Dona de cinco fazendas de gado em Goiás —estado que tem o segundo maior rebanho bovino do país—, a mineira Roseli Tavares representa uma parte do agronegócio que deixou para trás um certo "complexo de botina suja".

Muitos fazendeiros ricos, diz, "até hoje se acham jeca" e têm vergonha, por exemplo, "de entrar nos lugares chiques de São Paulo". Não ela. Há tempos, Roseli, 62, concluiu que o importante é "ter um cartão de crédito bom".

A fazendeira é herdeira de Arlindo Tavares, um dos maiores pecuaristas do país, e integra o único setor da economia que deve crescer neste ano (especialistas estimam em 8% o aumento do PIB do agronegócio).

Roseli recebeu o UOL em seu apartamento em Goiânia, a capital que melhor representa a cara desse novo agro —poderoso e orgulhoso de si.

Na conversa, disse o que pensa sobre o gosto dos cariocas por hotéis-fazenda, sua queda por bolsas Hermès de R$ 50 mil, o PT, os sem-terra e Jair Bolsonaro, que na eleição de 2022 ganhou do presidente Lula em oito das dez principais cidades do agronegócio, todas no Centro-Oeste.

Com a palavra, Roseli.

"Perguntam se sou parente do Nerso da Capitinga"

Aqui, quem negocia sou eu. Meu esposo só cuida de papéis, dos meus contadores e tal. Eu que vou pra leilão, compro gado e negocio tudo. Modéstia à parte, ponho homem no chinelo.

Não tenho complexo de caipira como muita gente que eu conheço, inclusive minhas irmãs, que até hoje se acham jeca e têm vergonha de entrar nos lugares chiques de São Paulo. Eu chego desbancando.

Mês passado fui naquele Empório Fasano comprar uns vinhos pro meu esposo. Na hora que entrei, a vendedora falou: "Precisando de alguma coisa?". Em vez de ficar complexada com o meu sotaque —o povo pergunta se eu sou parente do Nerso da Capitinga já fui dizendo: "Sim, procurando um presente. Sou de Goiânia, sou pecuarista". Aí, virou o jeito dela me tratar.

Depois que você tem um cartão bom, entra em qualquer lugar no mundo. Vou ter vergonha de vendedora? De garçom? Uai, pera aí, eu pagando!

Um dia eu estava no Texas com a alta grã-finagem do Brasil. Fomos visitar os confinamentos. Cheguei numa palestra e veio um paulistano bem chique perguntar pra mim: "Você não pôs o fone de ouvido (para ouvir a tradução)"?. Eu falei: "Uai, eu entendendo". Ele falou: "O quê? Vocês de Goiás falam inglês?".

Eu respondi assim: "Ó, nós fala errado porque nós qué, porque estudado nós é". Nós é jeca mas é joia. Nós é jeca mas tem dinheiro.

Os mais evoluídos pensam como eu, já não têm mais complexo. Mas em muitos lugares, se você vem da fazenda, de botina suja, o povo estranha. Olham muito o visual.

Botina suja, dinheiro na mão

Meu pai, por exemplo, vivia de botina suja, roupinha simples. Parecia um peãozinho coitado da fazenda.

Quando a Cherokee chegou no Brasil, eu convenci ele a comprar: "É um carro importado, pai, parecido com o jipe que o senhor tinha. Não atola, mecânica top". Ele interessou. Quando acabou o test drive, ficou em dúvida entre a dourada e a branca. Falou: "Me dá as duas".

Meu pai ficou milionário sem saber ler. Mas era muito inteligente. Eu acho que as pessoas como ele, que não gastam o cérebro com estudo, desenvolvem mais a cabeça pra ganhar dinheiro. Toda vida ele teve condições. Mas não dava vida boa pra nós.

Na fazenda, a gente tinha de usar folha de planta em vez de papel higiênico e lavar o cabelo com um sabonete feito de tripa de vaca e cinza, que mais encardia do que lavava.

Quando a gente chegava da fazenda, minhas irmãs ficavam com vergonha das outras meninas da escola porque achavam que estavam encardidas. E a gente vinha sempre carregando um saco cheio de trem, caixa de isopor com queijo... Eu também achava jeca isso.

Bolsa de R$ 50 mil e aversão a hotel-fazenda

O povo do agro não gosta de gastar. Eles compram duas Cherokees pra variar a cor, mas, quando viajam, acham caro uma garrafa de água mineral e pedem água do filtro. Eles têm um patrimônio monstruoso e vivem pior do que pobre.

Tem essa fama que a mulher de Goiás gasta, exibe. Eu sei que quem é dona do próprio dinheiro não toca fogo nele. As que fazem isso aí é porque o dinheiro é do marido. Eu gasto consciente.

Outro dia, eu estava em Miami e queria uma bolsa laranja da Hermès. Pra mim, Hermès tem de ser laranja, igual Ferrari tem de ser vermelha.

Fui lá, comprei a bolsa, R$ 50 mil. A hora que eu saí da loja, a minha tia e o meu tio, que é trilhardário, estavam até deprimidos. Olhavam pra mim: "Vai queimar toda a fortuna do pai em bolsa".

Eu tive que falar: 'Tio, eu comprei essa bolsa porque recebi um dinheiro da devolução do imposto de renda, não gastei um centavo de dinheiro de boi'.

Aí, ele relaxou.

Eu conheço mulheres que se dizem ricas, mas precisam que o marido dê as coisas pra elas. Eu, não. O dinheiro é meu e eu compro o que eu quiser, porque me faz bem. Eu gosto do belo. Eu adoro o belo.

Nós, que somos do agro, não achamos graça em hotel-fazenda. Festa de peão de boiadeiro, música sertaneja e hotel-fazenda parece que caíram no gosto do povo chique do Rio, das cidades mais bacanas.

Mas a gente de fazenda está cansada de ver cara de boi. Quer ver é granito. Quer ir pro Caesar Park, quer ir pra Dubai, esses trem chique. Simplicidade a gente já tem.

Lula, Bolsonaro e o MST

Essa ideia de que todo fazendeiro é bolsonarista não é bem assim. Eu não tenho nada contra o Lula nem o Bolsonaro, eu só penso no país. Mas eu sou do lado que o que é certo é certo. E o que é errado é errado. O que roubar eu acho que é o errado.

E tem pessoas que não aceitam que, por causa de uma brecha na lei, o Lula pôde ser candidato. Isso, pra muita gente, foi um tapa na cara.

Mas o que pegou muito desses governos petistas foi esse trem dos sem-terra, eles querendo dar terra.

Porque pobre não quer trabalhar, eles querem ganhar. Eles ganham a terra, vendem e vão morar na cidade. É igual esses "bolsa-família". Eles não querem trabalhar. Muita gente apoiou o Bolsonaro porque não sentiu tanta ameaça de invasão.

É igual entrar na sua casa. Você arruma com tanto gosto, você paga os impostos e aí chega alguém e vai morar no seu apartamento? Igual em Cuba? É um pouco revoltante. O medo do povo do agro com o Lula é esse.

"O agro desperta inveja"

Eu tenho dó das pessoas que dizem que a gente só faz desmatar. A gente é obrigado a fazer reserva.

Pensa que você compra um apartamento com quatro quartos, paga pelos quatro quartos e é obrigado a deixar um quarto fechado. Você comprou, pagou imposto, escriturou e não pode entrar naquele quarto.

Assim é com o agro: você compra a fazenda, compra os alqueires e você tem de deixar um pedaço lá —não pode tirar uma árvore, não pode deixar um boi. É a reserva que a gente faz do bolso da gente. Então, o agro preserva.

Mas essas críticas não começaram agora, não. Tem um pouco de tempo. Elas começaram na hora que o pessoal, até os paulistanos, entenderam que o agro tem dinheiro. Que o povo não é tão jeca desse tanto, que não é tão besta, que faz de bobo pra viver.

Esse pessoal começou a ver a riqueza do agro e abriu o olho. O agro desperta inveja, aqui e lá fora.

Luxo e riqueza em Goiânia, capital do agro

"OCÊ É FIO DE QUEM?"

Segunda maior cidade do Centro-Oeste depois de Brasília, Goiânia virou a capital informal do agronegócio. A reputação de centro de excelência em medicina e os 18 shopping centers que brotaram por suas avenidas planejadas atraem compradores da região metropolitana e de estados como Tocantins, Pará e Mato Grosso do Sul. Mas em contraste com seus ares de metrópole, a capital de Goiás guarda hábitos de cidade do interior. Segundo goianienses, a pergunta "ocê é fio de quem?" continua obrigatória em conversas de apresentação.

GRIFES E MAIS GRIFES

Responsável por 40% do PIB do estado, Goiânia é a cidade com o maior número de shoppings por habitante, segundo dados de 2019 da Associação Brasileira de Shopping Centers (Abrasce). No Flamboyant, que reúne lojas como Dolce & Gabanna, Louis Vuitton, Gucci e Bulgari, a clientela abastada atraiu restaurantes famosos de São Paulo, como o japonês Jun Sakamoto e o Pobre Juan, especializado em carnes.

NA BALADA, DE CARRÃO

Diz-se em Goiânia que basta sacudir um pé de pequi para caírem dele dez duplas sertanejas. Lá nasceram ou se criaram músicos como Zezé Di Camargo e Luciano, Jorge e Mateus, Guilherme e Santiago e Gusttavo Lima. Em bares como o Velho Texas, duplas famosas e desconhecidas se apresentam toda noite. Do lado de fora, clientes saltam de seus Dodge Rams, Porsches e BMWs (quanto mais caro o carro, melhor a vaga que ele ganha). Carros, em Goiânia, podem ser chamados de trem, como, aliás, qualquer substantivo. Em geral, todo "trem" vem seguido por uma adjetivação. Diz-se de uma balada boa, por exemplo, que é um "trem bão" ou um "trem que pula".

PORSCHES QUE NEM ÁGUA

No ano passado, a loja da Porsche em Goiânia, aberta em 2019, vendeu 188 carros. O modelo mais vendido da marca custa em torno de R$ 500 mil, mas alguns chegam perto de R$ 2 milhões.

Os milionários e onde habitam

Zé Felipe, Leonardo, Amado Batista, Maiara e Maraísa moram lá. Além dos cantores, também o empresário José Batista Júnior, o Júnior da Friboi, escolheu fincar estacas no Aldeia do Vale, o colossal condomínio de Goiânia com 96 alqueires, 18 lagos, heliponto e hípica, protegido por 11 quilômetros de muros e com mansões avaliadas em até R$ 30 milhões. As fachadas em estilo neoclássico, os arabescos e as colunas que imperavam na década de 90 ultimamente vêm dando lugar a casas de linhas mais sóbrias e o obrigatório apelo sustentável.

Os personagens do novo agro

OS HERDEIROS

Oliver e Tarsila Ferguson, de 20 e 19 anos, estudam agronomia em Rio Verde (a 230 km de Goiânia) e pretendem se dedicar à fazenda comandada pela mãe, Renata Ferguson. Na Santa Candida, a família planta 2 mil hectares de soja e milho. No mês passado, quando a reportagem do UOL visitou o local, Oliver testava drones para usar na pulverização de defensivos —tarefa atualmente feita por aviões. Tarsila, que planejava viver em São Paulo, hoje diz querer ficar em Goiás e continuar o negócio da família. "É uma opção mais segura", afirma. Segundo ela, na sua classe, de 55 alunos, mais da metade é filho de produtores e pretende herdar a atividade dos pais.

A COWGIRL

Josy Ferrari (o sobrenome verdadeiro é Ferreira) nasceu em Mato Grosso do Sul, filha de pai brasileiro e mãe paraguaia, mas mudou-se para Goiás, "a terra do sertanejo", para ser locutora de rodeios e influenciadora digital. Em vídeos no TikTok e no Instagram, mostra suas habilidades equestres, dança ao som de hits sertanejos e desfila seu figurino de cowgirl: bota, chapéu, calça justa e decotão.

A TURMA DA VEUVE CLICQUOT

Em 2008, o economista José Luís Pinheiro trocou São Paulo e o mercado financeiro por Goiânia e o estudo de vinhos —em 2018, chegou a cursar o prestigioso Institute of Master of Wines, na Austrália. Hoje, organiza confrarias em Goiânia para um público majoritariamente formado por mulheres que pagam até R$ 1 mil por mês para degustar os vinhos que ele escolhe e que serão servidos num jantar (o valor da mensalidade não inclui o jantar). Segundo ele, o gosto local se "aperfeiçoou" nos últimos anos, mas, nos restaurantes, o público ainda dá preferência a rótulos "reconhecíveis", como o champagne Veuve Clicquot e o tinto Alma Viva.

MALDIVAS NO VERÃO, COURCHEVEL NO INVERNO

Vaino Duarte, proprietário do salão de beleza Duarte Haircut, diz que o diferencial das mulheres ricas de Goiânia é a preocupação de estarem sempre "impecáveis". Segundo ele, "as goianienses chiques têm o hábito de passar no salão e se produzir até para ir ao shopping." Gostam de viajar para as Maldivas no verão e esquiar em Courchevel no inverno. As que têm filhas levam as meninas bem cedo ao salão. "Tenho clientes de 6 anos que vêm para fazer manicure", diz.

Topo