Por que o julgamento de Bolsonaro e militares é inédito na história do país

A decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) de aceitar a denúncia contra Jair Bolsonaro (PL) e outras sete pessoas nesta semana é inédita na história da República: é a primeira vez desde 1889 que um ex-presidente e militares, entre eles cinco de alta patente, se tornam réus por tentativa de golpe de Estado.

O que aconteceu

Aceita a denúncia, eles se tornam réus e passam a responder a uma ação penal. Todos são considerados inocentes e respondem em liberdade, a menos que tenham sido presos por outro motivo. Só ao fim desse processo o STF decide se vão ou não ser presos.

Bolsonaro negou ter pressionado militares, mas admitiu ter discutido "hipóteses de dispositivos constitucionais". As defesas dele e de seus aliados afirmam que a PGR (Procuradoria-Geral da República) não trazia os elementos mínimos para que eles fossem enquadrados nos crimes mencionados e pediram que a denúncia fosse arquivada.

Até hoje, nenhuma tentativa de ruptura institucional resultou em responsabilização criminal —nem mesmo após ditaduras, intervenções e fechamento de instituições democráticas. "Nunca houve responsabilização criminal de um ex-chefe de Estado por tentativa de ruptura democrática", afirma o advogado Ilmar Muniz, especializado em direito constitucional e penal.

A historiadora Martina Spohr, da Escola de Ciências Sociais da FGV (Fundação Getulio Vargas), afirma que a República nasceu de um golpe. "O próprio surgimento da República em 1889 foi um golpe perpetrado por um militar, Deodoro da Fonseca. Isso inaugura um modus operandi de dominação, com as Forças Armadas como protagonistas das crises políticas".

Desde então, sucessivos momentos de ruptura reforçaram o protagonismo militar sem punição. Spohr relembra episódios como a Revolução de 1930, o Estado Novo (1937), a deposição de Vargas (1945), a tentativa de golpe de 1955, o golpe militar de 1964 e o AI-5 (1968), todos sem responsabilização criminal dos envolvidos. Para a professora, o recebimento da denúncia representa uma mudança na forma como o país lida com sua história política e institucional.

A historiadora relembra que no regime militar (1964-1985) não houve condenação de agentes do Estado por causa da Lei da Anistia, de 1979. "Foi uma transição controlada por cima. Os próprios militares pensaram como sair do poder sem sofrer consequências", afirma ela.

Lei aprovada por Bolsonaro

A denúncia aceita pelo STF se apoia em uma lei que o próprio Bolsonaro sancionou em 2021. Trata-se da Lei 14.197, que revogou a Lei de Segurança Nacional, herdada do regime militar. A nova norma define com precisão os crimes contra a democracia, como tentativa de golpe e abolição violenta do Estado Democrático de Direito. "A nova legislação tipifica com clareza essas condutas e marca um avanço na proteção das instituições", explica Muniz.

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O caso levanta discussões jurídicas sobre como a nova legislação enquadra a tentativa de golpe, mesmo sem sua concretização. Segundo o advogado, o ordenamento jurídico brasileiro adota a teoria objetiva da tentativa. Ou seja, basta a prática de atos concretos com intenção de consumar o crime —como articulações, produção de documentos golpistas e tentativa de cooptação de autoridades. "A simples tentativa já configura crime, mesmo que o golpe não tenha se concretizado", afirma Muniz. No caso de Bolsonaro, os atos atribuídos a ele ocorreram após a entrada em vigor da nova lei —por isso, sua aplicação é juridicamente válida.

Foro civil

Outro aspecto inédito apontado pelos especialistas é que os militares estão sendo julgados no STF, e não pela Justiça Militar. "Essa é uma diferença histórica", afirma Spohr. "É a primeira vez que militares de alta patente enfrentam julgamento criminal no foro civil por um crime contra a democracia".

Quem o Supremo decidiu tornar réus:

  • Jair Bolsonaro (PL), ex-presidente;
  • Alexandre Ramagem (PL-RJ), deputado federal ex-diretor da Abin;
  • Almir Garnier, ex-comandante da Marinha;
  • Anderson Torres, ex-ministro da Justiça;
  • Augusto Heleno, general da reserva e ex-ministro do GSI (Gabinete de Segurança Institucional);
  • Paulo Sérgio Nogueira, ex-ministro da Defesa.

A professora lembra que Bolsonaro foi julgado pela Justiça Militar e absolvido na década de 1980. Na época, ainda como capitão do Exército, ele foi acusado de planejar um atentado a bomba em unidades militares para pressionar por aumento salarial. Ele chegou a ser preso administrativamente, mas negou autoria do plano e acabou absolvido pelo Superior Tribunal Militar. "Desta vez, ele e seus aliados são processados fora da caserna, por um tribunal civil, como qualquer cidadão", destaca Spohr.

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