Um eterno recomeço

4 em cada 10 professores nas redes estaduais têm contratos temporários, o que enfraquece vínculo com alunos

Cristiane Capuchinho Colaboração para o UOL Estevan Silveira

É outubro e, além de pensar nas provas e no final do semestre de suas nove turmas, Marisa*, 29, prepara-se para as provas de dois concursos públicos municipais. Professora temporária de língua portuguesa em duas escolas da rede estadual de Santa Catarina, seu contrato termina em dezembro. Depois disso, seguem-se meses de incerteza e sem salário.

Luísa*, 35, designada em uma escola de ensino médio de Minas Gerais ainda busca nos editais do estado mais alguma vaga para preencher seus horários antes do final do ano. Ela dá aulas para cinco turmas em uma escola, são sete horas-aula semanais que não lhe garantem um salário mínimo completo por mês.

Temporário, designado, contratado. O nome muda e os termos do contrato também, mas o cenário é bastante parecido para os mais de 560 mil professores da rede pública em todo o país que vivem com contratos temporários de trabalho. Só nas escolas estaduais, são 276 mil ou 40% dos professores dessas redes, de acordo com o Censo Escolar 2018.

A média de temporários nos Estados, responsáveis pela oferta de matrículas do sexto ano do ensino fundamental ao final do ensino médio, é maior que entre as redes municipais, que tinham 25,5% de seus professores nesse tipo de contrato no ano passado.

Os dados publicados este ano pelo MEC (Ministério da Educação) mostram que 11 Estados têm mais da metade de seus docentes em contrato temporário.

São profissionais que passam por uma seleção da rede estadual para terem o direito de serem chamados para assumir salas de aula ao longo do ano letivo ?seja para cobrir o tempo de uma licença médica, seja para ficar no lugar de um colega que se aposentou.

O tempo de trabalho em cada contrato pode variar de poucas semanas ao ano letivo completo, e eles só recebem enquanto estão na sala de aula. A única certeza é que entre o final de dezembro e o início do próximo ano escolar não terão ocupação e, portanto, rendimentos.

As redes estaduais consideram o contrato temporário indispensável ao bom funcionamento do sistema de ensino. "O número de alunos matriculados nas redes está sofrendo uma redução progressiva na média de 2% ao ano. Dessa forma, os sistemas públicos não têm como compor um quadro só de professores efetivos", argumenta o Consed (Conselho Nacional de Secretários de Educação).

"A situação fragmenta o projeto político-pedagógico e, de certa forma, compromete a qualidade de ensino, tendo em vista a rotatividade dos docentes entre as diversas unidades escolares", avalia um parecer do Conselho Nacional de Educação de 2009.

Já especialistas em educação criticam o uso excessivo do regime temporário que fragiliza a condição do professor, que remuneração instável, e aumenta a rotatividade de profissionais na escola, reduzindo a criação de vínculo com alunos e comunidade.

O Plano Nacional de Educação, aprovado em 2014, tinha como meta que as redes tivessem até 2017 apenas 10% de seu corpo docente como temporário. Mas, em 2018, apenas quatro redes estaduais atendiam esse objetivo: Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Sergipe e Rondônia.

Estevan Silveira

Este foi o primeiro ano de Isabel* em escolas estaduais. Ela dá aulas para nove turmas do ensino fundamental de Santa Catarina.

O ano letivo na rede começou em fevereiro, mas Marisa entrou em sala de aula apenas em abril. "Já estava desesperada, não tinha dinheiro para nada", lembra.

Dois meses após o início das aulas, ela assumiu turmas de uma professora que se aposentou. No final do mês, conseguiu mais algumas classes de um concursado deslocado para um cargo de direção. "Essas salas já tinham tido dois professores antes de mim."

A alta rotatividade dos professores é um complicador para a qualidade de educação ofertada na unidade, afirmam especialistas. Um professor que fica pouco tempo na escola tem menos condições de conhecer seus alunos e a comunidade e assim planejar atividades mais específicas para aquele grupo e fazer planos que possam ter continuidade ao longo da formação dos alunos.

"As pesquisas internacionais apontam que a permanência do professor no local de trabalho é fundamental para a qualidade de ensino. Uma escola que mantém um corpo docente mais estável tem um coletivo mais integrado para planejar, para trocar informações sobre os alunos", diz Dalila Andrade Oliveira, pesquisadora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

A Secretaria de Educação de Santa Catarina diz ter ciência dos prejuízos que a alta rotatividade pode causar "ao processo de ensino-aprendizagem e à comunidade escolar" e fazer um esforço significativo para que o professor efetivo permaneça na mesma unidade.

A rede, no entanto, é a que tem maior percentual de escolas com baixa regularidade do corpo docente, entre efetivos e temporários, nos últimos cinco anos: 26% de suas unidades trocam muito de professor, segundo indicador do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais).

A rede estadual de Santa Catarina tem 64,9% de seus professores temporários em 2018. Eram 17 mil temporários e 9.200 concursados. A secretaria estadual afirma ter convocado mil professores efetivos em 2019 e anuncia a contratação de outros 2.000 para 2020 como forma de reduzir o uso de contratos temporários.

A questão é ainda mais preocupante quando se concentra em escolas mais pobres e em regiões vulneráveis, sublinha Camila de Moraes, analista de educação da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) "São unidades que precisam de mais recursos e de professores com mais experiência e que trabalhem em conjunto para melhorar as condições de aprendizagem."

E este costuma ser o caso. Um estudo feito pela Fundação Lemann em 2017 apontou que entre as escolas de nível socioeconômico muito baixo (NSE), 30% tinham ao menos três quartos (75%) do quadro de docente composto por temporários.

Ana Maria Saraiva, professora da UEMG (Universidade do Estado de Minas Gerais), se deparou com o problema quando pesquisava escolas em território de vulnerabilidade no doutorado. Uma das duas escolas escolhidas para a pesquisa chegou a ter todo o seu quadro de professores composto por designados. "Os únicos efetivos estavam em cargo de direção", diz.

Como você faz para melhorar o planejamento de uma escola que muda 70%, 80% de seus professores a cada ano? O que acontece é que nessas escolas a relação do professor com o desempenho dos alunos é quase inexistente. É um projeto que recomeça todo ano

Ana Maria Saraiva, professora da UEMG

Carolina*, 26, tem essa sensação de descontinuidade em sua experiência como professora de filosofia na rede estadual de Mato Grosso. Ela conta que, em cinco anos trabalhando em escolas públicas como professora temporária, já passou por 11 escolas. Perguntada se trabalhou mais de um ano na mesma instituição, Carolina ri e brinca: "É o sonho do temporário ver os alunos de novo no outro ano".

"Quando você entra em um lugar novo, você tem que entender como a gestão funciona, como os professores funcionam, os alunos. A impressão que eu tenho é que a gente começa a entender a escola quando está terminando o ano, e isso é muito desgastante", conta a docente.

O sentimento de impotência é relatado também pela professora de geografia, Andrea*, 43, que dá aulas como temporária na rede estadual de Mato Grosso desde 2003. "Um professor que pega um aluno no primeiro bimestre e acompanha até o quarto bimestre consegue ver o rendimento, ajudar a progredir. Para um aluno que tem dificuldade na sua disciplina, sanar os problemas em três meses é impossível", comenta.

Em Mato Grosso, havia 13,6 mil professores temporários na rede estadual em 2018, o equivalente a 65,7% de todos os docentes da rede.

A secretaria estadual diz que reduziu neste ano o percentual com a contratação de cerca de 2.000 professores, mas segue com a maioria de seus docentes com vínculo temporário: 54,68%. A pasta justifica o uso do vínculo por tempo determinado em escolas rurais e indígenas, que formam 37,5% da rede.

Redução de matrículas e de professores

Dois movimentos demográficos podem ser percebidos no Censo Escolar nos últimos anos: a redução no número de matrículas das redes estaduais e no número de professores, e o aumento no percentual de professores temporários.

De 2014 a 2018, as redes estaduais tiveram uma redução de 1,3 milhão de matrículas na em todos os níveis da educação básica, o equivalente a 7,8% de seus alunos. No mesmo período, o número de professores concursados caiu 19% (95,4 mil vagas a menos) e o de docentes em contrato de tempo determinado aumentou 14,3% (34,6 mil contratos a mais).

Para o Consed, a mudança demográfica é chave para entender o aumento de professores temporários. "O professor temporário é indispensável, especialmente neste período de transição demográfica que o país atravessa. Enquanto em 1960, cada mulher brasileira tinha em média 6,3 filhos, a previsão do IBGE é que o número se estabilize em 1,5 nos próximos anos. Com isso, a matrícula vem caindo", afirma o conselho em nota enviada ao UOL.

A secretaria de Educação de Santa Catarina diz que o aumento das aposentadorias, desde o início dos debates de reforma da Previdência, acelerou a necessidade de uso de temporários.

A Secretaria de Educação do Acre, que tinha 81% de seus professores temporários, atribui o cenário não apenas às aposentadorias, mas também ao número de professores com licença médica para ficar definitivamente fora de sala de aula. O quadro, segundo a pasta, exigirá novos concursos públicos nos próximos anos.

Outra questão que entra na equação, segundo as secretarias de estado, são as mudanças recentes e constantes de projetos do MEC. O ensino médio integral, por exemplo, não tinha recebido repasses do governo federal até agosto.

As secretarias afirmam não poder abrir concurso para programas que podem não "vingar".

"É preciso considerar ainda as transições da escola de tempo parcial para escola de tempo integral e a transição da formação, já que a Base Nacional Comum exige um novo perfil de professor. Futuramente, uma vez estabilizada a matrícula, as redes poderão compor um quadro maior de efetivos", argumenta o conselho de secretários de educação.

O MEC, por meio de sua assessoria, diz apoiar a implementação dos projetos, mas que a contratação de professores é de responsabilidades das redes estaduais, que têm autonomia. A pasta não quis comentar o aumento no número dos contratos com tempo determinado.

A crise fiscal enfrentada por diferentes estados têm sido argumento para que concursos sejam abertos em menor número ou salários de temporários e concursados não sigam a mesma base, acusa Heleno Araújo, presidente da CNTE (Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação).

O governo de Mato Grosso do Sul, que tem 69% de seus professores em cargo temporário, editou neste ano uma lei que diferencia o salário do professor contratado da remuneração do professor em início de carreira concursado, quase um terço menor para o profissional que trabalha por tempo determinado.

O CNTE questiona o pagamento diferenciado para a mesma prestação de serviço no STF (Supremo Tribunal Federal).

O governo afirma usar os temporários apenas para vagas de carga reduzida ou substituição pontual, e buscar aumentar a contratação de efetivos. O último concurso da rede foi em 2018, com mil vagas ?o estado ainda tem 10 mil temporários em 2019.

Minas Gerais, que tinha no ano passado 68% de docentes temporários, diz que tem buscado formas para melhorar a gestão e ampliar a contratação mesmo diante "da grave crise financeira" e anuncia que fará a nomeação de 7.000 docentes até o primeiro semestre de 2020 ?atualmente são 81 mil temporários na rede.

Estevan Silveira

Quem é o temporário

Analista da OCDE, Camila de Moraes considera ser importante avaliar quem são esses professores temporários para evitar um impacto negativo na qualidade da educação. "Professores temporários têm menos direitos e acessos a treinamento, muitas vezes são profissionais com menor formação, menos experiência."

Nas redes estaduais, o professor temporário é, em média, mais novo que o efetivo da carreira, mas são apenas seis anos que afastam um do outro. A idade média do professor concursado nas redes estaduais é de 44 anos, entre os contratados, a média é de 38 anos, segundo análise dos dados do Censo feita por Edmilson Pereira Jr, estatístico e pós-doutorando da UFMG.

Enquanto a maior parte dos professores concursados estão na faixa entre 40 e 49 anos (37,6%), a maior parte dos docentes contratados têm entre 30 e 39 anos.

Álvaro Hypolito, pesquisador da UFPel (Universidade Federal de Pelotas), destaca que o aumento da contratação de temporários aconteceu em um período de forte discurso de cobrança sobre o professor por resultados escolares dos alunos sem resultados.

"Observamos um aumento muito forte no discurso sobre o Ideb, sobre provas, mas sem previsibilidade para a escola [se organizar], com uma carreira menos atraente, e isso em nada tem melhorado a qualidade de educação", diz.

Em 2017, nenhum estado atingiu a meta estipulada pelo MEC para o desempenho dos alunos do ensino médio e apenas sete estados atingiram a média esperada de desempenho nos anos finais do ensino fundamental. O Brasil alcançou a meta apenas para os anos iniciais do ensino fundamental, nível de ensino de responsabilidade das redes municipais.

A eterna busca por emprego

A professora de inglês Mariele*, 29, dá aulas em duas escolas estaduais de Minas Gerais. "Consegui só em agosto, mas tive muita sorte nesta escola", conta. Entrou para ficar por três semanas, cobrindo a licença de um professor. "Mas chegando lá já havia um boato de que ele pediria exoneração, foi minha sorte."

O professor, conta ela, abandonou o cargo do estado para ir para uma vaga na rede municipal de Belo Horizonte.

Ela ganhou estabilidade até dezembro, com 16 horas-aulas semanais nas turmas da tarde. De manhã, está designada por um mês em outra escola de ensino fundamental. "Mas vai acabar esse contrato e eu estou louca atrás de outro."

Com o fim do segundo cargo, o salário vai cair de cerca de R$ 3.000 para R$ 1.800, o que será suficiente apenas para cobrir suas despesas e as dívidas que fez nos quatro meses em que não conseguiu nenhum trabalho na rede pública nem em cursos privados.

Andrea* passou pelo maior sufoco de sua carreira no ano passado, conta. Só conseguiu aulas na rede estadual de Mato Grosso até o mês de julho. "Depois disso fiquei sem nada, vivendo com a pensão do meu marido, a ajuda da família e uns bicos que consegui para cobrir aula em um curso preparatório para concurso de colégio."

Natália*, 44, professora temporária de português em Minas Gerais há 14 anos diz que, para complementar a renda, dá aulas particulares de espanhol e vende lingeries.

O temporário nunca deixa o salário de início de carreira e, dependendo da rede, títulos de mestrado ou doutorado não são razões para ampliar a remuneração do professor contratado.

Um levantamento da OCDE publicado em junho apontou que o salário do professor de fundamental e médio no Brasil é o pior, entre 40 países. A OCDE faz uma comparação em dólar que considera o poder de compra em cada país.

O professor brasileiro da rede pública em início de carreira ganha, em média, US$ 14 mil por ano. A média dos países da OCDE é de US$ 34,9 mil anuais, um valor 149% maior.

Quando são considerados também a remuneração de docentes concursados ao longo de toda a carreira, a média de remuneração do professor de ensino médio no Brasil é de US$ 23,9 mil, sendo que nos países da OCDE, a média é de US$ 46 mil ?diferença de 92%.

Primeira da família a chegar ao ensino superior e mestre em educação por uma universidade federal, Luísa* desabafa: "Achei que ia defender o mestrado e conseguir coisas melhores. Eu adoro ser professora, ter contato com os alunos, mas este ano eu pensei em desistir. É muita dedicação, e a gente se depara com o descaso, como se o ensino fosse banal".

* Os nomes dos professores foram alterados a pedido dos entrevistados.

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