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Sob pressão da indústria, Anvisa discute mudança de modelo de rótulos de alimentos no país

João Peres Colaboração para o UOL, em São Paulo Arte UOL

O ano caminha veloz. Mas esse tempo transcorrido foi insuficiente para que a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) avançasse no debate sobre um novo sistema para rótulos de alimentos.

Em maio de 2018, a diretoria da agência aprovou um relatório no qual se manifestava a favor de alertas para o excesso de sal, açúcar e gorduras saturadas nas embalagens. Os modelos criados mundo afora são variados, mas têm esse propósito em comum: comunicar sobre o excesso de nutrientes-chave.

Um dos modelos possíveis é com octógonos pretos similares a placas de trânsito --o formato foi implementado no Chile em 2016 e, desde então, foi adotado, com variações, por Peru, Uruguai, Canadá e Israel.

A Anvisa aventou ainda a possibilidade de proibir que produtos com advertências façam alegações de benefícios à saúde. Um cereal com excesso de açúcar não poderia colocar no rótulo nenhuma informação sobre vitaminas e minerais, por exemplo.

No Chile, além dessa restrição, produtos com selos não podem fazer publicidade na TV entre as 6h e as 22h nem se valer de mascotes e personagens nas embalagens.

Ao assumir o cargo, em setembro, o diretor-presidente da Anvisa, o ex-deputado William Dib (PSDB), deu declarações contrárias a esse modelo. Agora, existe dúvida até mesmo se a agência irá determinar a adoção de algum sistema ou se deixará a cargo das empresas definir o que pretendem colocar na parte frontal dos produtos.

A assessoria de comunicação da Anvisa diz que o diretor não dará entrevistas sobre o assunto enquanto não houver uma definição. Por duas vezes, porém, ele esteve em eventos promovidos pela indústria e comentou o assunto. Já o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, defendeu recentemente proposta semelhante à da indústria.

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Por que isso importa?

Os índices de sobrepeso e obesidade explodiram nas últimas décadas e, com eles, os casos de doenças crônicas não transmissíveis (diabetes, hipertensão e câncer, entre outros), que respondem pela maior parte das mortes no mundo todo.

A OMS (Organização Mundial de Saúde) sugeriu aos países que adotassem uma agenda regulatória para enfrentar essa epidemia.

Entre as medidas propostas, estão os sistemas de rotulagem que visam simplificar a informação fornecida ao consumidor. Restringir a publicidade de alimentos não saudáveis e aumentar impostos são outras duas estratégias que vêm sendo adotadas.

Que modelos estão em jogo?

Há dezenas de modelos possíveis, mas, no caso brasileiro, dois principais vêm sendo estudados. De um lado, a Associação Brasileira das Indústrias de Alimentação defende um semáforo que exibe as cores verde, amarelo e vermelho para os mesmos nutrientes-chaves.

De outro, alertas inspirados no caso chileno são defendidos pela Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, que reúne cerca de 40 organizações da sociedade civil, como Greenpeace, Associação Brasileira de Saúde Coletiva, Conselho Federal de Nutricionistas e Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor. A Organização Pan-Americana de Saúde também se manifesta em favor dessas advertências.

Em que pé estamos?

No começo de abril, a Anvisa divulgou um relatório que consolida as contribuições apresentadas durante a tomada pública de subsídios, ou seja, a primeira fase de consulta pública.

A maior parte das 3.579 pessoas apoia a realização de mudanças no atual sistema de rotulagem, em especial a adoção de alertas na parte frontal das embalagens.

O cronograma da Anvisa prevê que até agosto sejam realizados debates técnicos para definir questões pendentes (layout, perfil de nutrientes, abrangência e critérios de exclusão).

Em setembro, deve ser publicado um novo relatório e iniciada uma nova e derradeira consulta pública.

Depois disso as informações serão consolidadas e será redigida uma resolução final a ser votada pela diretoria colegiada (ainda sem previsão de prazo).

O que diz a indústria?

A Abia (Associação Brasileira das Indústrias de Alimentação) argumenta que os semáforos são facilmente compreendidos pela população e que os alertas causam medo. Esse elemento teria aparecido em uma pesquisa Ibope encomendada pela própria associação e em sondagens qualitativas.

"Traz a informação com simplicidade e clareza e, principalmente, usa as cores do semáforo, que são uma linguagem universal. Quem tem criança em casa sabe que você para o carro no semáforo e alguém te avisa", disse o presidente da Abia, João Dornellas, durante evento.

O que dizem estudos científicos?

A maior parte desses sistemas foi criada há pouco tempo e tem adesão voluntária, de modo que é cedo para concluir que se trata de uma solução definitiva na luta contra obesidade e doenças crônicas.

O sistema chileno foi avaliado sozinho e comparado a outros sistemas, em especial o semáforo.

Gastón Ares, integrante do Centro de Investigação Básica em Psicologia da Universidade da República, no Uruguai, foi responsável por realizar o maior número de pesquisas sobre os alertas e quem mais promoveu comparações entre eles.

"O importante a concluir é que em todos os casos o sistema de advertências é melhor ou igual que o semáforo, mas nunca, em nenhum estudo, podemos dizer que o semáforo é melhor que o de advertências", diz ele.

Ana Carolina Fernandes, professora do Departamento de Nutrição da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), realizou uma série de pesquisas qualitativas para medir a percepção e a compreensão dos consumidores quanto aos diferentes modelos.

"Foi quase unânime a preferência pelos alertas. Mesmo entre pessoas que preferiam o semáforo, nas horas em que tinham de escolher um produto, não conseguiam chegar a uma conclusão só com base no semáforo", afirma.

Impactos

A Abia apresentou um estudo que estima em R$ 100 bilhões ao ano o impacto negativo em caso de adoção dos alertas, o que equivale a quase a metade do faturamento das empresas do setor.

Projeta-se ainda um fechamento de quase 2 milhões de postos de trabalho --808 mil no setor agropecuário, correspondendo a mais de 50% das vagas hoje existentes.

Nos relatórios financeiros das principais empresas do Chile nos últimos dois anos não se encontram informações sobre perdas provocadas pelos alertas. Algumas corporações, inclusive, relataram haver ganhos trazidos pela lei.

Os relatórios mensais da Sofofa, principal organização empresarial do Chile, têm destacado que a indústria de alimentos e bebidas vem comandando as altas nos índices de produção e vendas.

Em um balanço apresentado em outubro passado, a associação enfatiza que o setor liderou as vendas nos 12 meses anteriores.

Na prática

Tão relevante quanto o design é o perfil de nutrientes adotado, ou seja, os pontos a partir dos quais um produto será considerado "Alto em".

O Idec fez um banco de dados com 11 mil produtos hoje disponíveis no mercado e simulou quantos apresentariam excesso de ao menos um nutriente.

Dependendo do parâmetro, a informação varia. Segundo a Opas, cerca de 60% dos produtos teriam ao menos um alerta.

No modelo mais rigoroso da Anvisa, 53%. Já usando o perfil de nutrientes da indústria, 18%.

Em alguns grupos de produtos, a quase totalidade receberia ao menos um alerta. São os casos de macarrões instantâneos, salgadinhos, biscoitos e barras de cereais.

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