Uma boneca para Madalena

Após 38 anos, ex-escravizada tem esperança de vida nova nos abraços de Madá e carinho da família 'adotiva'

Thiago Rabelo Colaboração para o UOL, de Patos de Minas (MG) Joel Silva/UOL

Quando começou a trabalhar na casa dos Milagres Rigueira, uma família tradicional de Minas, Madalena Gordiano tinha apenas 8 anos, idade em que crianças ainda brincam de boneca. Não teve tempo para isso. Acordava às 2h para trabalhar e só parava às 20h, comia o que os patrões deixavam para trás. Ao longo de quase quatro décadas, sua servidão foi explorada pelos Milagres Rigueira, primeiro na casa da matriarca Maria das Graças e depois na do filho dela, o professor universitário Dalton César.

Após ser libertada no fim do ano passado de uma condição análoga à escravidão em que viveu 38 anos, Madalena enfim reencontra um pouco da infância perdida.

É a Madá. Eu coloquei meu nome porque ela é a minha filhinha. Ela parece comigo, é uma vida nova

A boneca Madá representa ainda os sonhos de Madalena, que tenta recuperar o tempo perdido. Só que, por trás do olhar puro, do jeito ingênuo e do sorriso de criança, está uma mulher de 47 anos com várias marcas e cicatrizes não fechadas.

Além de um casamento arranjado e uma pensão de R$ 8 mil a que jamais teve direito, mas que, segundo os auditores fiscais do trabalho, custeou os gastos da família Milagres Rigueira, ela foi sentenciada a uma vida de desejos não saciados e de uma solidão silenciosa. Madá, com quem Madalena dorme abraçada todos os dias, é uma companhia que ela jamais teve ao longo da vida.

Ela é moreninha, vestido amarelo e de croché. É igualzinha eu. Acho [bonito ter uma boneca parecida comigo]. Acho sim

Joel Silva/UOL

Vida de solidão

O Natal de 2020 foi o mais especial da vida de Madalena. Comemorado 28 dias após ser libertada, em 27 de novembro, a data foi diferente de tudo que viveu quando estava sob o controle dos antigos patrões. Antes abandonada nas datas festivas, dessa vez não ficou sozinha. Ao lado da assistente social Taís Teófilo e sua família, que a acolheu em Uberaba, ela preparou a árvore de Natal e se sentou à mesa, algo que não lhe era permitido.

"Eu não tinha Natal. Nem à missa eu podia ir. Eles iam para o Natal deles e eu não podia participar. Não podia nem sentar à mesa com eles. Eles almoçavam primeiro, depois eu comia o que sobrava. Sempre o que sobrava".

Conhecida entre os lojistas, Madalena se queixava da alimentação que recebia. "Uma vez, alguém disse que estava gorda, e a Madalena respondeu que ela também estava, mas não sabia o motivo, porque nem direito ela podia comer", afirmou uma comerciante ao UOL, relatando um exemplo de como ela deixava pistas de que não vivia em condições normais na casa da família em que morava.

Quando visitava o centro comercial de Patos de Minas (MG), a preferência era por lojas de roupas femininas e brinquedos infantis. Agora, com roupas novas e de boneca nas mãos, ela tem os dois desejos saciados. Madá, no entanto, representa mais. Ao UOL, Madalena diz que, na nova fase, quer se dedicar aos pequenos.

Eu gostaria de brincar com criança. Não trabalhar. Brincar só. Ver uma criança e brincar

Madalena Gordiano

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Por se sentir mais acolhida e menos desprezada, Madalena sempre se apegou aos filhos dos patrões. A primeira de quem ela se aproximou foi Vanessa Maria Milagres Rigueira, caçula da família liderada por Maria das Graças. Apesar de Madalena ser só nove anos mais velha que Vanessa, a situação das duas nunca foi igual. Vanessa ganhou os melhores brinquedos e frequentou a escola mais tradicional da região, enquanto Madalena foi proibida de ir à escola e só agora tem uma boneca.

Em 2006, quando deixou São Miguel do Anta e Viçosa, Madalena voltou a ter esperanças de um dia ser amada. Ela passou às mãos de Dalton César Milagres Rigueira, filho de Maria das Graças, que a levou a Patos de Minas, onde ele assumiu uma vaga como professor em uma universidade.

Casado com Valdirene Lopes da Costa, Dalton tinha duas filhas: Bianca e Raíssa. Mesmo ciente de que era explorada, Madalena acreditava que a família era grata por ela ter ajudado a criar as crianças. Após o caso vir à tona, áudios vazados na internet mostram que Dalton dizia que Madalena era "como uma irmã para ele". A realidade era outra.

Apesar do apartamento de Dalton ter quatro quartos, Madalena dormia em um cômodo de seis metros quadrados, feito para ser depósito. Sem janela, era lá que ela fazia suas refeições, onde ela se levantava às 2h da manhã e para onde se dirigia às 20h, quando parava de trabalhar.

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Apesar de dizer que considerava Madalena alguém da família, Dalton, quando podia, colocava-a em outro lugar. Em sua tese de doutorado, ele agradeceu pessoas importantes em sua trajetória: professores, amigos, universidades por onde passou e lembrou até mesmo de animais ao dizer "aos suínos, meu eterno respeito". Madalena não foi citada quando o professor universitário listou os nomes dos familiares.

Quando Bianca, a menina que ela ajudou a criar, casou, ela não foi convidada. "Não fui. Não me chamaram. Foi um casamento bonito, chique, com um homem rico na fazenda", lamentou a uma amiga da igreja, que relatou a situação ao UOL.

Assim como Madalena, Elvira Lopes da Costa, mãe de Valdirene, também sofria com o abandono. As duas se apegaram. Debilitada pelo Alzheimer, a idosa era, segundo relatos de vizinhos, mal cuidada e constantemente tinha forte odor de urina. A situação fez com que ela tentasse fugir da família, conforme relata boletim de ocorrência registrado pela Polícia Militar como "abandono de incapaz" no dia 30 de maio de 2018. PMs encontraram Elvira "sozinha e com confusão mental". Um ano após o incidente, a mulher faleceu aos 84 anos.

"Eu tenho certeza de que ela está em um lugar melhor", disse Madalena, segundo uma pessoa da igreja próxima a ela. A morte de Elvira deixou-a ainda mais triste e solitária. "Eu gostava dela. Mas ela faleceu e pronto... ficou só eu lá. Ficou pior. Eu me senti mais sozinha. Tudo era para mim, eu que tinha de fazer."

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Um presente de Natal

A boneca foi dada a Madalena por Humberto Camasmie, auditor-fiscal do trabalho responsável pelo resgate de Madalena e peça importante nesse processo de ressocialização. Ela foi produzida por Fernanda Oliveira e sua mãe Ana Maria Oliveira, duas artesãs localizadas pela reportagem do UOL.

Há três anos, Fernanda recebeu uma encomenda para fazer 20 bonecas para o Natal. A partir daí, não parou mais e, junto com a mãe, abriu a microempresa Santo Fio Amagurimi, em Uberaba. Com produção média de 25 itens por mês, até o último ano os modelos variavam entre personagens infantis, de animes e super-heróis. Quando Fernanda arriscou a fazer bonecas negras, viu que se tornaram as mais procuradas.

Eu comecei a fazer porque vi que não existia no mercado. São sempre as coisas de sempre: Barbie, boneca loira. Mas tem público de todos os jeitos, e criança gosta de variedade. Tem as que pedem porque veem que tem cabelo parecido e se identificam. E tem criança branca que quer porque só tem boneca branca, acha bonita e sabe que a sociedade é diversificada. Isso ajuda a quebrar o preconceito
Fernanda Oliveira, artesã

Se quisesse uma boneca similar a Madá quando criança, Madalena encontraria imensas dificuldades. A fabricação de bonecas negras é atividade recente na história do Brasil, explica Adriana Barbosa, fundadora da Feira Preta, maior evento de cultura e empreendedorismo da cultura negra na América Latina.

Existe um crescimento nos últimos 30 anos por conta do processo de fortalecimento de identificação negra pelos vários movimentos da população. Tudo isso resulta no crescimento da autoestima também. Não é só um negócio. É também um fortalecimento de identidade

Adriana Barbosa, fundadora da Feira Preta

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Nova família

Símbolo de uma nova vida, Madá não é a única companhia de Madalena. Enquanto ainda não pode rever os parentes em São Miguel do Anta, ela vive com a família da assistente social Taís Teófilo.

Na nova casa, Madalena ocupa um quarto amplo, onde dorme em uma cama de casal. Hoje, ela aproveita o dia para conhecer coisas novas, como poder escolher o que quer ver na TV e usar o celular, e brincar com Marcos, de 5 anos, e Manoela, de 2 anos, sobrinhos de Taís.

Se o fato de não ter sido convidada para o casamento de Bianca foi uma das grandes decepções de Madalena, um novo matrimônio surgiu para fechar a cicatriz. Em 15 de janeiro deste ano, Taís se casou com seu companheiro. Madalena não só estava lá, como foi madrinha.

Ela já contou para todo mundo que é minha madrinha e até comprou um vestido longo muito bonito para o meu casamento. Ela disse que foi a primeira vez que comprou roupa de festa. E disse que agora que é madrinha, vai ter de cuidar de mim e puxar a minha orelha
Taís Teófilo, assistente social

Aos poucos, Madalena vai conhecendo novas sensações. Assim como seu antigo quarto, o mundo que aos poucos ela vai deixando para trás também era pequeno. Na última semana, o Brasil se apresentou a ela, que visitou Brasília a convite de Taís.

Foi a primeira viagem na vida dedicada ao lazer, pois a preocupação era outra quando saída de casa enquanto esteve sob custódia da dos Milagres Rigueira. Nos últimos 15 anos em que viveu em Patos de Minas, só deixou a cidade rumo a Uberaba para limpar a casa de Raíssa, filha de Dalton. Antes disso, até chegou a viajar, mas sempre para servir os patrões.

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Após o primeiro passeio, Madalena agora se prepara para reencontrar os familiares após quase duas décadas. No total, são 16 irmãos. Entre eles, há uma preferida.

Você sabe que eu tenho uma gêmea, né? Mas a gente não parece não. Eu fico com dó dela, quero ver ela, mas não posso. Converso com ela, ela chora. Eu gosto muito dela porque nós somos gêmeas. Pegou uma situação parecida com a minha. É a mesma família, né?
Madalena Gordiano

Filomena Gordiano, a irmã gêmea, passou por drama semelhante ao viver por quase três décadas com Maria da Conceição Milagres, irmã da primeira patroa de Madalena. Filomena também não pôde concluir os estudos, sofreu com falta de cuidado e trabalhou boa parte do tempo sem direito trabalhista. Foi remunerada apenas nos últimos anos até deixar a casa em 2010 para morar com o marido.

Além de terem vivido sob controle da família Milagres, as irmãs compartilham outra experiência negativa. Por anos, Madalena evitou sorrir. Não tinha dentes. Mesmo na igreja, onde se sentia mais acolhida, falava com a mão na boca para esconder o problema. Situação semelhante viveu Filomena, que ainda mora em São Miguel.

Ela também não tinha dente não. Mas agora está com os dentes bonitos. Eu fiquei boba. Hoje ela está bem, tem uma menininha bonitinha, minha sobrinha
Madalena Gordiano

Ele só deve reencontrar a irmã após receber a vacina contra a covid-19. Em breve, a boneca Madá terá de dividir os abraços de Madalena com a menininha bonitinha.

Joel Silva/UOL Joel Silva/UOL
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