Lula repete Bolsonaro e turbina áreas sob controle do centrão com R$ 1,3 bi
O governo Lula (PT) injetou nesta semana pela primeira vez mais de R$ 1,3 bilhão em órgãos sob a influência do centrão em estratégia semelhante à utilizada pela gestão Bolsonaro (PL) em troca de apoio político.
O que aconteceu
O governo Lula usou pela primeira vez projetos de lei para aumentar o volume de recursos direcionados sem transparência por deputados e senadores a obras e compras de equipamentos em seus redutos eleitorais. De autoria da atual gestão, os textos que remanejaram mais de R$ 1,3 bilhão para áreas sob controle do centrão foram aprovados nesta semana no Congresso Nacional.
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O UOL mostrou que o governo Bolsonaro lançou mão da mesma estratégia para driblar vetos do STF (Supremo Tribunal Federal) ao orçamento secreto (emendas parlamentares de autoria desconhecida). Com isso, a gestão Bolsonaro engordou os cofres do Ministério da Defesa, que distribuiu R$ 1 bilhão a 24 parlamentares nos anos de 2021 e 2022.
Nos bastidores. Os projetos de lei que direcionaram recursos extras a órgãos sob controle do centrão foram elaborados pelo governo Lula para atender a demandas de parlamentares negociadas sem conhecimento público, segundo fontes do Congresso e do governo relataram ao UOL.
Os trâmites começaram em agosto em meio a votações importantes como a reforma tributária e o arcabouço fiscal. Logo após a Câmara aprovar o arcabouço, em 22 de agosto, três ministérios (Integração e Desenvolvimento Regional, Defesa e Agricultura) pediram R$ 760 milhões para turbinar os órgãos sob influência do centrão nos dias 23 e 24.
O UOL apurou que os recursos remanejados fazem parte dos R$ 9,8 bilhões do extinto orçamento secreto —os valores passaram para os cofres dos ministérios neste ano com a promessa de serem pagos de forma transparente e com critérios técnicos bem definidos.
Os órgãos que mais ganharam recursos foram a Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba) e o Dnocs (Departamento Nacional de Obras Contra as Secas), preferidos pelo centrão por pagarem com mais rapidez e menos controle.
Procurada, a SRI (Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República) afirmou, por meio de nota, que "não recebeu nenhum pedido de quem quer que seja". A pasta disse também que os projetos de lei viabilizam ações de redução de desigualdades.
Ampliação da base no Congresso
A ampliação dos recursos distribuídos aos parlamentares —tendo à frente lideranças do centrão— ocorre em um momento em que o governo Lula ampliou sua base no Congresso e conseguiu aprovar uma série de medidas econômicas tidas como essenciais.
Entre junho e agosto, foram aprovados o novo arcabouço fiscal, que substituiu o teto de gastos, e a recriação do voto de qualidade do governo no Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais). A reforma tributária também avançou no Congresso.
Nessas votações, o governo mostrou uma força até então não vista. O arcabouço fiscal, por exemplo, foi aprovado com o apoio de 379 deputados na Câmara. Essa margem de apoio garante folga, inclusive, para mudanças na Constituição —são necessários 308 votos para aprovar uma PEC (Proposta de Emenda Constitucional).
No período, o governo também conseguiu atrair para sua base o PP e o Republicanos, dois dos maiores partidos do centrão.
Mais R$ 80 milhões para a Defesa
Contemplado em um dos projetos de lei, o Ministério da Defesa receberá mais R$ 80 milhões para o programa Calha Norte. Esses recursos serão aplicados em convênios com governos estaduais e prefeituras, que contratam obras ou fazem compras de equipamentos após direcionamento de políticos.
Fontes relataram ao UOL que a verba foi solicitada pelo senador Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), o principal beneficiado no programa durante a gestão Bolsonaro. Alcolumbre foi o padrinho oculto de R$ 264 milhões em convênios realizados com recursos do ministério, segundo planilha de controle interno obtida via LAI (Lei de Acesso à Informação).
Em reportagem do UOL publicada neste mês, a Defesa disse não ter ingerência sobre o destino dos recursos do Calha Norte e que todas as indicações cabem a parlamentares.
No entanto, essa versão mudou. Questionada sobre quem seriam os padrinhos dos R$ 80 milhões injetados pelo projeto de lei de autoria do governo Lula, a Defesa afirmou que o Calha Norte "segue rigorosamente a legislação vigente e que, até o momento, não recebeu nenhuma indicação ou pedido de parlamentar".
Ofício da Defesa classificou a demanda de verba como urgente, mas a pasta não informou nem mesmo quais municípios serão beneficiados.
Procurado, Alcolumbre não comentou se tem envolvimento com os R$ 80 milhões injetados no Calha Norte. Na ocasião da publicação de reportagem que o posiciona como principal beneficiado do programa, o senador afirmou, em nota, que "desconhece qualquer sistema paralelo de distribuição de recursos no âmbito do Ministério da Defesa" e que apoia os investimentos da pasta "seguindo os critérios legais e transparentes".
Acréscimos após aprovação do arcabouço
Os trâmites para a aprovação dos dois projetos de lei começaram em 1º de agosto, com ofícios da ministra do Planejamento, Simone Tebet, solicitando remanejamentos de recursos. Os textos foram aprovados nesta semana na Comissão de Orçamento do Congresso.
Em ambos os casos, os valores originais foram modificados por pedidos feitos por ministérios em 23 e 24 de agosto —logo após a aprovação do arcabouço fiscal.
Esses acréscimos deram somente à Codevasf mais R$ 625 milhões. No total dos dois projetos de lei, a estatal ficou com mais de R$ 1 bilhão. Isso irá turbinar sensivelmente a atuação do órgão, que neste ano já reservou R$ 65 milhões de verbas vinculadas sem transparência a parlamentares.
Nos quatro anos da gestão Bolsonaro, os cofres da Codevasf foram inflados em R$ 550 milhões por meio de projetos de lei de autoria do governo. O instrumento foi utilizado principalmente em novembro de 2021, logo após decisão liminar da ministra do STF Rosa Weber ter suspendido o orçamento secreto: no final daquele mês, R$ 270 milhões (quase metade do total) foram remanejados para o órgão.
Sob Bolsonaro, a Codevasf foi um dos principais órgãos a receber recursos do orçamento secreto. As emendas de relator serviram de barganha política durante quase toda a gestão, já que o Supremo só as derrubou em definitivo em dezembro do ano passado.
A partir dos projetos de lei encaminhados pelo governo Lula, a Codevasf ganhou, mas o Ministério das Cidades perdeu R$ 802 milhões —o dinheiro saiu da pasta, conforme os projetos de lei.
A justificativa, segundo fontes ouvidas pelo UOL, é de que os projetos para obras e serviços vinculados à Funasa (Fundação Nacional de Saúde) —também sob influência do centrão— estavam travados porque havia insegurança sobre onde seriam administrados. Sob Lula, a Funasa inicialmente seria extinta. Depois, decidiu-se que ficaria vinculada ao Ministério da Saúde, mas foi remanejada para Cidades. Agora deve voltar à Saúde.
Em vez de "perderem os recursos" nesse imbróglio, a ideia foi remanejá-los para órgãos que executam as obras mais rapidamente: a Codevasf e o Dnocs, no Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional, e o Calha Norte, vinculado à Defesa.
Os projetos de Lei do Congresso têm como finalidade atender as demandas e necessidades que os ministérios e outros órgãos da gestão pública apresentam, com o objetivo de viabilizar e de ampliar a adesão de estados e municípios aos programas e ações do governo federal, especialmente aquelas voltadas à redução de desigualdades.
Nota da SRI da Presidência da República
Orçamento secreto, parte 2
As verbas que foram remanejadas fazem parte do que vem sendo chamado de "novo orçamento secreto". "São ações utilizadas por esses ministérios para pulverizar recursos nos municípios", afirmou a deputada Adriana Ventura (Novo-SP), em emenda para tentar derrubar recursos para o Calha Norte.
"Esses recursos serão utilizados para angariar apoio de parlamentares no que se tornou o novo orçamento secreto do governo Lula", afirmou ela, na emenda, que foi rejeitada na votação de um dos projetos na Comissão de Orçamento.
Com a proibição pelo STF das emendas de relator —cuja real autoria era desconhecida—, R$ 9,8 bilhões foram parar no caixa dos ministérios. No final do ano passado, ainda na transição de governo, a equipe do presidente Lula fez um acordo para o dinheiro ser pago neste ano.
A ideia era fazer tudo isso de forma transparente, mas isso não aconteceu, mantendo-se o sigilo sobre os parlamentares padrinhos das indicações de verbas.
O UOL solicitou, em três pedidos diferentes, a lista de congressistas atendidos com verbas do extinto orçamento secreto, mas o Palácio do Planalto e o Ministério da Saúde negaram ou não responderam.