A grande fuga de Lázaro

Enquanto tenta escapar da polícia, ele engorda a ficha criminal, que até sexta-feira somava 31 acusações

Eduardo Militão e Matheus Pichonelli Do UOL, em Brasília, e Colunista do UOL Marcos De Lima/UOL

Entre 2007 e maio de 2021, Lázaro Barbosa, hoje com 32 anos, cometeu 12 crimes, segundo os registros policiais e da Justiça. A partir de uma chacina na Ceilândia, quando passou a mobilizar centenas de policiais em sua caça, a ficha criminal mais do que dobrou. Ele cometeu ao menos 19 crimes em apenas sete dias.

São delitos em série, registrados a cada nove horas: cinco homicídios, três tentativas de assassinatos, quatro roubos e três atos de sequestro ou cárcere privado. Enquanto fugia, ele engordava a ficha criminal, que até sexta-feira somava 31 acusações.

A partir dos inquéritos policiais, o UOL conta a crônica da fuga de Lázaro que, até a publicação desta reportagem, seguia foragido.

Águas Lindas. 23 de julho de 2018

Da guarita, o agente penitenciário percebeu a movimentação e efetuou os primeiros disparos. Um a um, os presos que na madrugada de domingo para segunda-feira tentavam escapar pelo teto da penitenciária de Águas Lindas, em Goiás, voltaram para suas celas de telhas e forro arrebentados.

Quatro deles precisaram ser resgatados entre os muros da cadeia. Outro estava no buraco. Os demais foram contidos. Menos um. Era Lázaro Barbosa de Sousa, que cumpria pena por homicídio qualificado. Fugitivo descrito como um "psicopata", há mais de dez dias mobiliza duas centenas de policiais, helicópteros e drones ao seu encalço pelo Planalto Central.

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Oito dias depois da fuga pelo teto, circulando numa manhã de sábado pelas ruas empoeiradas do bairro Quintas Águas Bonitas, a mais ou menos dez quilômetros do presídio, o cerco parecia ter se fechado para Lázaro Barbosa.

Ao perceber o movimento, o fugitivo acelerou a moto Honda CG Titan, que havia sido roubada, mas perdeu o controle a poucos metros dali e caiu. Do chão, ele disparou contra os policiais. No tiroteio, ele conseguiu escapar e correr em direção a uma chácara perto dali. Um helicóptero da Polícia Militar do Distrito Federal foi até o local. Em vão.

Durante a tarde, uma equipe de policiais deu sequência à caçada com uma incursão pela área de mata fechada. Ao todo, os policiais atiraram 42 vezes em direção ao vulto atrás dos arbustos. Nenhuma bala acertou Lázaro Barbosa, que conseguiu escapar mata adentro, deixando para trás uma carabina de pressão e um rifle calibre 22. No carregador havia ainda cinco munições.

Na mata fechada, Lázaro encontrou uma trilha aberta para a fuga em liberdade.

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Águas Lindas. Setembro de 2019

A ameaça veio pelo WhastApp. Quando soube que a mãe, dona Eva, havia sido demitida da chácara onde trabalhava em Águas Lindas de Goiás, Lázaro Barbosa pegou o celular, prefixo 74, e disparou: "Ninguém é cachorro sem dono não, viu?".

O dono da propriedade não pensou duas vezes. Correu para a delegacia com uma queixa em forma de alerta: um condenado por homicídio e roubo que escapou da prisão continuava ameaçando e cometendo crimes pela região. O alerta parecia embutir uma pergunta: ninguém vai fazer nada? A resposta viria anos depois.

Santo Antônio do Descoberto (GO). 8 de abril de 2020

Chovia naquela noite de quarta-feira. Com um facão na mão, Lázaro cruzou a pé o portão principal da chácara cerca de uma hora após a chegada das visitas. O casal de idosos tinha viajado do Distrito Federal até Santo Antônio do Descoberto para jantar com os cunhados. Eles jogavam dominó na varanda quando as luzes se apagaram.

A caixa de energia ficava em uma área externa. Lázaro já havia mapeado o local. No caminho até a casa, ele matou uma das cachorras com um golpe de facão e atravessou o galinheiro. Parecia conhecer cada detalhe da planta do imóvel.

No breu, o dono da casa sentiu a ponta do facão no pescoço quando ouviu um grito. "Perdeu!"

Aos berros, o invasor mandou os reféns entrarem em um dos quartos e trancou a porta. Começou então a circular por ali em busca de armas e dinheiro. Avisou que não tinha pressa e tinha todo tempo para encontrar o que procurava.

A única arma funcional dos proprietários estava no quarto onde as vítimas haviam sido levadas. Irritado diante da dificuldade em encontrar os pertences, Lázaro abriu a porta e recebeu um tiro na perna, disparado pelo visitante. Ele só tinha mais quatro balas no revólver calibre 38 e a visão prejudicada pelo breu.

Lázaro correu para a oficina da chácara, onde acendeu novamente as luzes, e encontrou um machado. De lá, gritava e ameaçava botar fogo e matar todo mundo naquela casa.

Entre portas e vidraças, começou a quebrar tudo o que via pela frente. Ao se dirigir para a casa principal, encontrou o visitante armado e aplicou uma machadada em sua cabeça. Sem tempo de reagir, a vítima caiu sangrando. Tem sequelas do golpe até hoje.

O dono da casa recebeu golpes de facão, mas escapou. Sua esposa pegou então uma espingarda de chumbinho e apontou para o invasor. O tiro falhou. Ela então implorou para que Lázaro levasse logo o que queria levar. Ele recolheu os celulares dos quatro reféns e se mandou. Novamente pela mata.

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17 de maio de 2021. Ceilândia

"Isso vai salvar a vida de vocês", disse Lázaro Barbosa, em tom messiânico. Com um facão e um revólver, ele ajudou a família a se despir antes de começar as filmagens com uma câmera de celular. Lázaro permaneceu no local, uma chácara na zona rural em Ceilândia (DF), por cerca de cinco horas.

Como um diretor de cinema, ele demonstrava controle da cena e do tempo de atuação. Parecia calmo e seguro quando pediu que a família se ajoelhasse e rezasse um pai-nosso. Todos oraram com a arma apontada para as cabeças. Levariam ainda um tempo para se livrarem do mal, amém.

Lázaro Barbosa queria conversar. Dizia que sua vingança, caso alguém chamasse a polícia, seria divulgar os vídeos íntimos das vítimas na internet. Sem os berros das últimas emboscadas, o assaltante deixou a impressão a um dos moradores de ser uma pessoa "estudada".

Lázaro teve fome. Pediu para que uma das vítimas cozinhasse para ele. Ordenou também que ela bebesse todo o vinho guardado na geladeira. Ela obedeceu. Sempre sem roupa. E sob a mira do aparelho celular, que registrava tudo.

Depois de comer, rezar e gravar, ele pediu desculpas e levou dois relógios, celulares e R$ 90 mil em espécie. O assalto aconteceu menos de um mês antes de seu pior crime, em Ceilândia, a cidade satélite onde João de Santo Cristo se perdeu na música da Legião Urbana.

Em uma chacina perto dali, um casal e seus dois filhos foram assassinados em uma chácara. Fazia quase três anos que o ex-patrão de sua mãe havia avisado a polícia sobre as andanças e ameaças de Lázaro Barbosa pela região.

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10 de junho. Ceilândia

Antes de deixar a casa, Lázaro fez um último pedido. Reféns, a proprietária e o caseiro, não tinham como negar. Um dia após a chacina, o invasor adentrou uma outra chácara na Ceilândia por volta das 11h. Tinha fome. Só deixou o local por volta das 15h.

No intervalo de quatro horas, ele assistiu à televisão e pediu para a mulher cozinhar para ele. Ela cozinhou. Depois de comer, ele enrolou um baseado de maconha, acendeu e ofereceu aos donos da casa. A tranquilidade exibida pelo criminoso contrastava com a tensão das vítimas. Com a arma apontada para elas, as vítimas obedeceram a última ordem do visitante. Fumaram com ele.

13 de junho. Edilândia (GO)

Em seu quarto dia de fuga, Lázaro Barbosa revirou a fazenda do avesso em Edilândia, município a 20 km do local da chacina, até encontrar o que queria. Com o carro furtado, ele acelerou em direção ao Distrito Federal pela BR-070. Na rodovia, viu a fila de carros e reduziu a velocidade. A poucos metros dali havia uma barreira policial.

O alvo da blitz abriu as portas e abandonou o Corsa vermelho, seguindo a pé. Novamente pela mata. Deixou para trás uma pistola e munições no veículo. Quando os cães farejadores chegaram com os policiais, ele já estava longe dali.

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15 de junho. Cocalzinho de Goiás

Lázaro estava prestes a ser convencido quando ouviu um barulho de telefone. Era um policial retornando a ligação de uma jovem de 16 anos que, pouco antes, viu uma equipe policial passar pela vizinhança, em Cocalzinho (GO), e anotou o número de WhatsApp. Era para entrar em contato caso visse alguma movimentação estranha por ali.

"Socorro, Lázaro está aqui em casa", escreveu a adolescente, escondida debaixo da cama. A poucos metros dali, na sala, Lázaro Barbosa perguntava ao pai quem mais estava na casa. O proprietário jurava que estava ali apenas com a esposa.

Ao ouvir o telefone tocar, Lázaro arrancou a adolescente da cama e, como havia feito em outras vezes, ordenou que ela enchesse para ele uma panelada de comida. Enquanto comia, ele apontava a arma para o pai, amarrado, e avisou: todo mundo sairia dali correndo com ele, mas quem olhasse para trás morreria. Antes, pediu que a garota tirasse a camisa vermelha. Temia que a cor chamasse a atenção dos policiais.

Já à beira do córrego, a cerca de 2 km da casa, ele deu as orientações para que eles andassem pelo cascalho, dentro da água. Era para não deixar marcas e pistas na areia. Com a mensagem recebida pouco antes, os policiais, auxiliados por um helicóptero, se reposicionaram no local. Lázaro ficou com os reféns no rio, usando uma folha de coqueiro sobre a cabeça para se camuflar.

Ele chegou a se gabar para os reféns que até gostaria, mas não conseguia errar nenhum tiro. E atirou. Em meio aos estalos, ele se esquivou de um policial, acertando-o, e escapou novamente, liso e escorregadio como pedras de ribeirão. Deixou a família para trás. Antes de tirar as vítimas do rio, um policial ainda fez uma selfie com os resgatados enquanto as balas ricocheteavam nas pedras e matagal.

17 de junho. Girassol

Lázaro Barbosa permanecia escondido debaixo de um cobertor na fazendo de um conhecido no distrito de Girassol, em Cocalzinho (GO), quando ouviu a movimentação. Com uma mochila nas costas e mancando, ele correu como pôde pelo campo de árvores baixas e distorcidas, típicas do cerrado.

Naquele mesmo instante, um engenheiro agrônomo acabava de chegar a sua fazenda para fechar o gado quando observou as viaturas. Estranhou que elas estivessem vazias, mas não deu tempo de imaginar as razões. Quando olhou para o milharal, uma bomba de fumaça subiu em meio aos gritos. "Polícia, polícia, para". O tiroteio recomeçava.

Lázaro enfrentava 15 policiais armados com metralhadoras e auxiliados por um helicóptero. O agrônomo acionou o smartphone e passou a transmitir o enfrentamento em uma live para os seguidores das redes sociais. Outros moradores armados com smartphones capturavam a cena em outros ângulos da mesma área.

O monólogo de Riobaldo, de "Grande Sertão: Veredas", o jagunço-poeta, era atualizado: "Quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir, instantaneamente depois, então, se vai ver se deu mortos".

Naquela trilha onde os pastos também carecem de fechos, os policiais alvejaram a mira apenas em árvores e no baixo córrego. Na fuga, mais uma, Lázaro Barbosa materializava a ficção. "O diabo vige dentro do homem, os crespos do homem ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos". Isto é o cerrado.

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