Fotos de Rebecca

A primeira imagem que fiz de minha filha – e a última

Darrin Zammit Lupi Da Reuters, em De Tal-Qroqq, Malta DARRIN ZAMMIT LUPI/REUTERS

Eu tirei a primeira foto de minha filha, Rebecca, momentos após seu nascimento em 3 de agosto de 2005.

Pouco mais de 15 anos depois, eu tirei a última foto de minha filha, momentos após sua morte, por câncer, em 3 de janeiro de 2021.

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Sou fotojornalista. Era natural que documentasse praticamente cada momento da bela vida de Becs — como minha esposa, Marisa, e eu a chamávamos.

Como a vez em que ela tinha 2 anos e seu rosto se iluminou. Ou a vez em que ela estava no palco dançando, com apenas 12 anos, mas desafiando a gravidade com graça e poesia. Ou a vez em que ela estava brincando em um campo de flores silvestres com nosso cão, Cookie, com um sorriso tão grande quanto o céu.

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Muito, muito mais difícil foi documentar sua doença e morte por uma forma rara e extremamente agressiva de câncer nos ossos.

Como na vez em que ela estava sentada no escuro, recebendo fluidos de forma intravenosa após uma sessão de quimioterapia, tendo seu belo e longo cabelo escuro àquela altura se tornado apenas uma lembrança.

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Quando ela abraçou apertado seu ursinho de pelúcia Snuggles, enquanto dormia no quarto do hospital em meio a uma série terrível de procedimentos que esperávamos que pudessem salvá-la.

E quando sua mãe chorou sobre seu corpo, momentos após a morte de Becs, com as sardas em seu rosto como um símbolo cruel de sua juventude e beleza.

Em setembro do ano passado, a Reuters publicou um ensaio de fotos para a "Wider Image" da luta de nossa família contra a doença de Becs, que se tornou ainda mais difícil em meio à pandemia de coronavírus que atingiu Malta, a ilha onde vivemos. Aquele ensaio terminou com um momento de esperança, quando ela recebeu alta do hospital após meses de um tratamento extenuante.

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Para o primeiro passeio de Becs, poucos dias após a alta, fomos tarde da noite ao canto noroeste da ilha, uma área relativamente escura, para que ela pudesse tentar vislumbrar o cometa Neowise. Apesar da dificuldade para se vê-lo a olho nu, Becs conseguiu com a ajuda da minha câmera e lentes de longo alcance.

E, então, vimos uma estrela cadente. Fizemos um pedido — não há prêmio para quem adivinhar qual foi.

A esperança ainda se mantinha naquela época, algo em que ainda creio piamente, sempre optando por acreditar no melhor cenário.

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Depois de ter alta do hospital em meados de julho, eu realmente acreditei que o pior tinha ficado para trás. Como me enganei e me iludi — talvez estivesse sempre em negação.

Não percebi naquele momento que o motivo para nada parecer estar acontecendo em relação a uma possível opção de tratamento na Inglaterra se devia ao fato de não acreditarem que ela tinha muitas chances, que o câncer iria ressurgir, pois já estava em metástase quando ela foi diagnosticada inicialmente no final de 2019.

Ninguém expôs isso claramente para mim. No dia em que descobrimos que ela estava sofrendo com uma dor considerável — um mês antes de seu primeiro raio-X mostrar que ela tinha um tumor no ombro —, naquele dia, em 2019, já era tarde demais para ela.

Viu o que eu quis dizer? Iludido e em negação, exatamente como sou.

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Apenas dois meses depois da alta médica, tivemos que levar Becs de volta ao hospital. Era um domingo, 27 de setembro. Eu não sabia, mas Becs estava vendo nosso cão Cookie e nossos gatos Zippy e Zorro pela última vez, estava vendo seu quarto pela última vez, estava saindo de casa pela última vez, pois não mais retornaria.

Em 31 de outubro, Becs postou no Facebook:

Um ano... Faz um ano desde que fui diagnosticada com um tipo raro de câncer nos ossos chamado Sarcoma de Ewing. Àquela altura eu não pensei que ainda estaria nesta batalha, mas aqui estou, com mais quimioterapia e mais radioterapia à frente. Honestamente, achei que minha vida já teria voltado ao normal a esta altura. Achei que poderia acompanhar as aulas online de minha casa, como qualquer estudante normal que não está indo à escola. Em vez disso, não me sinto bem para acompanhar nenhuma. Achei que tinha encerrado de vez a quimio e a radioterapia. Mas aqui estou eu, revivendo tudo pelo que passei ao longo do último ano. Há dias em que fico furiosa e assustada, mas também há dias em que me sinto grata por todo o amor e apoio que todos me deram quando mais precisei. Nunca teria conseguido travar esta batalha sem meus amigos, família e até mesmo algumas pessoas que não conheço pessoalmente. Então, apenas quero dizer... OBRIGADA"

Rebecca

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Becs faleceu, pacificamente, sem nenhum sinal de sofrimento, numa manhã de domingo, 3 de janeiro de 2021, às 9h20. Mars — como chamo minha esposa — e eu estávamos ambos com ela.

Becs esteve fortemente sedada ao longo da semana anterior, de modo que estava sem dor e inconsciente, segundo os médicos. O quadro dela parece ter piorado tarde da noite da véspera de Natal. Foi a pior noite de todas — nós passamos acordados. Ela estava tão mal no dia de Natal que não esperava que ela sobreviveria até o final do dia, nesse dia, o favorito dela no ano. Não teria sido um tipo horrível de poesia?

Ela acordou por algumas poucas horas tarde daquela noite, terrivelmente desapontada por ter perdido o Natal, mas acreditando que o celebraria assim que melhorasse e voltasse para casa. Mars prometeu a ela que ela voltaria para casa, mas Becs respondeu. "Mamãe, não aumente demais minhas esperanças."

Nas duas noites seguintes, ela de novo despertou brevemente, para surpresa dos médicos, e pudemos conversar, compartilhando mais alguns momentos de uma preciosidade sem medidas.

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Depois disso, ela mergulhou em um coma profundo e nunca retomou a consciência, mas mesmo assim continuávamos conversando com ela. Eu li muito para ela, concluí o livro do Harry Potter que estava lendo para ela e dei início ao seguinte da série, segurando a mão dela.

Dizem que a audição é a última coisa que se vai, de modo que era importantíssimo que ela continuasse ouvindo nossas vozes.

No final, sua respiração foi se tornando cada vez mais rasa, até virar leves suspiros com intervalos cada vez mais longos. Até que pararam.

Eu continuei falando com ela, convencido de que ela podia me ouvir e me entender melhor do que antes, dizendo a ela para que não tivesse medo.

Eu lhe disse que continuaria segurando a mão dela enquanto pudesse, mas que agora encontraria outros para segurar sua mão, e que, quando quer que se sentisse pronta, ela deveria ir com eles. Continuei olhando para o teto — pessoas que morreram e foram ressuscitadas no hospital não disseram que assistiam a tudo de perto do teto? Será que Becs estava assistindo a tudo ali? Será que estava confusa ou sabia exatamente o que estava acontecendo, calma e em paz?

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Todos os enfermeiros vieram ao quarto e permaneceram ao redor do leito dela em silêncio respeitoso. Não sei ao certo se entendiam o que eu estava fazendo, por que motivo eu sussurrava para ela enquanto não olhava para seu corpo, mas eu não me importei.

A notícia do falecimento de Becs se espalhou rapidamente. Houve muita cobertura da mídia. O arcebispo de Malta, Charles Scicluna, foi informado durante uma missa na principal catedral do país e anunciou o falecimento dela durante a transmissão ao vivo pela TV. Ele estava muito emocionado, e me disseram que corriam lágrimas de seus olhos. Ele posteriormente entrou em contato conosco e perguntou se poderia realizar a missa fúnebre.

Foram autorizadas apenas 180 pessoas na igreja devido às restrições em decorrência da covid-19. Normalmente, ela poderia receber confortavelmente 600. Mesmo se fossem tempos normais, ela ficaria lotada.

Decidimos transmitir a missa ao vivo, por streaming, para que as pessoas pudessem participar. Não foi fácil escolher as 180, e as contatamos individualmente. Mas a distração nos fez bem. São nos momentos tranquilos, solitários, como quando estou no chuveiro, que tudo me atinge mais duramente.

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Após o funeral, Becs foi levada à Inglaterra para a cremação. Mars e eu concordamos que não suportaríamos a ideia, ou a visão, dela em um caixão de madeira sendo enterrado. Então, finalmente, a levei de volta para casa, como Mars prometeu que faríamos — apedar de não ter sido da forma como Becs entendeu na ocasião.

Todos os dias, em todo momento em que penso nela (e são muitos), procuro desesperadamente pelos sinais que as pessoas disseram com que nos depararíamos, assim como estou desesperado para sonhar com ela, mas isso ainda não ocorreu. Talvez esteja tentando demais e precise apenas deixar que as coisas ocorram naturalmente, de modo que as reconhecerei quando ocorrerem.

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Nos meses que antecederam sua morte, Becs jogava um jogo em seu iPhone, "Sky Children of the Light". Ela queria que eu jogasse com ela, então troquei meu iPhone antigo por um modelo mais novo. Adorei o jogo e adorei jogá-lo com ela. Enquanto nossos avatares viajavam juntos, atravessando nuvens e paisagens em uma variedade de buscas, em reinos diferentes que posteriormente descobri que simbolizavam diferentes estágios da vida, do nascimento até a morte e além, ela foi minha guia, minha mentora, minha professora. Ela (ou melhor, o avatar dela) segurava minha mão e me levava a toda parte, que era o que eu queria.

Por toda sua vida, tentei guiá-la e ensiná-la, e agora ela estava fazendo o mesmo comigo. Não sei dizer se ela via aquele jogo como uma espécie de alegoria de sua própria vida, mesmo que apenas em um nível inconsciente.

A única parte do jogo que ela não me mostrou foi aquela em que seu personagem tem que morrer para poder seguir adiante. Ela disse que eu não estava pronto. Ela sabia que morreria em breve? Certamente ela nunca falou e nem perguntou a respeito. Nós decidimos desde cedo que não diríamos a ela a menos que ela perguntasse diretamente.

Como você deve dar uma notícia dessas à sua filha?

Para mim, o jogo se transformou em uma metáfora sobre o que aconteceria comigo após minha morte — ela estaria aguardando por mim, para segurar minha mão, servir como minha guia e guardiã, para me levar para onde devo ir.

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