Itamaraty descumpre lei na Europa e é condenado a pagar R$ 2,5 mi em 3 anos

O descumprimento de leis trabalhistas na França, Holanda e Irlanda fez com que o MRE (Ministério das Relações Exteriores) fosse condenado a pagar cerca de R$ 2,5 milhões em indenizações desde 2022. Os casos envolvem contratados locais —grupo que recebe salários menores e tem menos benefícios que diplomatas.
O que aconteceu
Na França, assistente administrativo ganhou direito a indenização de mais de R$ 2 milhões. Tiago Fazito, 47, trabalhou no Consulado-Geral do Brasil em Paris entre 2012 e 2017, quando foi demitido por justa causa após entrar com processo contra o Itamaraty para receber 500 euros a mais, como seus colegas de função.
Na demissão, o Itamaraty alegou que Fazito não poderia ter informado a diferença salarial à Justiça francesa. "Eu não tornei públicos esses documentos", afirma ele. Após a dispensa, Fazito abriu novo processo, encerrado em 8 de setembro de 2024, para anular a demissão e reaver os salários.
Fazito ganhou a causa, mas o Itamaraty não pagou o valor devido até agora. Ele então decidiu acionar o governo da França para receber, em processo ainda sem decisão. Em nota, o MRE informou que não pagou a indenização "em respeito à soberania" do Brasil.
O Estado brasileiro não invoca imunidade de jurisdição em ações trabalhistas e determina o pagamento de decisões desfavoráveis sempre que esgotados os recursos a serem interpostos no Judiciário local. Entretanto, não pode acatar decisões judiciais que atentem contra as inviolabilidades de seus postos no exterior, sobre as quais não há hipótese de relativização. A inviolabilidade de um consulado ou embaixada estrangeira, dos arquivos e das comunicações, tal como prevista nas Convenções de Viena, não pode jamais ser afastada em respeito à soberania do país que envia seus representantes.
Ministério das Relações Exteriores, em nota enviada ao UOL
Para Fazito, argumento do Itamaraty "não faz o menor sentido". Ele lembra que o MRE assinou um contrato de trabalho submetido à lei francesa, que prevê a reintegração em caso de demissão considerada injusta. Além disso, afirma que, em vários momentos do processo, informou que buscava apenas a indenização e não a reintegração à equipe do consulado.
Esse procedimento não é digno de um país que aspira a ser um ator importante no seio da comunidade internacional, nem de um Estado que respeita a primazia do direito.
Tiago Fazito, ex-funcionário do Itamaraty na França
Na Irlanda, uma auxiliar administrativa foi impedida de tirar 14 dias de licença remunerada previamente combinada. Nicole Montano acionou a Justiça, que decidiu em seu favor e condenou o Itamaraty a pagar indenização de aproximadamente R$ 85 mil em setembro de 2023. O Itamaraty informou ter pagado a indenização em outubro de 2023.
No processo, Nicole também disse que se sentia "discriminada por ser mulher". Na documentação do caso, à qual o UOL teve acesso, ela se refere ao Consulado do Brasil em Dublin —onde trabalhava desde 1997— como um "ambiente sexista".
Na Holanda, motorista ganhou direito a indenização de R$ 390 mil em 2022. Guilherme Lima, 32, acionou a Justiça ao ser demitido da embaixada de Haia em 2021, quando estava doente, o que é proibido pela legislação local. Para o tribunal, a postura do Itamaraty foi contrária "aos padrões elementares do bom empregador".
Apesar da decisão, Lima não recebeu do MRE o valor total da indenização. Em nota, o Itamaraty informou que, baseado na questão da soberania, não pagou salários e férias relativos ao período de tramitação do processo, como determinado. Esse montante representava 90% do que o funcionário tinha a receber. O motorista recebeu, de fato, cerca de R$ 20 mil.
"A embaixada do Brasil quase me matou", diz Lima. Empregado no local desde 2016, ele relata que chegou a acumular 200 horas extras devido à sobrecarga de trabalho a que era submetido. O MRE informou que "limita o número de horas extras que cada posto pode contratar", de acordo com as regras de cada país.
A questão das horas extras informada pelo ex-auxiliar não consta da decisão judicial proferida pela corte da Haia.
Ministério das Relações Exteriores, em nota enviada ao UOL
Itamaraty quis alegar imunidade diplomática
Os contratos dos funcionários locais estão sujeitos às leis trabalhistas dos países onde eles estão. Não estão sujeitos à lei brasileira.
Itamaraty diz que cumpre decisões e paga indenizações, com exceção dos casos que envolvem a readmissão de contratados locais demitidos. Nesses casos, o MRE invoca a imunidade diplomática, dizendo que "o Estado brasileiro resguarda sua soberania para decidir livremente quem ingressa nos postos do Brasil no exterior". O argumento também é usado para negar pagamentos referentes a períodos em que os trabalhadores alegam que estavam injustamente demitidos.
O Brasil invocará imunidade de execução sempre que decisão judicial determinar a reincorporação de auxiliar local demitido, bem como qualquer indenização que seja decorrente dessa decisão.
Ministério das Relações Exteriores, em nota enviada ao UOL
A imunidade diplomática impede que diplomatas respondam a qualquer tipo de processo durante o cumprimento de missões. O dispositivo foi estabelecido pelas Convenções de Viena de 1961 e 1963, das quais o Brasil é signatário. Especialistas afirmam que ele não se aplica nos casos em questão porque os processos não eram contra diplomatas, mas contra o governo brasileiro (enquanto contratante) pelo descumprimento de regras trabalhistas.
Isso é uma prática internacional consolidada: nenhum país aceita que o Judiciário local determine quem frequenta suas embaixadas e consulados e tem acesso a seus arquivos e comunicações, pois seria um atentado à sua soberania. O mesmo ocorre, inclusive, com embaixadas estrangeiras no Brasil.
Ministério das Relações Exteriores, em nota enviada ao UOL
O argumento foi usado pelo Itamaraty na França e na Holanda. No primeiro, a Justiça entendeu que a imunidade diplomática não se aplica "a uma operação econômica, comercial ou civil". Já na Holanda, o entendimento foi de que o dispositivo não se aplicava ao caso por se tratar de "uma relação trabalhista".
Contratados locais têm regime diferente dos diplomatas. Eles não precisam ter nascido no Brasil e não são contratados aqui. Via de regra, são pessoas que já moravam no exterior. Já os funcionários de carreira do MRE são brasileiros natos admitidos por concurso —servidores públicos— e passam até cinco anos em cada posto diplomático fora do país.
Disparidade salarial chama atenção. Em carta ao Itamaraty em junho de 2024, contratados locais dizem receber salários que variam entre R$ 12,4 mil e R$ 18 mil para trabalhar em locais como Barcelona, Londres e Paris —enquanto o MRE paga a diplomatas recém-formados mais de R$ 20 mil por mês, fora os benefícios.
Contratados locais prestam serviço como atendimento e transporte de embaixadores. "Somos a memória histórica dos postos. Sem a gente, eles não existem", diz uma funcionária que preferiu não se identificar. Em 2022, o Itamaraty tinha 3.313 contratados locais distribuídos por 218 consulados e embaixadas.
O que dizem os envolvidos
Itamaraty tem pensamento colonial de que diplomatas são casa grande e contratados locais, senzala.
Contratado local que trabalha na Europa e preferiu não se identificar
As atribuições para as quais os auxiliares locais são tipicamente admitidos, assim como as responsabilidades que assumem, têm natureza absolutamente distinta daquela que caracteriza as carreiras do Serviço Exterior Brasileiro: diplomatas, oficiais e assistentes de chancelaria. Por essa razão, por exemplo, o preenchimento do cargo de diplomata dá-se por meio da realização do concurso público específico denominado Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata.
Ministério das Relações Exteriores, em nota enviada ao UOL
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