Sonho frustrado

Casa própria foi o começo, mas sem estrutura vida segue dura no maior Minha Casa, Minha Vida de SP

Wellington Ramalhoso Do UOL, em São Paulo Edson Lopes Jr./UOL

Uma cidade (sem estrutura) dentro da outra

Uma nova cidade está acabando de se formar dentro da cidade de São Paulo. Três mil famílias já moram nela. Outras 860 se mudam até outubro para ocupar as unidades restantes do Residencial Espanha, o maior conjunto do programa Minha Casa, Minha Vida na capital paulista e o segundo maior do município - só perde para Cidade Tiradentes, na zona leste, conjunto construído na década de 1980. A prefeitura estima que o complexo, que possui 193 prédios, terá ao todo 16 mil habitantes.

Mesmo antes de ser erguido, o Espanha já era alvo de controvérsias. Ele foi construído em meio a nascentes, ao lado da represa Billings, no Jardim Apurá, zona sul de São Paulo. Ambientalistas se opunham à obra e defendiam a implantação de um parque no local.

Agora os moradores enfrentam duas dificuldades também identificadas em outros conjuntos habitacionais do Brasil: a longa distância até o centro - no caso, nada menos do que 30 km - e a falta de estrutura para um uma cidade, ou um bairro, funcionar bem.

Antes da obra, o material de divulgação falava que o complexo contaria com uma escola e dois centros de educação infantil, uma escola municipal de educação fundamental, dois centros de assistência social, sede para a Guarda Civil Metropolitana e a implantação de 84 lotes destinados ao comércio.

Os primeiros moradores estão prestes a completar um ano vivendo no conjunto e ainda esperam os equipamentos. Um sinal claro da estrutura inexistente está nas ruas recém-abertas entre os prédios, com comércio informal e improvisado para o novo público. Apesar dos problemas, famílias que vivem em áreas de risco e de mananciais no entorno tentam conseguir vagas no conjunto.

A prefeitura afirma que há equipamentos "em fase de projeto", cita opções de atendimento de saúde e aponta que a escola de ensino infantil Jardim Apurá tem 170 vagas sobrando (veja mais abaixo).

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"Propaganda era bonita, mas realidade é frustrante"

Depoimento de Edna*, moradora do Residencial Espanha

"Morava em uma casa própria no Gaivotas, em outro ponto da represa Billings, na zona sul. Em 2010, surgiu um projeto do governo para tirar aquelas casas da beira da represa. Então, fiquei oito anos vivendo de auxílio aluguel, morando em bairros da região, até ser contemplada com um apartamento no Residencial Espanha. Me tiraram de uma área de mananciais para colocar em outra área de mananciais.

A propaganda [do Residencial Espanha] era muito bonita, o projeto era lindo, maravilhoso, mas na prática não supera a expectativa. Pelo contrário. Falavam que a gente ia ter um parque maravilhoso para passear com as crianças com segurança, falavam que ia ter escolas próximas, que ia ter posto de saúde perto de casa, comércio, creche. Cheguei aqui e vi que não é isso. Acabou ficando um sonho bem frustrado.

As necessidades do Jardim Apurá são até maiores do que as do bairro de onde vim. Comecei a sofrer para ir atrás de posto de saúde e de vaga escolar. Tive que ir no Conselho Tutelar para conseguir a vaga do meu filho de oito anos numa escola estadual e tenho que pagar transporte escolar.

Depois que mudei, soube que a entrega do empreendimento foi barrada algumas vezes devido a algumas rachaduras, problemas de infraestrutura. Moro no térreo e vejo que o apartamento tem trincas no azulejo, no teto, no chão, e infiltração na parede quando chove. O esgoto entope direto, inclusive já entrou esgoto no meu apartamento. Ouviram estalos em uma das torres. Vão fazer vistoria para dizer se tem risco para os moradores."

* Nome trocado a pedido da moradora

Edson Lopes Jr./UOL Edson Lopes Jr./UOL

"Jogaram a gente numa ilha"

Depoimento de Elisângela Aparecida Roque, também moradora do conjunto

"Eu morava em área de risco, na beira da Billings, uma área totalmente insalubre. A gente não tinha o básico que um ser humano precisa ter. Teve uma mobilização para conseguir incluir nossa comunidade aqui [no Residencial Espanha] porque viriam comunidades da zona leste para este condomínio, e a gente iria para a zona leste.

O sentimento de conseguir morar aqui foi de alegria. A gente voltou a ser cidadão, com endereço próprio e dignidade. Mas nossa comunidade era muito carente. Muita gente tem dificuldade financeira e não está conseguindo pagar o condomínio. Eles estão lutando do jeito que podem.

A prefeitura não cumpriu o que prometeu. Não tem escola, não tem creche, faltam linhas de ônibus. De manhã é um sacrifício para conseguir pegar uma condução. O posto de saúde do Jardim Apurá está recusando até gestantes por falta de vaga. Ele não está suprindo a demanda. Sou cardíaca e não consigo passar nesse posto. Tenho que me locomover de ônibus até um posto em outro bairro, que também já está sobrecarregado.

Falaram que iam facilitar a compra de terrenos para que tivesse algum comércio em volta do condomínio, mas são preços exorbitantes. Enquanto isso, as pessoas estão improvisando [barracas], trabalhando do jeito que podem. Jogaram a gente numa ilha. A realidade é essa."

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Obras fez ambientalistas mudarem reivindicações

Como diz Elisângela, a construção do conjunto mobilizou a população da região. Os ambientalistas rejeitavam a obra e queriam a implantação do parque dos Búfalos em toda a área de mais de 1 milhão de metros quadrados. Autorizada na gestão Fernando Haddad (PT), a obra do complexo avançou nas administrações de João Doria e Bruno Covas, ambos do PSDB. O movimento, então, mudou o foco e passou a reivindicar que a população da região fosse contemplada e que a ocupação das margens da Billings diminuísse.

Esta luta prosperou. "Depois das negociações entre a Secretaria de Habitação e a população terem avançado, ficou acordado que o Residencial Espanha também iria atender a demanda premente do entorno", afirma o líder comunitário Wesley Rosa.

No entanto, nem todas as famílias de comunidades como Guaicuri, Pilão, Fundão e Santa Amélia estão garantidas no conjunto. "Continuamos aguardando que o restante das 400 famílias convocadas e cadastradas sejam atendidas e alocadas no Residencial Espanha e não sejam transferidas para locais distantes, visto que o seu tecido social, locais de trabalho, convivência e estudo estão enraizados nesta região. Estamos esperançosos de que este compromisso seja cumprido pelos órgãos competentes ainda neste mês", diz Wesley.

A família do líder comunitário vive há 46 anos no bairro e também espera uma definição sobre o próprio destino. Além disso, ele aguarda a prefeitura colocar em funcionamento o conselho gestor de zonas especiais de interesse social em áreas de proteção de mananciais, órgão para o qual foi eleito em setembro de 2018 e que poderia ter atuado no caso do Jardim Apurá.

A prefeitura diz que já definiu os contemplados com as 860 unidades restantes do complexo habitacional. De acordo com a gestão Bruno Covas, ficaram de fora os que não apresentaram a documentação necessária; os que tinham renda familiar mensal acima de R$ 3.600, isto é, fora da faixa do empreendimento; e os que não aceitaram a vaga no Residencial Espanha.

A administração municipal tem oferecido três alternativas a quem é da região e não foi beneficiado: pagamento de indenização pela casa construída em área de manancial e de risco, pagamento de R$ 400 por mês de auxílio aluguel ou atendimento em outro conjunto. Esta última alternativa é o empreendimento Chácara do Conde, em construção a 14 km dali, na Capela do Socorro, outro bairro da zona sul.

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Ansiosas, famílias esperam resposta da prefeitura

Moradores das comunidades próximas que foram convocadas esperam com ansiedade uma resposta da prefeitura para saber se poderão se mudar ou não para o Residencial Espanha. "Minha esposa teve uma restrição por causa de dívida. Regularizamos isto já faz sete meses e levamos os comprovantes de que a gente está isento da dívida. Falaram que temos que aguardar. Se não tem mais a restrição, por que está havendo essa negativa?", questiona o eletricista Nino Pereira, 40, morador da comunidade do Fundão, à beira da Billings.

Como aconteceu na favela Guaicuri, as casas das famílias do Fundão contempladas no Residencial foram demolidas pela prefeitura, e os moradores remanescentes, como Pereira, estão vivendo em meio aos escombros.

O vigilante Josiel Alves Pereira, 38, morador da comunidade Pilão, à beira da Billings, teme passar pelo mesmo problema. Seu pai e sua irmã foram contemplados, mas ele ainda não. "Se demolirem as casas deles, vai ter um efeito dominó. A minha casa será prejudicada porque é uma parede só. São casas conjugadas", conta. "Alegam que tenho uma renda que ultrapassa os R$ 3.600, mas não tenho porque nem trabalhando estou. Fiz uma cirurgia na coluna, coloquei um parafuso e estou sem trabalhar desde o ano passado. Não estou recebendo benefício nenhum".

A dona de casa Maria Lúcia Alves da Costa, 48, vive em uma área do Fundão onde os moradores estão assustados com o surgimento de rachaduras nas vielas. De acordo com ela, a prefeitura avisou que sua casa está entre as que serão retiradas.

Maria Lúcia já tinha apartamento definido no Residencial Espanha, mas está apreensiva. "Fizeram adaptação para o meu filho que é deficiente, e fiquei aguardando. Está faltando só a assinatura do contrato. Minha preocupação é não conseguir o apartamento adaptado. O que mais quero é sair da viela porque lá é difícil para eu me locomover com ele".

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Prefeitura diz que estuda soluções na educação e na mobilidade

Dos equipamentos prometidos, a prefeitura afirma que só dois estão em fase de projeto: um centro de educação infantil e uma escola de ensino fundamental. Por outro lado, diz que a escola de ensino infantil Jardim Apurá tem 170 vagas sobrando e que "está trabalhando para mapear as famílias [do Residencial Espanha] e realizar o atendimento das crianças com agilidade".

Quanto à mobilidade, a Secretaria de Habitação diz que as tratativas para realizar melhorias "estão em curso". "Em relação aos lotes comerciais, os mesmos foram comercializados diretamente com a construtora (Enccamp), sem a participação da secretaria. Para dar início às construções, os proprietários dos lotes devem apresentar os projetos para aprovação na Prefeitura", afirma a administração em nota.

Na área da saúde, a gestão tucana diz que a UBS Jardim Apurá, que já existe há 19 anos, conta com quatro equipes de saúde da família e que a UBS Parque Doroteia, um pouco mais distante do residencial, recebeu duas novas equipes.

A gestão municipal também informa que o reassentamento no Residencial Espanha contemplou famílias oriundas de áreas internas da bacia da Billings, priorizando as que recebiam auxílio aluguel e cujas casas foram removidas por obras do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) e por "obras emergenciais para mitigação de riscos" e as "que residem em áreas de vulnerabilidade territorial". Dentro deste grupo, a preferência seria dada a famílias chefiadas por mulheres e núcleos com a presença de pessoas com deficiência e idosos.

Sobre problemas estruturais nos prédios, a prefeitura informa que cabe à construtora Enccamp realizar os reparos. "Os moradores possuem um número de telefone 0800 e canais de comunicação pelo WhatsApp. A fiscalização das obras é de responsabilidade da Caixa Econômica Federal".

A criação oficial do parque dos Búfalos é prometida para 2020. Ele ficará reduzido a uma área de 537 mil metros quadrados. Mesmo assim, se tornará o quinto maior parque urbano de São Paulo.

Edson Lopes Jr./UOL Edson Lopes Jr./UOL

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