O Brasil ultrapassou hoje a marca de 400 mil mortos por causa da covid-19. Um número que não traduz a perda de mães, pais, cônjuges, familiares e amigos. Sem velórios, abraços e rituais de despedida, o luto é abreviado.
O UOL ouviu memórias e homenagens a sete destas vítimas.
Maria Clara Oliveira Lisboa Goes, 21, perdeu o avô, Luiz Carlos, 71, para a covid-19 em junho de 2020, em Maceió (AL). Quase um ano depois, está grávida e vai homenageá-lo, dando seu nome ao filho.
Agora ligue o som, no canto superior direito.
"Vovô Luiz Carlos, a saudade do senhor é enorme, e agora mais ainda. Eu queria compartilhar essa fase da minha vida. Sinto que o senhor está sorrindo aí no céu.
Quando descobri que estava grávida, falei com meu noivo, Gunther Fireman, sobre meu desejo de homenagear o senhor, e ele logo apoiou a ideia. Senti uma mistura de sensações quando confirmamos que é um menino. Feliz e grata, mas, ao mesmo tempo, triste porque o senhor não está aqui fisicamente para conhecer seu primeiro bisneto.
Eu sinto muita falta do seu abraço, das risadas, das reuniões em família. Tive a honra de cuidar do senhor nos seus últimos dias aqui na terra.
O senhor foi um grande avô! Proteja nossa família e agora, principalmente, meu filho, com todo carinho que o senhor tem por nós."
Weder Campos, 21, perdeu o namorado, William Neder Cohene Júnior, 24, também em junho do ano passado. O jovem faleceu no apartamento que ambos dividiram, em Cuiabá (MT).
"William, desde que você faleceu, é muito difícil para mim. Só agora que estou fluindo, começando a deixar as coisas para trás. No começo, foi muito difícil.
Você sempre vai estar guardado no meu coração e nas minhas lembranças.
Morávamos juntos, mas eu não continuei no mesmo apartamento. Mudei. Mas algumas coisas me trazem lembranças. No começo, olhar para as suas coisas me trazia você na memória. Nisso, logo eu já caia em desespero. Hoje é um pouco mais tranquilo. A penteadeira que você mais amava era uma das coisas da casa que mais me lembrava você."
Mariana Romani, 40, perdeu companheiro, Daniel Hirata, 40, em Florianópolis (SC), no início deste mês.
"Me transformei muito nesse período, aprendi com ele a valorizar as coisas que realmente importam e que todo dia é um dia novo para fazer algo bom e ser uma pessoa melhor. E mantenho comigo todo esse amor multiplicado que ele sempre priorizou e do qual sempre tive a certeza de ser o que ele mais estimava na vida.
Agradeço todo apoio dos amigos e sinto muita felicidade por saber de tanta gente que o amava e queria seu bem. Dani, você continua presente pra mim e vai morar pra sempre no meu coração. Te amo sempre pra sempre." *
*depoimento reproduzido de rede
social com autorização da autora
Carlos Henrique Francisco, 33, perdeu o tio Jorge Lima, 51, uma semana após ser diagnosticado com a covid-19, no começo deste mês, em São Paulo (SP).
"Meu tio foi para o hospital numa segunda-feira e foi tudo muito rápido. Logo já mandaram mensagem no grupo da família pedindo oração. E consegui falar com ele duas vezes.
Eu não tinha passado ainda por essa experiência de, em uma única tacada, a pessoa estar ali, estar bem, e depois não estar mais.
A gente ficou nessa espera da volta [dele], mas infelizmente foi tudo muito rápido.
Meu tio foi uma referência muito grande para a nossa família. Ele sempre foi aquela pessoa com quem podíamos contar para o que desse e viesse.
Não sei se consigo dizer se é algo bom ou ruim, mas, como estou enfrentando um tratamento para depressão, estou mais estabilizado emocionalmente.
Mas hoje, o que eu sinto, infinitamente, é um vazio. É um vazio que vai se preenchendo quando vou lembrando das coisas que construímos juntos."
Vilson Jaguareté, 43, perdeu a avó Jandira Pereira Coutinho, 97, indígena da etnia tupiniquim, em Aracruz (ES), em janeiro. Ela foi uma das cinco índigenas de aldeias do estado que morreram por causa da covid-19.
"As principais lembranças de minha avó são de uma mulher indígena guerreira que sempre lutou pelo povo dela e nos ensinou a importância do nosso território. Ela foi expulsa de sua aldeia, mas nunca abandonou o território indígena, então nos ensinou muito bem a relação entre a comunidade e o território como uma coisa só.
Olhando para cada lugar da aldeia, principalmente na área central, ainda é possível sentir a presença dela. A parte aguerrida da nossa existência que ela tinha me contagiou e traz fortes recordações.
É muito triste a minha avó, com toda a história e representação que tinha na comunidade indígena, partir sem poder fazer o funeral que ela merecia e se despedir pela última vez. Por mais que a tenhamos protegido para evitar contato com outras pessoas, foi inevitável e muito triste. Não tenho dúvidas de que ela ainda teria longos anos de vida, estava muito lúcida."
Seeley Joseph, 23, perdeu o primo, André, 53, em dezembro, em Passo Fundo (RS).
"Meu primo André era um homem bom, a família era importantíssima pra ele. Ele tinha 53 anos, e era muito apegado com a minha mãe a quem não chamava de tia, apenas de 'mana'. Ele era um homem cisgênero gay, que passou os últimos anos de sua vida morando e cuidando de sua mãe, minha tia.
A covid veio e levou ele, foi algo tão rápido, tão doloroso, que sua morte chegou para nós como golpes de faca. Após as 15h, recebemos a notícia de que ele tinha partido e, às 19h, ele estava sendo enterrado. A gente não pôde se despedir, eu não pude me despedir.
A pandemia deixou todos nós LGBTs mais vulneráveis e sozinhos. Então, para mim, um homem trans, perder um ente querido para essa doença horrível já é indescritível. Mas quando essa pessoa entende quem você é porque também faz parte disso, é ainda mais doloroso."
Em apenas 14 dias, no mês passado, Tonny Pereira da Mota, 44, perdeu a mãe Marilda Pereira da Mota, 69, a avó Iraci Pereira Mota, 91 (foto), o tio Pedro Piu Pereira da Mota, 63, e a tia Maria Aparecida Mota do Livramento, 63. A família é de Pinheiros (ES).
Nas fotos, a mãe Marilda e a tia Maria Aparecida.
"Minha avó foi uma das primeiras professoras de Pinheiros, ela alfabetizou muitas pessoas na cidade. Minha mãe e minha tia também eram professoras --e minha mãe até ensinou minha mulher a ler. Eram todas muito católicas e apaixonadas por comer bacalhau. Há mais de 40 anos, minha avó fazia um presépio na casa dela que era histórico. Muitas pessoas, religiosas ou não, iam visitar.
Agora é muito difícil, até para entender esse momento, porque foram muitas mortes e não deu tempo nem de fazer luto. Os últimos contatos foram em vida porque, na morte por covid-19, não tem despedida. É direto para o cemitério e sem contato. Fica um sentimento de dor, vai entendendo mas sem entender, compreendendo mas sem compreender, buscando uma resposta que não tem.
A cada manhã, a gente pensa, vai dormir e também pensa. Vamos conversando com os familiares que restaram e tentamos nos animar porque nos lembramos da presença deles. Hoje fizemos uma receita da minha avó, que era um doce de maracujá, e no dia que ela morreu eu também fiz um macarrão que ela fazia na panela de pressão."
Na foto, o tio Pedro.
Publicado em 29 de abril de 2021
Reportagem: Aliny Gama, Ana Caratchuk, Bruna Barbosa Pereira, Gabryella Garcia e Julia Viviane Kurtz
Edição: Clarice Cardoso e Luciane Scarazzati
Fotos: Acervo pessoal
Redes Sociais: Laís Montagnana e Marianna Rosalles
Edição de vídeo/áudio: Leonardo Rodrigues
Artes: René Cardillo