Proibido no Brasil, amianto ganha sobrevida com 'lei própria' em Goiás

O amianto é cancerígeno em todas as suas formas, segundo a OMS, e banido em ao menos 67 países, incluindo o Brasil. Mesmo assim, o país segue sendo o terceiro maior exportador de amianto do mundo, com a única mina em atividade das Américas em Minaçu, norte de Goiás. O local continua em atividade graças a uma batalha jurídica e política —e enquanto não há uma decisão final, os trabalhadores envolvidos na mineração, logística e transporte do material seguem expostos à fibra.
O que aconteceu
Em 2017, o STF proibiu a extração, industrialização, comercialização e distribuição do amianto, usado principalmente para produção de telhas e revestimentos. Na decisão, a Corte ressaltou que não há forma segura de utilização do material, que tem vários substitutos possíveis.
Mesmo assim, dois anos depois, o governador de Goiás, Ronaldo Caiado (União), sancionou uma lei estadual para permitir que o amianto fosse explorado para exportação no estado. À época, ele disse que o amianto goiano era "o único reconhecido mundialmente por não causar nenhuma consequência ou sequela à população".
Foi essa lei que permitiu a reabertura da mina Cana Brava, em Minaçu, município de 27 mil habitantes onde fica a maior jazida de amianto da América Latina. Só no segundo trimestre de 2024, a operação controlada pela Sama Minerações, subsidiária da multinacional belga Eternit, exportou R$152 milhões em fibras, segundo o informe mais recente divulgado pela ANM (Agência Nacional de Mineração).
A lei sancionada por Caiado foi contestada no STF em 2019. Na petição, a ANPT (Associação Nacional dos Procuradores e Procuradoras do Trabalho) argumenta que a lei goiana passa por cima da decisão da Corte, e recorda que o amianto é altamente nocivo à saúde de todos os envolvidos direta ou indiretamente com ele.
Entretanto, em cinco anos de processo, a única decisão do caso até o momento foi para autorizar que a mina continuasse funcionando até que haja um julgamento definitivo. Em 2023, o relator do caso, ministro Alexandre de Moraes, acatou um pedido do governo e da Assembleia Legislativa de Goiás, e estabeleceu que não poderia haver decisão de outras instâncias antes que o STF se pronuncie.
Em 14 de agosto deste ano, a ação entrou na ordem do dia da Corte, mas não foi apreciada. Membros da Abrea (Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto) chegaram a ir para Brasília para acompanhar o julgamento, que foi adiado sem previsão de nova data.
Sem definição, no dia seguinte, os deputados estaduais de Goiás aprovaram uma lei para prorrogar o funcionamento da mina de Minaçu por mais cinco anos, até 2029. A proposta de autoria do governo de Ronaldo Caiado foi apresentada, votada e sancionada no mesmo dia 15 de agosto.
A nova lei de Goiás

A lei aprovada em agosto de 2024 estabelece o prazo de cinco anos para o encerramento da extração de amianto no estado. Apesar de falar no fim das atividades, especialistas consideram que a lei é, na verdade, uma extensão para a Sama. Fernanda Giannasi, auditora fiscal do trabalho aposentada e uma das fundadoras da Abrea, explica que, se a decisão do STF fosse cumprida, a exploração já deveria ter sido finalizada em 2017.
Essa nova lei é, na verdade, uma prorrogação de doze anos para a indústria do amianto. Mas o que podemos esperar, se nem o Supremo está cumprindo a própria decisão?
Fernanda Giannasi, fundadora da Abrea (Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto)
A ação que contesta a lei goiana de 2019 ainda não foi julgada, mas quatro dos 11 ministros já se posicionaram. Até o momento, todos concordam que a lei é inconstitucional, mas divergem em um prazo para o cumprimento da decisão. O relator da matéria, Alexandre de Moraes, sugeriu um ano. A ministra aposentada Rosa Weber opinou que o encerramento deveria ser imediato, e foi acompanhada por Edson Fachin. Já Gilmar Mendes disse que a indústria do amianto deveria ter mais cinco anos para acatar a lei.
"O que foi aprovado em Goiás, na verdade, sacramenta o entendimento mais permissivo apresentado pelo STF", falou Giannasi, que destacou a relação do ministro com o governo goiano. Na semana da aprovação da lei, Gilmar Mendes recebeu de Caiado a maior honraria de Goiás, a medalha de ordem do mérito Anhanguera. Segundo nota do governo, a homenagem foi pela atuação do ministro na construção de um acordo entre o estado e a União para cumprimento do regime de recuperação fiscal. Não há menção ao amianto.
Dois meses depois, em outubro, a história ganhou outro capítulo: a ação no STF foi a plenário virtual - modalidade em que os ministros podem depositar seus votos em um sistema eletrônico ao longo de uma semana. Logo depois, o relator da matéria, ministro Alexandre de Moraes, suspendeu o julgamento ao pedir que a ação seja analisada em plenário. Para que isso aconteça, ela precisa ser pautada pela presidência da Corte. Ainda não há previsão que isso aconteça.
No mesmo dia em que pediu a suspensão, Moraes se encontrou com Caiado. O governador goiano falou abertamente que foi a Brasília se encontrar com o ministro, e que os dois falaram sobre o tema da ação. "Dia 25 [de outubro] seria a data final [do julgamento] para o fechamento da mina de Minaçu, que causaria enormes sequelas para a população daquela cidade", disse Caiado em vídeo publicado nas redes sociais. O UOL questionou o STF se uma reunião com um dos envolvidos na ação, enquanto ela é julgada, não prejudicaria a imparcialidade do ministro. Caso haja resposta, o texto será atualizado.
Caiado é notório defensor da exploração do amianto no estado. Em 2019, liderou uma comitiva de senadores a Minaçu para advogar pela manutenção da mina. Segundo ele, a Sama "gera riqueza, paga imposto e gera emprego". "O que o povo brasileiro quer é emprego, é ter oportunidade", disse ele à época.
A Sama tem controle ambiental completo, o percentual de fibras de amianto é menor do que no ar que nós respiramos aqui.
Ronaldo Caiado, em evento em Goiânia em 2023
Campanhas de Caiado já receberam ao menos R$ 400 mil da Sama. Em 2002, a mineradora de amianto foi a maior doadora da campanha do goiano à Câmara dos Deputados, com dois cheques totalizando R$ 100 mil. Em 2014, a empresa doou outros R$ 300 mil para a campanha de Caiado, desta vez ao Senado.
Em nota, o governo de Goiás disse que Caiado sempre tratou o tema de forma transparente e publicizou todas as doações. "Em relação a doações recebidas em campanhas eleitorais passadas, seja da Sama Mineração ou de outras empresas e pessoas, o governador Ronaldo Caiado sempre tratou o tema de forma transparente e adequada à legislação vigente à época. Todos os valores foram declarados e as contas, aprovadas pela Justiça Eleitoral."
Já a Sama disse que a atividade de mineração está de acordo com as leis do estado de Goiás e que "segue rigorosamente todas as medidas de segurança". "A empresa acrescenta que casos pontuais de doenças relacionadas à substância pertencem a uma época em que as indústrias e a própria ciência não tinham conhecimento das melhores práticas no manuseio e trabalho com o insumo. Desde que a NR 15 passou a estabelecer os critérios adequados referentes à utilização da substância, a companhia seguiu à risca todos os procedimentos e que não registra casos de doenças relacionadas há pelo menos duas décadas", disse a empresa em nota.
Afetada por amianto, moradora de Minaçu não tem mais esperança
B. chegou a Minaçu ainda criança, acompanhando o pai, que veio de outro estado para trabalhar na mina. Ela conta que, à época, nos anos 1980, "nevava" na cidade, tamanha a quantidade de fibras do amianto pairando no ar.
"Até hoje, a gente vê rejeito de amianto na cidade, nas portas de hotéis, do fórum. Mas ninguém fala sobre isso, ninguém comenta sobre essa nova lei", disse ela, que preferiu não se identificar porque teme pela sua segurança e já recebeu ameaças por relatar a história da família.
"Quem é funcionário chama a Sama de mãe. Quem é da cidade, diz que é por causa da empresa que a cidade tem renda, por causa dos impostos", explica. "Quando a mina fechou por alguns meses, em 2019, todo mundo ficou nervoso."
O pai de B. se aposentou nos anos 2000, e anualmente fazia tomografias custeadas pela mineradora, que sempre apontaram que estava tudo em ordem. Ele já não trabalhava na mina havia dez anos quando se sentiu mal e procurou um médico conhecido da família. Foi aí que descobriu um câncer no pulmão, que já tinha se espalhado pela cavidade do tórax. "O médico que atendeu meu pai falou assim: 'o senhor sabe que tem uns cinco anos que o senhor está doente, né? Se o senhor soubesse antes, podia ter tido uma sobrevida maior'", contou B. "Os exames da Sama não diziam nada".
A empresa bancou o transporte e a cirurgia do pai de B. em um hospital em São Paulo, e pediu uma análise do tecido pulmonar dele. "O laudo apontou que era um câncer normal, que não tinha nada a ver com amianto. Aí eles abandonaram completamente o tratamento do meu pai", falou.
Desconfiada, a família buscou as amostras do tecido no hospital e levou para um médico do Hospital das Clínicas, que refez os testes em uma clínica no exterior. O laudo concluiu que era contaminação por amianto. "Nós fomos atrás da Sama, mas eles não pagaram nada. No final, cada bala [cilindro] de oxigênio que ele precisou, saiu do bolso dele".
O homem morreu dois anos após descobrir o câncer, aos 64 anos. "Entramos na Justiça para pedir a indenização, mas isso não vai trazer de volta a vida do meu pai", conta B. "Graças a Deus, ele pôde pagar pelo tratamento depois que a Sama largou, mas e os outros funcionários que não podem?".
A Sama disse que a acusação de que os exames fornecidos pela empresa não são confiáveis é "improcedente". A empresa afirmou que mantém todos os laudos arquivados para atender a requisitos técnicos, e que eles estão disponíveis aos interessados. "Todos os laudos são emitidos por médicos altamente capacitados e com embasamento científico", declarou.
Quem aspira o amianto pode ter problemas de saúde só décadas depois. Um dos mais comuns é a asbestose, chamada de "doença do pulmão de pedra". A fibra se aloja nos pulmões, e o organismo tenta cicatrizar os tecidos afetados, diminuindo a elasticidade do órgão até o paciente perder a capacidade respiratória.

Um estudo da Fiocruz mostrou que 1/3 de um grupo de ex-trabalhadores de indústrias do setor sofrem de asbestose. O mecânico aposentado Doracy Maggion, 87, trabalhou na fábrica da Eternit em Osasco (SP) por quase vinte anos e contraiu a doença. "Rezo para morrer com um raio na minha cabeça, e não por falta de ar. Vi tantos amigos morrerem por causa do amianto, por causa de falta de ar, e é a pior coisa que pode acontecer", conta.
B. disse que não tem mais força para lutar contra a Sama, e nem esperança que a mina de Minaçu pare de funcionar. "Não vale a pena mexer [com isso]. Porque não tem lei, não tem justiça. Porque no caso do meu pai, que a gente conseguiu tirar um pedaço do pulmão com ele vivo ainda e provar que tinha amianto, não foi feita a justiça", declarou. "Eu não tenho esperança mais da mina fechar. Se eles fizeram essa lei agora, o que garante que, em cinco anos, eles não vão fazer outra?"
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