Firma investigada por comida estragada leva licitação milionária na Defesa
Uma empresa investigada por fornecer comida estragada no Ceará venceu três lotes de uma licitação milionária do Ministério da Defesa para alimentação de venezuelanos refugiados no Brasil. Ao todo, os contratos obtidos pela empresa somam R$ 49 milhões.
O que aconteceu
A fornecedora de alimentos ISM Gomes de Mattos chegou a abocanhar todos os seis lotes da licitação, de cerca de R$ 100 milhões, para produção de marmitas a imigrantes atendidos pela Operação Acolhida, em Roraima. O cenário foi, contudo, revertido após recurso das concorrentes.
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Empresas concorrentes apontam favorecimento da ISM no pregão do Ministério da Defesa que prevê a distribuição de três refeições diárias a 10,5 mil venezuelanos em Boa Vista e Pacaraima por um ano. A ISM e o Ministério da Defesa negam a existência de cartas marcadas na licitação.
Um dos lotes --que fornecerá café da manhã a imigrantes em Pacaraima-- estava em vias de ser entregue à ISM, da empresária Idalina Sampaio, quando a Justiça Federal impediu.
A RK Refeições —que apresentou o menor preço (R$ 5,20 por marmita)— havia sido desclassificada, mas conseguiu reverter a medida após recorrer à Justiça.
Como nós já tivemos problemas com a [Operação] Acolhida e com a ISM Gomes, que é a empresa que geralmente ganha, nós entramos com recurso administrativo e mandado de segurança.
Humberto Pedrosa, advogado da RK
Não é a primeira vez que isso acontece, segundo o advogado relatou ao UOL. "Já fomos inabilitados lá atrás pela mesma fundamentação, na qual a ISM Gomes foi favorecida."
Em outros dois lotes, a ISM chegou a ser alçada à primeira colocação também em razão da desclassificação da vencedora, o que posteriormente foi revertido pelo Ministério da Defesa.
Atualmente, a ISM acumula três lotes da licitação com contratos de R$ 49 milhões ainda não assinados. Isso porque o governo suspendeu a confirmação do resultado dos seis lotes em razão da decisão judicial. Já a fase de recursos foi mantida em toda a licitação.
A ISM negou, por meio de nota e advogados, irregularidades ou favorecimento no pregão.
O Ministério da Defesa também refutou a existência de cartas marcadas. A pasta atribuiu o fato de a ISM levar todos os lotes à desclassificação de concorrentes, que depois foram reabilitadas.
De forma alguma há de se mencionar quanto a favorecimentos, tendo em vista que todas as ações foram objetivamente demonstradas e vinculadas aos preceitos legais previstos na lei de licitações e contratos administrativos.
Ministério da Defesa, em nota
Investigação por comida estragada
A ISM é suspeita de fornecer alimentos estragados e em quantidade insuficiente a hospitais, escolas e presídios do Ceará durante o governo de Camilo Santana (PT), hoje ministro da Educação.
O Ministério Público do Ceará também vê suspeita de fraude em licitação, desvio e lavagem de dinheiro.
Em 2018, Idalina Sampaio doou R$ 70 mil à campanha vitoriosa de Camilo Santana à reeleição.
O Ministério da Defesa indicou que a investigação da Promotoria contra a ISM não poderia impedi-la de concorrer. "Todos os documentos de habilitação, previstos na lei, foram analisados e não foram encontradas irregularidades."
Já a ISM manifestou "plena disposição em colaborar com o órgão, assim como, se colocou à integral disposição para fornecer informações e documentos necessários à elucidação dos fatos".
A empresa afirmou ainda que seus produtos têm qualidade. "Reforçamos nosso compromisso com as normativas sanitárias e ambientais para o exercício de nossas atividades", disseram os advogados.
A ISM também respondeu a dois processos no TCU (Tribunal de Contas da União). Apesar de irregularidades terem sido identificadas, não houve punições e as ações foram encerradas.
As investigações miravam contratos da ISM para fornecer alimentos à Operação Acolhida e a hospitais federais, por meio do Ministério da Saúde, durante o governo Bolsonaro. Nas duas ocasiões, Eduardo Pazuello —hoje deputado federal pelo PL-RJ— estava à frente dos órgãos contratantes.
Apenas entre 2018 e 2020, a empresa recebeu R$ 141 milhões por oito contratos da Operação Acolhida, segundo o TCU.
Criada em 2018, a Operação Acolhida abriga venezuelanos que fogem do regime do ditador Nicolás Maduro. Postos de atendimento e abrigos em Pacaraima e Boa Vista são a primeira porta de acolhimento.
Governo recua após Justiça suspender licitação
Foram duas as justificativas para a desclassificação da RK Refeições por organizadores do pregão do Ministério da Defesa: uma sanção anterior e preços baixos demais.
No entanto, a juíza da 1ª Vara Federal Cível de Manaus, Jaiza Pinto Fraxe, impediu que a ISM fosse declarada vencedora. Ela desconsiderou a sanção —por ela já ter sido cancelada— e pediu esclarecimentos ao governo, já que a licitação ficaria mais cara. Na prática, a licitação foi suspensa.
Duas horas após a decisão, no dia 1º deste mês, a Defesa reclassificou a RK ao analisar um recurso da empresa.
O que dizem os citados na reportagem
Os advogados da ISM afirmaram ao UOL que o processo de licitação "foi conduzido dentro da mais estrita legalidade" com a participação de 41 empresas. Três saíram vencedoras: a própria ISM conseguiu metade dos seis lotes. Os outros ficaram com a RK Refeições e com a Cozinha Gourmet Ltda..
Foi um pregão eletrônico. Essa licitação permitiu empresas internacionais. Três empresas sagraram-se vencedoras. A ISM não tem qualquer influência sobre esse processo ou qualquer órgão da administração.
Caio Fonteles, advogado da ISM
O ministro Camilo Santana e o deputado Eduardo Pazuello afirmaram não ter relação com a ISM.
"O ministro Camilo Santana não tem nenhuma proximidade pessoal ou profissional com referida empresa, muito menos manteve qualquer tratativa sobre qualquer tipo de negócio", afirmou a assessoria do Ministério da Educação.
A assessoria de Pazuello disse que ele nunca teve contato com representantes da ISM e que as licitações da Acolhida e dos hospitais federais não tiveram participação dele.
"A escolha foi conduzida pela 1ª Brigada de Infantaria de Selva, uma vez que a operação não tinha autonomia administrativa", afirmou a assessoria do deputado.