A cidade que domou a covid

Sem óbitos, Trajano de Moraes (RJ) distribuiu máscaras, fez barreiras sanitárias e rastreia o vírus com testes

Herculano Barreto Filho Do UOL, no Rio Herculano Barreto Filho/UOL

Trajano de Moraes, município da região serrana do Rio a 250 km da capital, não registrou mortes por covid-19, teve apenas dois pacientes hospitalizados e levou mais de dois meses para confirmar um caso da doença.

O primeiro morador com o vírus teve o diagnóstico confirmado em 29 de maio —quase três meses após a chegada da doença no país— e virou notícia porque até então Trajano era a única cidade de todo o estado livre da covid.

O UOL foi até lá para entender como o município conseguiu domar o avanço da pandemia, que já matou mais de 14 mil pessoas só no RJ (2º estado com mais mortes) e mais de 100 mil pessoas no Brasil.

Até quinta-feira (6), a cidade havia registrado 69 infectados. Apenas 11 pessoas ainda estão com a doença e são monitoradas de perto por agentes de saúde, que rastrearam os grupos de convivência para que sejam adotadas medidas de isolamento social. E, assim, travar a propagação do vírus.

Para impedir o avanço da doença, a cidade de pouco mais de 10 mil habitantes agiu rápido.

Em 16 de março, começo da pandemia, Trajano adotou por mais de quatro meses barreiras sanitárias permanentes nas quatro principais vias de acesso —à época, o presidente Jair Bolsonaro ainda dizia que poderia estar havendo um "superdimensionamento" do problema.

Veículos de outras cidades foram então proibidos de entrar e quem vinha de fora era orientado a não desembarcar.

O comércio fechou poucos dias depois, antes mesmo da adoção da medida pela capital, e foi distribuído um total de máscaras quatro vezes maior do que o número de habitantes. "Foi melhor errar por excesso do que por omissão", diz o prefeito Rodrigo Viana.

Para o epidemiologista Diego Ricardo Xavier, pesquisador da Fiocruz, o "pulo do gato" em Trajano foi o investimento para rastrear a doença com testes PCR, seguido da identificação de focos e isolamento.

Testes e isolamento: o cerco à covid

Herculano Barreto Filho/UOL

Na linha de frente, secretário monitora infectados por WhatsApp

Um gabinete de crise, que coordena ações de secretarias e Defesa Civil, passou a concentrar as medidas de combate à covid-19.

O próprio secretário do gabinete, Saulo Pacheco (foto), atua na linha de frente em parceria com um técnico de enfermagem.

Eles fazem testagens na população e monitoram diariamente os casos de infectados pelo WhatsApp ou em contato com o centro de triagem, unidade de saúde que há dois meses atende pacientes com sintomas compatíveis à covid-19.

O histórico da entrada do vírus na cidade está na ponta da língua dos profissionais de saúde.

Houve um casal de Nova Friburgo (RJ) que decidiu cumprir quarentena em um sítio na cidade. Em seguida, surgiu o primeiro caso de contaminação: um morador que trabalhava em uma cidade vizinha ficou em isolamento em casa. E houve ainda o caso de um visitante que contaminou uma família com 30 pessoas.

A nossa meta é passar pela pandemia sem ter óbitos por covid e com o mínimo de casos graves

Saulo Pacheco, secretário municipal do Gabinete de Crise

Herculano Barreto Filho/UOL Herculano Barreto Filho/UOL

Equipe faz testes diários e isola focos

O UOL acompanhou na semana passada a rotina de trabalho da equipe que circula pelos cinco distritos do município para orientar a população, conversar com pessoas em quarentena e fazer testes.

O município faz três tipos de testagem há três meses. O mais comum é o teste rápido, com até 30 coletas por dia —foram mais de 800 desde o começo dos exames.

Os agentes fazem análises semanais de PCR, com coleta no nariz e garganta que permite detectar o RNA do vírus. O teste sorológico é o menos usual: costumam ser feitos a cada 30 dias.

Quem testou positivo é mantido em isolamento por até 30 dias e só é liberado após o exame constatar que o paciente não está mais infectado.

O nosso olhar precisa ser de educação e de orientação. As pessoas nos enxergam como referência no assunto aqui na cidade

Saulo Pacheco, secretário do gabinete de crise

No momento, os agentes tentam conter a proliferação do vírus no distrito Monte Café, área rural que concentra a maioria dos casos ativos da pandemia. Segundo Pacheco, o local se tornou foco da doença por causa da proximidade com Bom Jardim, município vizinho.

"Mas também há o contato dos moradores com funcionários de empresas de confecção de Nova Friburgo, que trazem a matéria-prima. Estamos orientando para que esses funcionários não desçam dos veículos e evitem o contato com os moradores. O nosso trabalho é também entender como funciona esse mecanismo", explica o secretário.

Herculano Barreto Filho/UOL Herculano Barreto Filho/UOL

Casal orientado a permanecer em isolamento após teste positivo

Quando o carro da Vigilância em Saúde reduz a velocidade pela estrada de terra e buzina, um senhor abre o portão de madeira no distrito de Monte Café, zona rural da cidade. O veículo segue em frente por cerca de 50 m e para diante uma casa, onde um casal esperava.

Os agentes descem do veículo e se paramentam para fazer o teste rápido na esposa e na filha do trabalhador rural Julio Cesar Poubel Rosa, que tinha testado positivo para covid-19 no dia anterior.

Ele disse não ter ideia de como se contaminou. "Na roça, a gente anda sem máscara. Mas só com gente conhecida", conta.

Os agentes perguntaram ao casal sobre os locais onde estiveram nos últimos dias, para tentar identificar onde ocorreu o contágio e rastrear o deslocamento do vírus. Informaram que retornariam na semana seguinte com o resultado dos exames e deram uma série de orientações para a família, que passou a adotar a quarentena naquele momento.

"Julio, preciso que você faça o mínimo de esforço, não durma no mesmo quarto com a sua esposa e use máscara até dentro de casa. Estamos combinados assim?", perguntou Saulo. "Vamos ficar isolados a partir de agora", assentiu o rapaz.

Herculano Barreto Filho/UOL Herculano Barreto Filho/UOL

Vida social mais restrita e cuidados entre os moradores

Em frente à prefeitura, em vez do barulho do motor dos carros, o som dos cascos de um cavalo trotando no asfalto. Na cidade, predominantemente rural, é comum o uso de animais como transporte —a economia baseia-se na produção de leite e hortaliças revendidas pelo Ceasa, na capital.

Na área central, pequenas filas em frente a duas agências bancárias. Mas, mesmo com a pouca movimentação, as pessoas que circulavam por lá usavam máscaras de proteção.

"Recebi as máscaras em casa e me sinto mais protegido", diz o comerciante Adilson Costa Parreira, 46.

O professor Davi Doruteu da Silva, 52, que fazia um lanche no quiosque da praça também afirma ter assimilado a mensagem de precaução. Antes da pandemia, costumava passar os finais de semana com a esposa em Nova Friburgo ou Macaé, municípios vizinhos de maior porte.

"Eu tinha uma vida social mais ativa. Agora, a circulação está mais restrita", compara.

A agente de saúde Alessandra Oliveira, 36, disse ter participado das barreiras sanitárias no município e acredita que a ação deixou um legado de conscientização. "A cidade se antecipou e foi pioneira nessa luta".

Herculano Barreto Filho/UOL

Comércio com restrições

Na frente de uma loja de roupas, a mensagem sobre o uso obrigatório de máscara. A vendedora Karina Sampaio, 38, conhece bem o contraste com as cidades maiores. Natural de São Gonçalo, ela mora em Trajano de Moraes há três anos. "Aqui, é uma cidade tranquila. E as pessoas estão se prevenindo."

Herculano Barreto Filho/UOL

'Doença levada a sério'

A sensação de tranquilidade era tanta que o socorrista Gildo Vieira Melo, 50, foi tomar cerveja com um amigo na praça. Morador do Rio, ele estava de visita. Só não veio antes por causa das barreiras sanitárias. "Rapaz... Eu decidi sair pra relaxar. Aqui, as pessoas estão levando a doença a sério."

Herculano Barreto Filho/UOL

Mudança de postura

Morador de uma cidade vizinha, Alexandre Silva foi a Trajano para visitar a irmã. Antes contudo as visitas eram mais frequentes. "Me orientavam nas barreiras sanitárias a ficar na minha cidade." Wellington Marinho, cunhado de Alexandre, também mudou a postura. "Fico mais em casa. Estou mais seguro aqui."

Herculano Barreto Filho/UOL

Assunto nas redes sociais

Jessica dos Santos Malaquias, 23, percebe a mudança da movimentação na cidade, antes frequentada por visitantes de municípios vizinhos. "As pessoas estão se protegendo, bem conscientes. Também deixei de ir para outros municípios. Tem muita gente falando disso nas redes sociais."

Herculano Barreto Filho/UOL Herculano Barreto Filho/UOL

Ações são referência para cidades pequenas, diz pesquisador da Fiocruz

O epidemiologista Diego Ricardo Xavier, pesquisador da Fiocruz, sugere que as ações de combate à covid-19 em Trajano de Moraes sejam usadas pelo Ministério da Saúde como referência para outros municípios de pequeno porte no país. Ele comparou o investimento local contra a doença —R$ 1,5 milhão, 10% do orçamento no período— ao aporte feito em países europeus. A pedido do UOL, o especialista avaliou as medidas adotadas na cidade da região serrana do Rio.

Em países da Europa, houve gastos de até 15% do PIB no combate à pandemia. Proporcionalmente, Trajano de Moraes fez um grande investimento para fazer rastreamento com PCR, identificar focos mais cedo e isolar. Esse é o pulo do gato, porque interrompe a cadeia de transmissão. A prefeitura distribuir máscaras traz um senso de coletividade, porque as pessoas passam a querer resolver o problema

Diego Ricardo Xavier, epidemiologista da Fiocruz

O epidemiologista afirma que o rastreamento precoce auxilia o combate ao vírus, porque o paciente chega à unidade de saúde em condições de tratamento, no estágio inicial da doença. Isso explica, por exemplo, o fato de o município ter tido apenas dois casos de internação hospitalar por covid-19.

"Quando o paciente chega ao hospital cedo, ele acaba tendo uma recuperação melhor", explica.

Xavier também criticou a "pílula mágica" ao se referir ao uso que ele entende ser equivocado da hidroxicloroquina, sem comprovação científica de eficiência no combate à covid-19. Ele ainda citou o caso de Trajano de Moraes como um exemplo capaz de criar um novo tipo de protocolo para cidades com população de cerca de 10 mil moradores.

Não existe pílula mágica ou remédio que resolve o problema. Não teve cloroquina. Não teve um governante chegando com solução fácil. É difícil mesmo. É isolar, testar e rastrear para quebrar a cadeia de transmissão

Diego Ricardo Xavier, epidemiologista da Fiocruz

Herculano Barreto Filho/UOL Herculano Barreto Filho/UOL

Só 2 internações em ala para covid

No começo de maio, o Hospital Municipal Francisco Limongi isolou uma área com três quartos para pacientes com sintomas de covid. Foram separados oito leitos —na ala para pacientes graves, há dois respiradores.

Mas a ala está vazia.

Apenas duas pessoas da mesma família foram internadas no município, em junho, já que os pacientes costumam ser tratados precocemente graças ao trabalho de testagem e rastreamento.

Um idoso de 70 anos com problemas cardíacos ficou internado por três dias, com o auxílio de ventilação mecânica. Ele estava assintomático e só foi descoberto graças à investigação epidemiológica. Graças ao diagnóstico precoce, foi possível impedir um agravamento do caso.

Mas a mulher de 40 anos, sobrinha dele, teve complicações e precisou ser transferida para um hospital na capital fluminense, onde ficou hospitalizada por duas semanas.

"Foi montada a estrutura, mas não teve necessidade de internação. Os pacientes com síndrome gripal estão sendo encaminhados para um centro de triagem e ficam isolados em quarentena domiciliar", diz André de Oliveira Freire, enfermeiro-chefe do plantão.

No centro de triagem, há um psicólogo que atende pacientes pelo telefone.

"Estar com covid é traumático porque traz um certo impacto na sua rotina. Traçamos um perfil para ver se há sintomas de angústia e ansiedade. O objetivo é fazer com que essas pessoas se adaptem com maior facilidade e ajudar no processo de cura", disse o psicólogo Vinicius Aguiar.

Herculano Barreto Filho/UOL Herculano Barreto Filho/UOL
Topo