A vida numa balsa de garimpo

Balsas ilegais no rio Madeira, no Amazonas, extraem até R$ 130 mil por mês em ouro

Sam Cowie Colaboração para a Repórter Brasil Avener Prado/Repórter Brasil

Seis dias por semana, Alzira, 48 anos, prepara café da manhã, merenda, almoço e jantar para a tripulação de seis homens a bordo de uma balsa de dragagem que cruza o rio Madeira garimpando ilegalmente por ouro. Aos domingos, quando a arrecadação da semana é contabilizada e os salários pagos, ela volta para casa em Humaitá, no sul do Amazonas.

"Você ganha muito melhor [aqui] do que na cidade", disse ela à Repórter Brasil enquanto preparava um café na cozinha que fica no andar de cima da balsa. Alzira começou a trabalhar como cozinheira nesta embarcação ilegal há três anos. Hoje, ganha um salário fixo de R$ 5,5 mil por mês — um aumento de 1.000% desde que abandonou o trabalho de doméstica na cidade, quando ganhava R$ 500 mensais.

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A cozinheira é a única trabalhadora da balsa com salário fixo. Os garimpeiros trabalham como "porcentistas": eles recebem, em dinheiro, uma parte do ouro retirado a cada semana. O dono da balsa fica com a maior parte. Geralmente, como é o caso aqui, o dono — que assume os custos dos insumos (diesel, mercúrio e alimentação) — fica com 70% do lucro e os trabalhadores dividem os 30% que sobram, a forma de pagamento mais comum em garimpos ilegais. Para Alzira, porém, a alta remuneração não vem sem riscos.

O vento, a chuva. É muito arriscado. Ontem foi assustador: a balsa ao nosso lado quase alagou."

Não foi a primeira vez. Esse tipo de acidente é comum. Há um mês, conta, "o vento entrou" arrancou o telhado da balsa "como [se fosse] uma lata de sardinhas".

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Em novembro de 2020, a Repórter Brasil visitou a balsa onde ela trabalha, apenas uma entre as cerca de 20 outras semelhantes enfileiradas no rio, lançando vapores escuros de diesel e resíduos de mercúrio nas águas barrentas do Madeira.

Acredita-se que possivelmente centenas de outras embarcações ilegais estejam dragando ao longo do rio Madeira — a segunda hidrovia mais importante da região norte do Brasil. A maioria das embarcações opera ilegalmente. Muitas empregando ribeirinhos na região, frequentemente em condições arriscadas e precárias.

Um cenário que não combina com as cifras bilionárias do setor. Apenas no ano passado, a exportação de ouro no Brasil movimentou US$ 4,9 bilhões (cerca de R$ 25 bilhões) — dos quais, estima-se, 17% tenham origem ilegal, segundo recente estudo do Instituto Escolhas.

"O grande problema no caso do garimpo no rio Madeira é a captação das economias locais por essa atividade ilícita", diz Ana Carolina Haliuc Bragança, procuradora da República no Amazonas.

Mas não só. A questão ambiental é igualmente grave: "No caso do rio Madeira, a hipótese é que há um acúmulo de mercúrio no leito do rio e ele vai sendo incorporado à cadeia alimentar", afirma Bragança. Os peixes terminam ingerindo o metal tóxico, que chega ao corpo humano por meio da alimentação, apresentando riscos à saúde.

"É cansativo, mas você se acostuma com tudo"

O cunhado da Alzira é o dono da balsa em que ela trabalha, avaliada em torno de R$ 90 mil. No andar de baixo, os membros da equipe trabalham entre máquinas e motores que ficam zumbindo e batendo sem pausa. O barulho é tanto que é difícil falar sem gritar. Há muita fumaça, e o cheiro de diesel é espesso no ar.

Em equipes de quatro pessoas, os homens trabalham girando um objeto em forma de roda com quatro cabos, conhecido como "sarinho", em turnos de 6 horas cada um, dia e noite.

A maioria dos sistemas era operada por rapazes sem camisa, outros por homens na casa dos 40 ou 50 anos, alguns dos quais são os proprietários das balsas. A maioria usa jóias de ouro.

"É muito cansativo", diz nosso guia, um jovem magro de 20 e poucos anos, que opera um barco e que já serviu no Exército. "Mas você se acostuma com o barulho, com tudo."

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Marcos, 44 anos, diz ser de uma família de comerciantes da cidade e afirmou que em uma semana boa chega a ganhar até R$ 3 mil com o seu percentual. Em uma semana ruim, o valor cai para R$ 1,3 mil.

Ele conta que é um ex-viciado em drogas. Mostra uma cicatriz na perna que ele ganhou trabalhando na balsa. "Isso não vai te salvar", diz ele, apontando para a máscara de proteção contra a covid usada pelo repórter. "Só a fé pode salvar as pessoas."

O "sarinho" controla o fluxo de água e o sedimento que é sugado por uma chupeta. A mistura cai em um tapete que recolhe as partículas de ouro. A cada vinte horas, o carpete é limpo e esvaziado; as partículas de ouro são deixadas em um balde.

O mercúrio é adicionado ao balde e, em seguida, filtrado com uma camiseta. Quando a amálgama está completa, o excesso de mercúrio é queimado. O restante — a parte que não pode ser recuperada — é lançado no rio.

Se as condições são boas, a balsa pode puxar entre 80g e 100g de ouro por semana, o que resulta em R$ 31.800 semanais (ou quase R$ 130 mil por mês). Os gastos com insumos, entretanto, são altos. Só os de diesel giram em torno de R$ 3,5 mil por semana.

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"Quando começar a ficar fraco, a gente vai para outro canto", diz um dos operadores.

No entanto, devido à natureza ilegal da atividade, o ouro vendido sem documentos geralmente é comercializado por valor inferior em até 20%. Depois disso, ele é "esquentado", ou seja, legalizado por meio de fraude.

A maior parte desse ouro ilegal, segundo fontes locais, é vendida em Porto Velho, na vizinha Rondônia, a cerca de duas horas de carro. É também de onde vem grande parte do equipamento, especialmente os motores para as balsas de garimpo.

"Os caras de Rondônia ajudam muito", diz Alzira. Neste ano, o governador de Rondônia, Coronel Marcos Rocha, publicou um decreto que regulamenta o garimpo nos rios do estado.

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Pandemia e crise social

Um mês depois de o vento arrancar o telhado de madeira e alumínio da balsa, Alzira conta que, agora, está tudo consertado. "Mas chuva molhou documentos, colchões, tudo". Além da cozinha, o deck superior também tem quartos com camas e uma televisão.

O filho adolescente de Alzira — um de seus seis filhos — está dormindo numa rede com um boné cobrindo o rosto. Na época em que estivemos na balsa, sua escola estava fechada por causa da pandemia do novo coronavírus.

"As aulas estão paradas... Ele não gostava das aulas online", conta. Dois de seus outros filhos também trabalham com garimpo.

Alzira, porém, planeja deixar esse trabalho de cozinheira em breve. Do dinheiro que economizou, ela usou R$ 40 mil para montar uma pequena balsa para o marido, que atualmente trabalha como "porcentista" em outra embarcação.

Mas enquanto ela pretende sair, há uma extensa fila de mulheres querendo trabalhar como cozinheiras no garimpo, que ficou ainda mais longa diante dos altos índices de desemprego deflagrados na pandemia.

Há uma crise social que precisa ser destravada. Mas o garimpo é uma atividade que, em termos ambientais, é muito destrutiva pro rio. E, do ponto de vista social, é uma atividade que gera muita violência, prostituição, tráfico de drogas."
Ricardo Gilson da Costa Silva, geógrafo da Universidade Federal de Rondônia

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