadão chamando o Cristiano Zanin aqui no aeroporto de Brasília. O rapaz escovando os dentes e um cidadão chamando ele de vagabundo, chamando ele de vagabundo o tempo inteiro. Ou seja, como o Zanin é muito educado, é um gentleman, ou seja, ele não reagiu, ficou escovando os dentes até mais tempo do que o necessário, mas eu falei para ele fazer uma queixa na Polícia Federal para a gente ir atrás desse cidadão.

Esse cidadão não pode continuar achando que ele tem o direito de xingar uma pessoa no aeroporto e ficar impune. Esse cidadão tem família. A família dele tem que saber que tipo e que espécie de ser humano que ele é. Então, daqui para frente, vai ser assim, até que a gente atinja a normalidade democrática nesse país.

Bem, eu estou chamando os comandantes para conversar porque a primeira vez que eu conversei com os comandantes, eu disse para eles que eu gostaria de discutir o fortalecimento da indústria de defesa nesse país.

O Brasil é um país muito grande, o Brasil tem uma fronteira muito grande, tanto a marítima quanto a fronteira terrestre, o Brasil tem uma população grande e nós precisamos, então, ter umas Forças Armadas preparadas e fortalecidas para que a gente cumpra aquilo que está na Constituição: a defesa do povo brasileiro contra qualquer possível ataque externo.

Ou seja, nós estamos tranquilos. Então, o que eu quero conversar com eles? Eu pedi para que cada força me apresentasse a dificuldade que eles estão vivendo do ponto de vista da estrutura funcional de cada força, o que é que falta na Aeronáutica, o que é que falta na Marinha, o que é que falta no Exército, para que a gente possa ter um processo de reconstrução da capacidade produtiva, sabe? Inclusive utilizar a tecnologia militar para fazer uma indústria de defesa mais forte, mais moderna, sabe?

E eu acho que isso vai ser importante para o Brasil. Só para vocês terem ideia, eu pedi para o Josué, o presidente da FIESP, eles têm um projeto para a indústria de defesa, eu pedi para ele vir na reunião; não agora nessa reunião, quando eu voltar da Argentina eu vou ter uma conversa com o Josué e os comandantes militares, porque a gente quer efetivamente colocar em prática o funcionamento de uma indústria de defesa para que a gente possa dinamizar, sabe, as patentes que nós temos já prontas dos militares, dinamizar o submarino nuclear e dinamizar outras coisas que o Brasil precisa dinamizar para que a gente seja um país respeitado. As nossas Forças Armadas têm que estar preparadas. E a outra coisa que eu quero conversar é o seguinte: é não politizar as Forças Armadas.

Natuza: Ou despolitizar.

Lula: Despolitizar. O não politizar que eu digo é o seguinte: é preciso que os comandantes assumam a responsabilidade de dizer: o soldado, o coronel, o sargento, o tenente, o general, ele tem direito de voto, ele tem direito de escolher quem ele quiser para votar. Agora, como ele é um cargo de carreira, ele defende o estado brasileiro, ele não é exército do Lula, não é do Bolsonaro, não foi do Collor, não foi do Fernando Henrique Cardoso, a Suprema Corte não é do Lula, sabe?

Essas instituições que dão garantia a esse país não precisam ter partido e não precisam ter candidato. Eles têm que defender o estado brasileiro e defender a Constituição, e eu quero conversar com eles abertamente, sabe? Porque da mesma forma que eu escolhi eles, quando eu escolhi, a gente teve critério para escolher.

Natuza: Primeiro da lista?

Lula: E teve critério de ouvir pessoas, sabe, pessoas que conhecem cada um deles, e eu quero manter uma relação civilizada. Eu já fui oito anos Presidente da República e eu convivi muito dignamente com as forças, sabe, com as três forças. Eu não quero, não quero ter problemas com a força, não quero que eles tenham problema comigo, e eu quero que a gente volte à normalidade, é isso. É isso.

As pessoas estão aí para cumprir suas funções, e não para fazer política. Quem quiser fazer política, tira a farda, renuncia ao seu cargo, cria um partido político e vá fazer política. Mas enquanto estiver servindo as Forças Armadas, enquanto estiver na Advocacia Geral da União, enquanto estiver no Ministério Público, essa gente não pode fazer política.

Essa gente tem que cumprir com a sua função constitucional, pura e simplesmente. Está escrito na lei, e é isso que eu quero que aconteça, e por isso eu vou ter uma nova conversa com os comandantes, vou ter uma conversa com o José Múcio. Eu tenho dito para todo mundo: o José Múcio é meu amigo de muitos anos, é uma pessoa que eu confio, é uma pessoa de muita habilidade política, por isso que ele foi escolhido. Porque ele é um homem que, sempre que possível, ele tenta evitar qualquer conflito, e tem gente que não gosta disso, tem gente...

Natuza: É, ele foi alvo de fogo amigo por causa disso.

Lula: Tem gente que não gosta disso, tem gente que quer, sabe, sair logo de cara na porrada; não é assim. Eu acho que se a gente puder conversar, se a gente puder acordar, se a gente puder contemporizar para que a coisa melhore para amanhã, nós temos que fazer. E é isso que eu vou fazer, com muita tranquilidade.

Natuza: O senhor falava da questão militar, e eu estou entendendo que o senhor quer abrir um novo capitulo nessa relação, ou pelo menos que o senhor está disposto a abrir um novo capitulo dessa relação, apesar dos atos golpistas, dos acampamentos que ficaram na frente dos quartéis.

Lula: Veja, todos que participaram do ato golpista serão punidos. Todos! Não importa a patente. Não importa a força que ele participe, todos que a gente descobrir que participaram dos atos serão punidos. Terão que ser afastados das suas funções e vão responder perante a lei.

Natuza: Agora eu queria passar pela Amazônia, porque essa reestruturação da indústria de defesa, essa modernização das Forças Armadas, que é uma das pautas do seu encontro, passa por uma atribuição que é das Forças, que é preservação do Exército, que é a preservação das nossas fronteiras e da Amazônia, que hoje está sob a guarda do crime organizado. O que fazer especificamente para isso, para proteger a Amazônia?

Lula: Primeiro, eu acho que nós temos que criar, sabe, um agrupamento da Polícia Federal que vai agir mais fortemente na questão da Amazônia, na questão da preservação do clima, e vai investir mais forte na questão do narcotráfico nas nossas fronteiras.

Natuza: Ou seja, colocar mais polícia lá?

Lula: Mais gente. Segundo, a gente vai trabalhar durante esse mandato a perspectiva de criar uma força, um Ministério da Segurança Pública, sabe, com uma missão de muita responsabilidade no cuidado das nossas fronteiras e dos nossos biomas.

E por que a gente quer fazer isso? Porque hoje a questão do clima não é mais uma coisa de estudante da USP ou uma coisa de intelectual. Não, a questão climática hoje é uma necessidade de você preservar a espécie humana no planeta. E todo mundo tem que ter responsabilidade.

Então, nós vamos fazer, nós vamos discutir com as Forças Armadas o trabalho que a gente deve fazer muito mais eficaz do que está sendo feito hoje. Sabe, nós inclusive vamos fazer uma fiscalização mais contundente, mais forte, para que a gente possa tomar conta da nossa floresta, um compromisso que nós temos é até 2030 termos desmatamento zero na Amazônia, eu vou buscar isso a ferro e fogo.

Eu vou precisar das Forças Armadas, eu vou precisar da Polícia Federal, eu vou precisar da força que nós vamos criar, para que a gente possa resolver esse problema definitivamente no Brasil. Eu, inclusive, estou tentando marcar uma reunião com os presidentes da Amazônia, com o Equador, com Colômbia, com Peru, com Venezuela, com a Bolívia e com a Guiana Francesa, para que a gente discuta uma política continental para preservar nossa Amazônia e saber se esse famoso crédito de carbono existe mesmo para poder você ter dinheiro para melhorar a qualidade de vida das pessoas que vivem na Amazônia.

Só no Brasil são 25 milhões de pessoas que precisam trabalhar, que querem ter acesso a bens materiais, e essa gente precisa, sabe, ganhar dinheiro. E a indústria não pode ser poluidora. Então, nós vamos brigar muito para que o mundo desenvolvido coloque o dinheiro que existe para que a gente possa preservar, de fato, a Amazônia.

Nós não queremos transformar a Amazônia num museu, um santuário da humanidade. Nós queremos fazer com que a Amazônia seja preservada, a bem do povo da Amazônia, a bem do povo brasileiro e a bem da humanidade, é isso que nós queremos, Natuza.

Natuza: Presidente, eu queria jogar luz um pouco sobre a extrema-direita. O senhor mencionou Trump ao longo dessa... da primeira parte da nossa entrevista, o senhor vai aos Estados Unidos agora, em fevereiro, se encontrar com o presidente americano Joe Biden. O senhor tem intenção de ou pedir algum tipo de colaboração, ou até mesmo conselho, porque lá já aconteceu o que aconteceu aqui, há dois anos, de como enfrentar a extrema-direita? E como governar com uma extrema-direita?

Lula: Olha, a primeira coisa que nós temos que ter claro, Natuza, é que a extrema-direita existe hoje no mundo inteiro. Ela existe na Hungria, existe na Itália, ela existe na Alemanha, ela existe na Espanha, ela existe em Portugal. Em todo lugar está nascendo agrupamento de extrema-direita. Com vocações nazistas, com vocações stalinistas, sabe, com as mais diferentes formas de agir.

Eu estive com o primeiro-ministro grego, o ex-primeiro ministro grego, e ele me disse que na Grécia o discurso é o mesmo, é a pátria amada, é a questão da família e de costumes, e a questão religiosa. Na Grécia. É quase que um discurso universal. Tá? Então, o que aconteceu? Aqui no Brasil, nós ganhamos as eleições, derrotamos o Bolsonaro, agora o que nós precisamos é derrotar essa narrativa fascista que tem no Brasil.

E aí nós vamos ter que exigir que as forças democráticas se manifestem, não importa a que partido político a pessoa pertença, não importa qual é a origem social das pessoas, o que nós queremos é que todas as pessoas, sabe, do mais humilde brasileiro ao mais importante brasileiro, ou seja, ao mais importante jornalista, ao mais importante intelectual, que todos se manifestem em defesa da democracia, porque a democracia é a única possibilidade da gente construir uma nação forte e soberana.

Então, eu vou lá e vou conversar com o Biden, eu quero saber como é que ele está lidando. Porque pela imprensa que eu leio, me parece que o pessoal dos republicanos está ficando mais forte, parece que o discurso radical está ficando mais forte, e me parece que os democratas estão tendo um pouco de dificuldade. Aí vai ter eleições daqui dois anos.

Natuza: E é exatamente essa a pergunta, porque lá há uma certa reabilitação de Trump, tanto que ele é pré-candidato à presidência da República, novamente, com alguma força. A minha pergunta é se o senhor acha que esse enredo pode se repetir aqui em relação não só à extrema-direita, mas também em relação a Bolsonaro. Se o senhor considera Bolsonaro carta fora do baralho ou esse ainda é um processo que não dá para concluir nesse sentido?

Lula: Não, veja, vai depender se o Bolsonaro é ou não carta fora do baralho vai depender da investigação, da participação dele nesse processo todo. Em todas as provocações que ele fez, vai ter muito processo contra ele, ou seja, vai depender muito da justiça. Eu não considero ninguém carta fora do baralho. Não considero ninguém. Sabe?

Aqui nesse país, você sabe que muita gente me considerava carta fora do baralho e eu estou Presidente da República outra vez. Então, eu não considero ninguém carta fora do baralho. O que eu acho é que nós esperamos que haja mais severidade da justiça na apuração e no julgamento dessas pessoas. Eu quero que todo mundo tenha direito à presunção de inocência, que eu não tive, mas eu quero que todas as pessoas sejam investigadas, porque se o Bolsonaro tiver participação direta no que aconteceu, ele tem que ser punido, e se ele for punido, ele é inelegível.

Isso vale para ele, vale para mim, vale para qualquer pessoa. Então, eu vou devagar, sabe, com o andor. Não vou querer, sabe, dizer o que vai acontecer em 2026. Eu vou aos Estados Unidos conversar com o Biden e eu espero que a gente possa discutir um pouco a democracia no mundo, o que está acontecendo lá e o que está acontecendo aqui, porque é muito parecido. Sabe?

Então, é preciso que os democratas, sabe, digam o que eles vão fazer para ganhar as eleições, porque a gente não pode voltar à anormalidade que o Trump criou nos Estados Unidos. Eu tinha visto uma pesquisa que antigamente você perguntava para um republicano se ele permitiria que a filha dele casasse com um democrata, apenas 4% diziam que não podia; hoje é quase 80% que não pode casar.

Ou seja, mas não é possível! A política não existe para isso. A política existe para você estabelecer cordialidade, debates políticos, divergências e consolidar o processo democrático. Depois, em março eu vou para a China, eu vou conversar com o presidente Xi Jinping, que também? sabe?

Porque na China tem movimentos, e tem movimentos, e tem movimentos; a gente sabe menos porque as nossas informações são mais limitadas. Eu vou receber dia 30 agora o primeiro... o chanceler alemão, Olaf Scholz. Ou seja, eu quero conversar com ele também o que está acontecendo na Alemanha, porque é um movimento internacional, essa extrema-direita.

Natuza: É, e aí exigiria uma resposta em ter uma articulação internacional como resposta.

Lula: Então veja, por isso que eu vou propor, eu já conversei com gente francesa, com gente espanhola, com gente alemã, nós precisamos fazer uma unidade do pessoal progressista e democrático do mundo, fazer uma reunião para a gente estabelecer uma ação de enfrentamento para não permitir o ressurgimento do nazismo ou do fascismo. Sabe?

Nós precisamos ter competência para convencer a sociedade de que o regime democrático é melhor. Nós temos que estabelecer, e a democracia que a gente vai defender, Natuza, ela só vai ser respeitada pelo povo se você não tiver gente passando fome, se você não tiver gente, sabe, muita gente desempregada morando na rua, se você não diminuir o feminicídio, ou seja, então as pessoas ficam pensando: "Que democracia é essa que eu estou com fome, estou sem emprego, estou vendo as mulheres apanharem, estou vendo os meninos negros morrerem na periferia? Que democracia que é essa?". Sabe?

Porque tem muitas favelas que as pessoas admiram mais o bandido do que a polícia, porque a gente não resolve o problema da violência nas comunidades com a polícia, a gente resolve com a presença do Estado.

Se o Estado estiver nas comunidades com saúde, com educação, com lazer, com trabalho, com esporte, a gente consegue diminuir a violência, e é por isso que nós vamos apostar muito na escola de tempo integral, porque o tempo que esse jovem estiver dentro de uma escola a gente vai ter garantia que essa pessoa não vai ser vítima de uma bala perdida, como acontece muitas vezes, sabe, que a bala nem é tão perdida, mas já se criou o estigma de bala perdida, ou seja, e muita gente morre, e de preferência as pessoas pobres e negras da periferia brasileira.

Então nós vamos trabalhar muito, muito para que a gente reconstrua a democracia, e a democracia, ela só vai vingar se a gente cuidar do povo. Nós temos que cuidar do povo, nós temos que cuidar da família, as pessoas têm que acreditar no governo. O governo tem que ser verdadeiro, sabe? O governo não pode mentir para a sociedade.

A gente vai ter que dizer, sabe, o que vai fazer, e fazer aquilo que a gente disse que vai fazer. É por isso que eu não? não faço muito rompante durante a campanha. Eu lembro sempre em 2003, que eu falei: "Se quando eu terminar meu governo, cada brasileiro estiver tomando café, almoçando e jantando, eu terei cumprido a missão da minha vida".

E aqui no Brasil a mesma coisa: eu vou começar a recuperar o salário mínimo das pessoas, porque o salário mínimo é a melhor forma de distribuição de riqueza. Quando o PIB cresce, só tem sentido esse PIB crescer se o crescimento dele for distribuído entre as pessoas que fizeram ele crescer. Não são os empresários que fazem ele crescer, são os trabalhadores, e muitas vezes os trabalhadores não participam. E se o país chegou a crescer a 10% ao ano, e o povo continuou pobre.

Natuza: Quando fala em recompor, o senhor fala em recompor já, agora, ou ao longo do período do mandato?

Lula: Então, deixa eu lhe falar: as pessoas compreendem, sabe, que a minha situação é delicada. Faz 18 dias que eu tomei posse. Eu nem casa para morar não tenho ainda.

Natuza: Eu vou chegar lá.

Lula: Acho que é o único caso na história do mundo em que o Presidente da República não tem onde morar. Eu fui ao Torto saber se eu podia ficar lá depois que o Guedes saiu, o Torto, sinceramente?

Natuza: Não dá para morar?

Lula: Sinceramente, não dá. Eu conheci o Torto, eu morei lá um ano e meio, depois eu morei, quando o Fernando Henrique Cardoso era presidente, eu fiquei lá 40 dias, depois eu morei um ano e meio quando estava reformando o Palácio da Alvorada e, sinceramente, sabe, aquilo foi abandonado. Embora o Guedes morasse lá, eu acho que o Guedes só fazia entrar dentro de casa, dormir, trabalhar, atender, mas aquilo não foi cuidado.

E o Alvorada é uma pena. Você esteve lá. É uma pena, porque eu morei lá, herdei aquilo, sabe, do mandato de oito anos do Fernando Henrique Cardoso, eu recebi aquilo limpinho, cuidado, sabe, do jeito que estava eu fui morar, morei oito anos lá, deixei aquilo limpinho, bem cuidado para a Dilma, reformado, inclusive, uma reforma que eu pedi para a Abdib fazer, e ela juntou 25 empresários e fizeram aquela reforma, que era uma doação deles à União, ao patrimônio público, fizeram uma bela de uma reforma naquilo lá, e agora, quando nós fomos lá ver, eu sinceramente não sei o que foi feito no Alvorada.

Eu, sinceramente, eu não sei como é que pode. Eu cheguei no Alvorada, não tinha cama no quarto, não tinha— estava semidestruído, aquilo. Eu não sei se eles levaram embora, o que eles fizeram, mas quando eu saí, eu deixei tudo. Quando a Dilma saiu, ele deve ter deixado tudo. Quando o Fernando Henrique Cardoso saiu, ele deixou tudo. Você não precisa mudar nada, você entra e mora. Você pode até comprar uma roupa de cama, mas você foi lá ver: não tem nada. Não tem nada! E muita coisa estragada. Sabe?

A impressão que se dá é que não tinha limpeza naquilo lá, essa é a impressão que se dá. Então está sendo arrumado aquilo, eu espero que, dentro de dez ou quinze dias, eu possa voltar a trabalhar no Alvorada, porque eu quero exercer esse mandato na sua plenitude total, e isso passa por morar no Palácio em que o Presidente da República tem que morar. Porque tem lugar para fazer muitas reuniões, e eu quero cuidar desse país.

Eu voltei, Natuza, com um único objetivo, é uma obsessão minha. É uma obsessão. Não é um programa de governo, eu acho que é possível cuidar desse povo. É possível fazer as famílias brasileiras voltarem a ser felizes. É possível voltar os irmãos a conversar, pai e mãe conversar, sogro e sogra, sabe? Conversarem com genros, porque está tudo dilacerado, está tudo semidestruído.

Esse país não tem essa vocação do ódio. Esse país eternamente é o país do samba, é o país do carnaval, é o país do futebol. Nós conseguimos transformar nos meus oito anos de mandato o Brasil em protagonista internacional. O Brasil passou a ser uma espécie de coqueluche, todo mundo queria conversar com o Brasil, todo mundo gostava do Brasil, isso eu vou reconstruir. Eu vou tirar o Brasil do isolamento e vou fazer com que esse país volte a ser respeitado no mundo e protagonista internacional. Pode ficar certa disso.

Natuza: Presidente, para entrar em economia, só não queria deixar de abordar com o senhor um ponto do assunto antigo, atos golpistas. O senhor apoia a criação de uma comissão parlamentar de inquérito que foi...

Lula: Não.

Natuza: Por quê?

Lula: Quero te dizer o seguinte, olhe, nós temos instrumentos para fiscalizar, sabe, o que aconteceu nesse país. Uma comissão de inquérito, ou seja, ela pode não ajudar e ela pode criar uma confusão tremenda. Nós não precisamos disso agora.

Natuza: Tem uma clássica... um clássico de que governos não gostam muito de CPI porque você sabe como começa, mas não sabe como termina, é isso?

Lula: Isso é verdade, porque eu reivindiquei muita CPI, isso é verdade. Você sabe como ela termina, mas não sabe como ela termina.

Natuza: Quando o senhor era oposição.

Lula: O que nós podemos investigar na CPI que a gente não pode investigar aqui agora? Nós estamos investigando, tem 1300 pessoas presas. Nós estamos ouvindo depoimento, estamos pegando telefone celular, nós temos filmagens, sabe, das câmeras que mostram quem participou, quem não participou. Sabe, nós sabemos quem foi negligente, quem não foi negligente. Nós já temos uma coisa, ou seja, o que você pensa que a gente vai ganhar com uma CPI? Eu, sinceramente, é uma decisão do Congresso Nacional, não é minha, portanto os partidos políticos na Câmara e no Senado é que vão decidir, mas se por acaso eles me pedissem um conselho, sabe, que é difícil pedir conselho, eu dizia: não façam CPI, porque não vai ajudar.

Natuza: Presidente, rapidamente, porque o senhor me deu 50 minutos para essa entrevista, e a gente está chegando bem perto do fim.

Lula: Eu tenho tempo.

Natuza: O seu governo vai apresentar em breve um novo regime fiscal, já que o senhor enxerga que a política do teto de gastos, o senhor já disse que é uma política burra. O que será colocado no lugar? O senhor já tem alguma ideia?

Lula: Olha, deixa eu te dizer uma coisa, qual é a minha divergência. A minha divergência é o seguinte: nesse país se brigou muito para ter um Banco Central independente achando que ia melhorar o quê? Sabe, eu posso te dizer com a minha experiência, é uma bobagem achar que um presidente do Banco Central independente vai fazer mais do que fez o Banco Central quando o presidente é quem indicava.

Eu duvido que esse presidente do Banco Central seja mais independente do que foi o Meirelles. Duvido. Por que o banco independente da inflação estar do jeito que está, sabe, e os juros estar do jeito que está. Sabe? Veja, você estabeleceu uma meta de inflação de 3.7%, quando você faz isso, você é obrigado a arrochar mais a economia para poder atingir aqueles 3.7%. Por que precisava fazer 3.7%? Por que não fazer 4.5, como nós fizemos?

O que nós precisamos nesse instante é o seguinte, a economia brasileira precisa voltar a crescer, e nós precisamos fazer distribuição de renda, nós precisamos fazer mais política social. Se você pegar todos os dados econômicos, você vai ver que durante a pandemia, quem era rico ficou mais rico, os poderosos ficaram muito mais ricos, e o povo ficou mais pobre.

Então, eu fico irritado às vezes quando se discute muito, qualquer problema se discute estabilidade, estabilidade, estabilidade fiscal, estabilidade fiscal. Ninguém, Natuza, ninguém foi mais responsável do ponto de vista fiscal do que eu fui.

Eu queria só relembrar a você do seguinte: eu quando peguei esse país, a inflação estava 12% e a taxa de juros estava 12%. A gente devia 30 bilhões ao FMI. O Brasil tinha uma dívida interna bruta de 60,5% do PIB. O Brasil, o Malan, sabe, ia todo final de ano em Washington ver se conseguia um dinheirinho para fechar o caixa aqui, atrás do FMI.

O que nós fizemos nesse país? Nós entramos, estabelecemos a meta de inflação de 4,5% e cumprimos, nós geramos em oito anos quase 14 milhões de empregos, depois, com o mandato da Dilma, foram 22 milhões de empregos, nós reduzimos a dívida de 60.5% para 37.7%, e nós fizemos uma reserva que o Brasil nunca tinha tido de 370 bilhões de dólares.

E vou dizer mais para você, o único país do G20 que cumpriu o superávit primário todos os anos que nós governamos esse país. Então, não peçam pra mim seriedade fiscal. Não peçam. O que eu quero é que as pessoas que querem estabilidade fiscal, tenham estabilidade social.

Assume compromisso com o social, porque não é possível esse país ter gente na fila do osso para pegar carne, não é possível esse país ter 30% de pessoas passando fome. Não é possível, esse país, você sabe quantos anos faz que o funcionário federal não recebe aumento? Sete anos.

Natuza: A responsabilidade social e a responsabilidade fiscal são frequentemente apresentadas, e as vezes eu tenho impressão que o senhor pensa assim, eu queria que o senhor me dissesse se é isso mesmo, como se elas fossem antagônicas, como se uma fosse inimiga da outra. Mas há quem entenda que elas não são necessariamente antagônicas. Para o senhor, elas são inimigas?

Lula: Elas são antagônicas por causa da ganância, sabe, das pessoas mais ricas. Ou seja, as pessoas não querem... o empresário não ganha muito dinheiro porque ele trabalhou, ele ganha muito dinheiro porque os trabalhadores dele trabalharam. O que nós queremos é que apenas haja a contrapartida no social.

Não interessa a gente ter uma sociedade de miseráveis, nós queremos ter uma sociedade de classe média. Nós queremos que a pessoa tenha poder de consumo. Nós queremos que as pessoas possam viajar. Nós queremos que as pessoas possam comprar uma casa. Nós queremos que as pessoas possam comprar um carro. É o mínimo necessário que nós precisamos garantir para as pessoas: que eles consumam aquilo que eles produzem.

Agora, o que tem acontecido no Brasil? Se você pegar o relatório da economia, você vai ver que muita gente que era rica ficou muito mais rico, e o povo ficou mais pobre. Hoje são 105 milhões de pessoas com algum problema de insegurança alimentar, além dos 33 milhões que passam fome.

Hoje, o salário, a massa salarial caiu muito, e nós temos milhões de trabalhadores trabalhando em aplicativos sem nenhum direito. Nós vamos fazer, com o dirigente sindical, e eu vou ter uma reunião com os dirigentes fiscais, para discutir uma nova reformulação, uma nova restruturação do movimento sindical. A gente não quer voltar ao passado, a gente quer estabelecer uma nova relação entre capital e trabalho.

Para isso, nós vamos criar uma comissão com sindicalistas, com empresários e com o governo para ver se a gente cria uma estrutura sindical em que as pessoas se sintam representadas e a gente possa garantir que as pessoas tenham direito. Ou seja, porque esse trabalhador que trabalha em aplicativo, ele pensa que ele é microempreendedor, ele não é microempreendedor, porque ele não tem nenhum programa de seguridade social. Quem tem que garantir isso é o Estado brasileiro.

Natuza: E a carga tributária, presidente? Porque o Brasil é um dos países com maior carga tributária. É possível aumentar a arrecadação sem aumentar imposto?

Lula: Eu... Natuza, a vantagem de ser candidato muitas vezes é que eu já discuti esse assunto 89, em 94, em 98, em 2002, 2006, 2010, 2014, 2018, mesmo na cadeia, eu discuti isso, e agora. Veja, nós precisamos fazer uma reforma tributária de verdade para que as pessoas mais ricas, para as pessoas que vivem de dividendos, para as pessoas que, sabe, que ganham mais dinheiro paguem mais Imposto de Renda, e as pessoas que ganham menos, paguem menos Imposto de Renda.

Não sei se você sabe que 60% das pessoas que pagam Imposto de Renda ganham R$ 6.000,00 por mês. Essas pessoas são consideradas ricas. Você sabia? Essas pessoas que ganham R$ 6.000,00 são consideradas ricas. Eu fico imaginando um cara que ganha R$ 6.000,00, se ele pagar 2.500 de aluguel, sobram quatro e meio para ele. Se ele pagar a escola para os filhos, sobram três e pouco para ele fazer todas as despesas de casa e para ele cuidar da família.

Então as pessoas têm que entender— Por isso que eu defendi durante a campanha, e vamos tentar colocar em prática na proposta de reforma tributária, que até R$ 5.000,00 a pessoa não pague Imposto de Renda. Sabe? Não é possível que a gente não faça.

Natuza: E, para isso, precisa de apoio no Congresso. Hoje, o que o senhor tem de base, pelo menos do que foi negociado, não dá conta de emenda à Constituição. Deu, no caso, do novo modelo, da PEC que o senhor conseguiu aprovar ainda na transição, o que foi, de fato, algo inédito, mas o Congresso que vai chegar é um Congresso mais custoso. Como é que o senhor vai aprovar emenda à Constituição, reforma tributária ou outras que vieram por aí?

Lula: Eu começo a governar acreditando que eu tenho uma base mínima de 513 deputados e 81 senadores.

Natuza: É muito otimismo, presidente.

Lula: A partir dessa crença, eu vou tirando aqueles que eu sei que não vão votar em mim, e eu espero ficar com a maioria para votar. Veja, eu não vou mandar proposta do meu interesse pessoal. Eu quero mandar propostas que possam convencer os deputados de que a gente pode mudar esse país para melhor. Você imagina, uma pessoa, uma pessoa que tem uma empresa que ele retira 140%— R$ 140.000,00 para ele sobreviver, ele paga menos Imposto de Renda do que um cara que ganha um salário mínimo. Ou melhor não: que ganha R$ 2.000,00 por mês. Proporcionalmente, ele paga menos.

Então, o que nós queremos? É que as pessoas que ganham mais, paguem mais; as pessoas que ganham menos, paguem menos; e que a classe média brasileira não seja tão sacrificada, porque todas as pessoas que recebem salário têm que descontar na folha de pagamento. Esse a gente tem certeza que ele está pagando Imposto de Renda.

E a sonegação? Ontem um cara me disse o seguinte: "Presidente, tem três empresários, sabe, que vendem combustível nesse país que sonegam R$ 20.000.000.000,00 por ano". Não sei quem é, mas nós vamos fazer uma fiscalização para saber quem é que sonega nesse país e denunciar.

Nós temos que denunciar os sonegadores, nós temos que denunciar aqueles que têm dívidas com a Previdência Social. Você sabe que no CARF, que julga a dívida das pessoas com a União, você sabe que tiraram o voto que decide, ou seja, o chamado voto...

Natuza: Voto de minerva?

Lula: Vamos supor que seria o voto de minerva. Ou seja, agora, se entram cinco empresários, cinco do governo. Se der empate, é tudo para o empresário. Não tem ninguém que decida. São R$ 1.300.000.000.000,00. Ora, nós temos que ter um voto de minerva, um voto qualificado para decidir aonde vai esse dinheiro. O Estado não pode abrir mão disso.

Então, o que é que eu estou pensando? Eu estou pensando assim, olha: nós precisamos discutir, fazer a política fiscal que ela possa ser seguida. A gente tem que dar garantia para a sociedade brasileira de que a gente não vai gastar mais do que a gente ganha. Mas, ao mesmo tempo, nós temos que mudar o discurso. A gente não pode dizer que o dinheiro para educação é gasto. Nós temos que dizer que é investimento. O dinheiro para saúde não é gasto, o dinheiro para saúde é investimento. Sabe?

O dinheiro que você cuida das pessoas para melhorar a vida deles não pode ser tido como gasto. Gasto é o dinheiro jogado fora, gasto é o dinheiro... vamos pegar o seguinte: venderam a Eletrobras. Arrecadaram R$ 36.000.000.000,00. E alugaram o gasoduto pagando R$ 3.000.000.000,00 por ano. A pergunta que eu faço é a seguinte: o que é que foi feito com esses 36 bilhões? Sabe o que foi? Pagamento da dívida.

Ou seja, então você vende uma empresa que foi construída pelo povo brasileiro, arrecada 36 bilhões, e esse dinheiro vai para quem? Para os credores. Esse dinheiro não poderia ter ido para fazer o Minha Casa, Minha Vida? Esse dinheiro não poderia ter ido para o SUS? Esse dinheiro não poderia ter ido para melhorar a escola de tempo integral? Ou será que a única coisa que não é gasto nesse país é o pagamento de juros? Porque tudo mais é gasto.

Natuza: Eu já ouvi o senhor inclusive falando isso.

Lula: Eu vou fazer uma estrada, é gasto; eu vou fazer uma ponte, é gasto; eu vou fazer uma ferrovia, é gasto. Agora, a única coisa que não é gasto é pagar quase 600 bilhões de juros todo ano nesse país.

Natuza: Presidente, eu fiz um roteiro aqui de 19 perguntas, consegui fazer 15, porque nosso tempo acabou?

Lula: Pode fazer mais as quatro.

Natuza: O nosso tempo acabou e eu sei que o senhor tem uma agenda.

Lula: Vamos fazer um outro programa.

Natuza: Vamos! Quando o senhor quiser falar, nós queremos ouvi-lo, naturalmente.

Lula: Natuza, deixa eu dizer uma coisa para você, aproveitando essa oportunidade. Esse é o mandato da minha vida. Eu só voltei a ser Presidente da República porque eu acredito que a gente pode recuperar esse país. Eu acredito que a gente pode fazer com que as pessoas possam voltar a viver bem.

Eu, você sabe, eu casei em maio do ano passado. Eu não precisaria ter voltado à Presidência, eu poderia viver minha vida com muita tranquilidade. Eu voltei primeiro porque as pesquisas mostravam que eu era a única pessoa capaz de derrotar o Bolsonaro, tá? E isso aconteceu. Você sabe a quantidade de dinheiro que eles gastaram no ano da eleição, você sabe a quantidade de dinheiro que foi jogado nesse país.

Pois bem, nós ganhamos as eleições. Então agora eu tenho quatro anos, eu quero me dedicar 24 horas por dia, e a Janja sabe disso, a Janja é minha parceira, ela sabe que ela tem que trabalhar também; ela vai fazer o que ela quiser fazer. Ela não é obrigada a ter uma agenda comigo, ela vai comigo quando ela quiser ir comigo, mas ela vai fazer o que ela quiser, porque nós dois queremos ajudar a reconstruir esse país.

É minha profissão de fé agora, sabe? É uma coisa que eu trago na minha consciência, é meu compromisso com o povo brasileiro. E eu vou me dedicar. Pode ficar certa que eu vou me dedicar, sabe, como jamais me dediquei a alguma coisa para tentar consertar esse país. Se isso acontecer, aí eu terei cumprido outra vez a missão da minha vida.

Esse é meu compromisso com o povo brasileiro, a imprensa vai ser bem tratada por mim, sabe? Mas vai ser muito bem tratada mesmo. Eu vou ter o interesse de conversar com a imprensa, porque é preciso a gente desmentir e desmistificar o que aconteceu no Brasil de 2019 a 2022. Essa mentira tem que desaparecer. Esse é um período turvo da nossa história que nós precisamos apagar.

Natuza: Presidente, muito obrigada pela entrevista, muito obrigada por me receber na sua primeira entrevista exclusiva.

Lula: Obrigado a você, Natuza.