Gastos de Michelle eram pagos com dinheiro de fornecedor de estatal, diz PF
Colunista do UOL e do UOL, em São Paulo
13/05/2023 13h21Atualizada em 14/05/2023 12h35
Uma empresa com contratos públicos na gestão de Jair Bolsonaro é a origem de uma série de transferências feitas a um militar da Ajudância de Ordens da Presidência da República, que fez saques em dinheiro vivo e, com ele, pagou despesas de um cartão de crédito usado por Michelle Bolsonaro em pelo menos três ocasiões, segundo a Polícia Federal. O militar, o segundo-sargento Luis Marcos dos Reis, também fez ao menos 12 depósitos em dinheiro em conta de uma tia da então primeira-dama.
Os pagamentos ocorreram pelo menos até julho de 2022, de acordo com dados obtidos pela Polícia Federal ao quebrar sigilos bancários de auxiliares do tenente-coronel Mauro Cid, ajudante de ordens do então presidente Jair Bolsonaro (PL). Quando autorizou a quebra de sigilo de subordinados de Cid, ainda no ano passado, o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes afirmou que o caso tinha indícios de "desvio de dinheiro público" por meio dos militares do Planalto e de assessoras da então primeira-dama.
A defesa de Jair Bolsonaro e Michelle negou enfaticamente que recursos da Codevasf tenham bancado as despesas da ex-primeira-dama e negou irregularidades nas transações. "A dona Michelle não conhece esse ajudante de ordens [sargento Dos Reis] e desconhece que ele tenha feito pagamentos para ela", disse Fábio Wajngarten, advogado que chefiou a Secretaria de Comunicação na gestão Bolsonaro.
Segundo a PF, a Cedro do Líbano Comércio de Madeiras e Materiais para Construção, empresa com sede em Goiânia e contratos com o governo federal, é a origem de depósitos de pelo menos R$ 25.360 na conta bancária do sargento Dos Reis, que trabalhava sob as ordens de Mauro Cid, então ajudante de ordens de Bolsonaro, no Palácio do Planalto.
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O principal contrato da Cedro do Líbano é com a Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e Parnaíba), estatal que já foi alvo de operações da PF mirando corrupção em contratos no Nordeste no ano passado.
Segundo a Polícia Federal, o dinheiro era depositado por Vanderlei Cardoso de Barros, pai de uma sócia da Cedro do Líbano, nas contas do sargento Dos Reis. Em ao menos uma ocasião, o dinheiro foi transferido de conta bancária da própria Cedro. Depois que o dinheiro caía na conta, o sargento sacava as notas em um caixa eletrônico. Segundo a PF, Dos Reis era responsável por fazer pagamentos a pessoas ligadas à então primeira-dama e para outros militares da Ajudância de Ordens da Presidência da República.
Vanderlei Cardoso de Barros, o autor das transferências para o sargento Dos Reis, foi encontrado pelo UOL na manhã deste sábado. Ele disse que é amigo do militar e que o dinheiro foi um "empréstimo", mas que não sabia como o militar usaria o dinheiro (leia mais abaixo). Vanderlei disse que é marido de uma sócia da empresa, não pai.
A Polícia Federal afirma não ter encontrado justificativa para os pagamentos da Cedro do Líbano ao sargento Dos Reis, que trabalhava com Mauro Cid. Os dois estão presos preventivamente desde 3 de maio, por decisão do STF (Supremo Tribunal Federal). São investigados em inquérito que apura se houve falsificação do certificado de vacinação do ex-presidente Jair Bolsonaro.
Pagamentos na conta de amiga de Michelle
Três depósitos do sargento Dos Reis foram para a conta de Rosimary Cardoso Cordeiro, uma amiga de Michelle Bolsonaro, à época lotada como assistente parlamentar no gabinete do senador Roberto Rocha (PTB-MA).
Segundo a PF, Rose emitiu um cartão de crédito usado por Michelle Bolsonaro e vinha recebendo, pelo menos até junho de 2021, depósitos em espécie — alguns deles fracionados, segundo a investigação — de integrantes da Ajudância de Ordens da Presidência da República.
O dinheiro era usado para pagar a fatura do cartão de crédito usado pela primeira-dama.
A existência de um cartão de crédito emitido por Rosimary e usado pela primeira-dama foi revelada em uma reportagem do portal Metrópoles em fevereiro de 2022. Na ocasião, a reportagem informou que contas de Michelle eram pagas por militares da Ajudância de Ordens da Presidência.
O cartão de crédito emitido pela amiga já era uma preocupação do próprio tenente-coronel Cid em 2020, como revelou o UOL neste sábado.
Em 25 de novembro de 2020, após ouvir o relato de Giselle da Silva, uma assessora de Michelle, sobre o uso do cartão, Mauro Cid afirma que a situação das despesas da primeira-dama poderia ser alvo de investigações por sua semelhança com um esquema de rachadinha, ou desvio de recursos públicos.
Mauro Cid também compara a situação com o caso do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), filho do presidente que foi denunciado sob acusação de peculato pelo Ministério Público do Rio.
"Giselle, mas ainda não é o ideal isso, não, tá? O Cordeiro conversou com ela, tá, também. E ela ficou com a pulga atrás da orelha mesmo: tá, é? É. É a mesma coisa do Flávio. O problema não é quando! É como deputado, rachadinha, essas coisas."
Mauro Cid, ajudante de ordens de Bolsonaro, em áudio enviado a Giselle dos Santos Carneiro da Silva, em 25/11/2020, segundo transcrição da PF
"Se ela [Michelle] perguntar pra você ou falar alguma coisa ou comentar, é importante ressaltar com ela que é o comprovante que ela tem. É um comprovante de depósito, é comprovante de pagamento. Não é um comprovante dela pagando nem do presidente pagando. Entendeu? É um comprovante que alguém tá pagando. Tanto que a gente saca o dinheiro e dá pra ela pagar ou sei lá quem paga ali. Então não tem como comprovar que esse dinheiro efetivamente sai da conta do presidente. O Ministério Público, quando pegar isso aí, vai fazer a mesma coisa que fez com o Flávio, vai dizer que tem uma assessora de um senador aliado do presidente, que está dando rachadinha, tá dando a parte do dinheiro para Michelle".
Novamente Cid para a assessora Giselle em áudio na mesma data, 25/11/2020, segundo a PF
Pagamentos mensais para a tia da primeira-dama
Além do sargento Dos Reis, que realizou 12 depósitos para Maria Helena Graces de Moraes Braga, tia de Michelle Bolsonaro, outros militares que trabalhavam sob as ordens do tenente-coronel Cid também realizavam pagamentos de valores idênticos com periodicidade regular.
- 18 de abril de 2022: o sargento Dos Reis deposita R$ 2.840 na conta de Maria Helena, a tia;
- 17 de maio de 2022: o segundo sargento Luiz Antônio Gonçalves de Oliveira depositou R$ 2.840 na conta de Maria Helena;
- 15 de junho de 2022: Maria Helena recebe mais R$ 2.840, depositados de um terminal de autoatendimento do BB na praça dos Três Poderes, sem que a PF tenha conseguido identificar até o momento quem foi o portador do dinheiro;
- 18 de julho de 2022: o sargento Dos Reis deposita mais R$ 2.840 na conta de Maria Helena. Há uma peculiaridade nesta transação porque oficialmente Reis havia deixado de trabalhar na Ajudância de Ordens da Presidência no mês anterior.
Segundo a PF, outro militar da Ajudância de Ordens, o também segundo-sargento Murilo José Geromini Zilotti, também participou dos pagamentos. Na investigação, a PF concluiu que Zilotti foi "responsável por vários depósitos para Maria Helena e Rosimary por determinação da primeira-dama".
Os contratos da Cedro do Líbano com o governo
Ao autorizar quebras de sigilo bancário dos investigados em outubro de 2022, o ministro do STF Alexandre de Moraes considerou que os elementos colhidos pela PF "revelam indícios de desvio de dinheiro público, por meio da Ajudância de Ordens da Presidência da República, direcionando os valores para pessoas indicadas por Giselle dos Santos Carneiro da Silva e Cintia Borba Nogueira Cortes, assessoras da primeira-dama Michelle Bolsonaro".
O caminho do dinheiro começava numa empresa com contratos com o governo. Em 1º de junho de 2022, a Cedro do Líbano recebeu R$ 188 mil pela venda de quatro plantadeiras e adubadeiras mecanizadas para a Codevasf. A empresa, de venda de madeira e material de construção, não tem entre suas atividades declaradas à Receita Federal comércio de equipamentos agrícolas. Também não há máquinas à venda no site da companhia.
O pagamento foi liberado — mas não efetuado — no dia 18 de abril de 2022. Em 27 de maio, o pai da proprietária da Cedro do Líbano depositou R$ 15 mil para o sargento Dos Reis — que, minutos depois, fez o saque em dinheiro de R$ 12.700. Em 1º de junho, a empresa recebeu efetivamente o pagamento de R$ 188 mil da Codevasf.
A compra do maquinário teve origem em uma emenda da bancada parlamentar do Amapá.
Os contratos com outros órgãos federais foram de menor monta. Em 10 de janeiro de 2022, a Cedro do Líbano recebeu R$ 75.200 da Ufes (Universidade Federal do Espírito Santo). O contrato previa a entrega de uma colhedora de forragem. O dinheiro foi empenhado em 6 de janeiro de 2021.
Outro lado
A defesa do ex-presidente e da ex-primeira-dama refutou as conclusões de que recursos de um fornecedor da Codevasf tenham sido usados para pagar gastos de Michelle Bolsonaro e negou irregularidades nas transações.
"A dona Michelle não conhece esse ajudante de ordens e desconhece que ele tenha feito pagamentos para ela. Contas pequenas, fornecedores informais, necessidades privadas e pequenas compras, o Cid pegava o cartão da conta privada do presidente, sacava e fazia os pagamentos. Ele fazia isso para resguardar a privacidade do tomador de serviço e não expor a intimidade da dona Michelle e filhos. A dona Michelle rechaça qualquer pagamento e qualquer relação dele. A tia da dona Michelle cuidava da Laura e ela repassava pagamentos por conta de ser a babá da Laura", afirmou o ex-secretário de Comunicação e advogado Fábio Wajngarten.
"Não há em nenhum momento confusão de conta: o que é privado é privado, o que é público é público. Os valores saíam exclusivamente da conta do presidente", afirmou.
Em nota publicada em rede social neste sábado sobre o caso, Wajngarten também afirmou que "não há nada de ilegal" nas transações em dinheiro vivo envolvendo as despesas de Michelle."Conforme já amplamente explicado, os pagamentos de fornecedores informais, pequenos prestadores de serviços, eram feitos em dinheiro a fim de proteger dados do presidente. Muitos sequer sabiam que o contratante/tomador dos serviços era a primeira-dama", disse.
Procurado pelo UOL, Vanderlei Cardoso de Barros primeiro disse não se lembrar das transferências a Dos Reis. Depois, disse que o sargento é amigo dele e pediu dinheiro emprestado. As transferências são esse empréstimo, segundo Vanderlei. Ele disse que não conhece o ex-presidente Jair Bolsonaro nem a ex-primeira-dama Michelle e que Dos Reis não explicou para o que usaria o dinheiro. "Ele me perguntou se eu tinha dinheiro para emprestar, eu disse que tinha e emprestei. Mas foi pouco dinheiro", disse.
Sobre a Cedro do Líbano, Vanderlei disse que a empresa é de sua esposa, também citada nas investigações da PF. Mas ele garantiu que a companhia está, sim, cadastrada na Receita como vendedora de máquinas agrícolas. "A empresa participa de licitações, então precisa estar sempre toda certinha, regularizada", disse.
O UOL não conseguiu localizar o segundo-sargento Luis Marcos dos Reis, que recebia as transferências da cedro e realizou três depósitos para a conta da Rosimary Cardoso Cordeiro, que cedeu um cartão de crédito para a primeira-dama, e 12 depósitos para Maria Helena Graces de Moraes Braga, tia de Michelle Bolsonaro.
O advogado de Mauro Cid, Bernardo Fenelon, afirmou que "a defesa técnica, por respeito ao Supremo Tribunal Federal, se manifestará apenas nos autos do processo". A assessoria de Michelle Bolsonaro não respondeu aos contatos feitos pelo UOL na manhã deste sábado.
O UOL também não conseguiu contato das assessoras Giselle dos Santos Carneiro da Silva e Cintia Borba Nogueira Cortes, que foram citadas na decisão do ministro Alexandre de Moraes como responsáveis por indicar quem deveria receber o dinheiro depositado pelos auxiliares de Mauro Cid.
Em nota, a Codevasf confirmou o pagamento de R$ 188 mil à Cedro do Líbano e disse que os bens adquiridos (quatro plantadeiras e adubadeiras mecanizadas) "foram entregues de acordo com especificações estabelecidas em edital de pregão eletrônico, do tipo menor preço". "A Codevasf desconhece relações eventualmente existentes entre sócios ou familiares de sócios de empresas fornecedoras e terceiros", conclui o texto.