A nova encruzilhada

Democracia viveu euforia com queda do muro de Berlim. Após 30 anos, uma outra crise se avizinha

Jamil Chade Colaboração para o UOL, em Genebra (Suíça) Guilherme Zamarioli/UOL

Quando o muro de Berlim caiu no dia 9 de novembro de 1989, não foram poucos os que bradaram a vitória da democracia liberal. Alguns chegaram até mesmo a falar do fim da história diante do colapso em série de diversos regimes comunistas pelo Leste Europeu.

A transformação dos governos que faziam parte da Cortina de Ferro levou teóricos como Samuel Huntington a falar da 3ª onda de democratização no mundo - depois de uma primeira onda entre 1826 e 1926 e uma segunda onda ao término da Segunda Guerra Mundial.

Mas 30 anos depois da queda do muro e de um dos acontecimentos mais importantes do século 20, a história da uma nova lição ao mundo: não há nada de inevitável na construção da democracia e seus valores vivem uma encruzilhada.

Tampouco existem garantias de sobrevivência da arquitetura internacional construída ao final da Guerra Fria e que abriria um novo capítulo na história da humanidade. Nas principais capitais do mundo, nas salas da ONU e em encontros secretos, redesenha-se a diplomacia internacional com novas regras, novas alianças e novas ameaças.

30 anos depois dos eventos em Berlim, a promessa de que muros não seriam mais erguidos foi ignorada. O debate sobre o valor inquestionável da liberdade foi reaberto e a promessa de que o capitalismo garantiria a felicidade de todos foi amplamente desmentida.

Neste ano, o aniversário da queda do muro ocorre em meio a um profundo mal-estar e uma real crise de confiança. Valores liberais que derrotaram o comunismo hoje estão sob a ameaça de uma onda populista, enquanto a desconfiança de cidadãos sobre suas instituições atingiu um nível inédito.

Autor do best-seller Como as Democracias Morrem (Zahar), o professor da Universidade de Harvard, Steven Levitsky, alerta que a comemoração da queda do muro é uma ocasião para a reflexão. "A lição desses 30 anos é clara: as democracias são sempre vulneráveis. Temos de estar sempre atentos e talvez tenhamos nos esquecido disso em algum momento", disse o americano em entrevista ao UOL.

ANDREAS VON LINTEL/AFP ANDREAS VON LINTEL/AFP

Desigualdade minou globalização

O clima, de fato, é muito diferente de outras comemorações. O otimismo deu lugar a angústias. Ainda que todos os indicadores apontem para melhores condições de vida nos países que derrubaram o comunismo, o que se viu também foi uma explosão inédita da desigualdade social e da concentração de renda. A globalização abriu incertezas inéditas e, de uma maneira planejada, grupos aproveitaram a crise de confiança para chegar ao poder.

Numa reviravolta da história, algumas das liberdades conquistadas em 1989 estão sob ataque e líderes como Orban, Trump, Bolsonaro, Bibi ou Duterte promovem abertamente valores antidemocráticos.

Numa pesquisa de opinião publicada nesta semana, a entidade Open Society constatou que a maioria dos entrevistados no Leste Europeu acredita que a democracia está ameaçada. A taxa chega a 61% na Eslováquia e 58% na Hungria. Os mais velhos são os mais pessimistas e 81% daqueles que nasceram antes de 1946 na Bulgária temem pelo que pode ocorrer. Na Polônia, a taxa é de 63%.

Há também uma enorme desconfiança sobre as eleições. Na Polônia, apenas 34% da população estima que as votações são realmente livres e justas. Na Hungria, que liderou um avanço para silenciar órgãos de imprensa mais críticos, mais de 50% da população questiona a eleição.

Outra constatação: o medo de se expressar livremente. Dois terços dos húngaros responderam que temem consequências negativas se criticarem o governo publicamente.

Peter Kohalmi / AFP Peter Kohalmi / AFP

Analisando os erros

Por diversos países do Leste Europeu e mesmo no restante do Ocidental, a data dos 30 anos está sendo marcada por uma pergunta que teima a surgir em todos os debates: onde erramos? Timothy Garton Ash, historiador e jornalista, acredita que o erro não foi o de comemorar a queda do muro. Mas o de achar que a democracia liberal estava garantida depois daqueles eventos.

Nos últimos anos, o mundo viu como a Hungria, Polônia, República Tcheca e outros ex-comunistas que encontraram a liberdade há 30 anos voltar a ver suas democracias minadas. Mas, desta vez, sem tanques nas ruas.

O exemplo mais claro é o de Viktor Orban, classificado como Levitsky como o "autocrata mais sofisticado do século 21". Se há 30 anos ele era um dos jovens que liderou os ataques contra o comunismo, hoje seus atos causam calafrios entre os líderes europeus.

No auge de sua popularidade, ele alertaria que o "melhor imigrante é aquele que fica em seu país" e alertou que "democracias liberais não podem se manter competitivas globalmente".

Orban transformou a Hungria em um regime assustador e sem que a maioria da população notasse. Eles não fechou o parlamento, ele não prendeu pessoas. Nunca houve repressão. Tem suas mãos limpas e meios sofisticados", apontou o acadêmico. "O que ele fez foi atuar de forma inteligente e apelar ao nacionalismo. Foi um coquetel perigoso.
Steven Levitsky, professor e escritor

Mas uma situação preocupante também é registrada na Polônia, onde a direita populista continua com força no poder e que levou até mesmo Donald Tusk, presidente do Conselho Europeu, a apelar aos poloneses que resgatem o sentido de resistência do movimento Solidariedade, em Gdansk.

Attila KISBENEDEK / AFP Attila KISBENEDEK / AFP

Xenofobia volta a assombrar

Nos territórios alemães que faziam parte do bloco comunista, o apoio ao partido xenófobo Alternativa para a Alemanha (AfD) ganha força, numa demonstração do mal-estar. Nunca a percepção sobre os ganhos da reunificação da Alemanha atingiu uma taxa tão baixa como hoje.

Uma pesquisa de opinião realizada pela Infratest Dimap, nesta semana, revelou que 60% da população das cidades que faziam parte da Alemanha do Leste consideram que tiveram ganhos com o fim da divisão no país. A taxa era de 67% em 2009.

Para Levitsky, um dos erros dos partidos de centro-esquerda e centro-direita foi achar que não precisavam mais do elemento da identidade. "As pessoas precisam de algum tipo de sentimento de pertencer e não apenas a liberdade individual", explicou. "Liberais de esquerda e direita se esqueceram disso. Negligenciaram a nação, a comunidade. E foi nesse aspecto que as forças iliberais prosperaram", disse.

O cientista político americano deixa claro ainda que os deslizes não se limitam ao Leste Europeu e nem à extrema-direita. Basta ver, por exemplo, os casos da Nicarágua ou da Venezuela. No Brasil, ele cita o "perigo" que representa Jair Bolsonaro, seus filhos e aliados para o enfraquecimento da democracia. Mas constata que a maior proteção às instituições brasileiras vem do fato de Bolsonaro ser um "líder inapto".

Walterson Rosa/Folhapress Walterson Rosa/Folhapress

Bem-estar social desmoronou

Seja qual for a ideologia desses populistas, políticos e acadêmicos admitem que parte da crise de confiança em relação à democracia está intimamente relacionada com o colapso dos mercados em 2008 e o desmonte do estado do bem-estar social.

Na base da democracia, um elemento central é a relação entre as liberdades políticas e a promessa de que o sistema dará ao cidadão o poder para ele tenha seu destino em suas mãos. Nessa arquitetura, porém, não se previa a explosão da desigualdade social e como tal realidade abalaria essa promessa de controlar o destino.

Os dados deixam claro que, nos últimos 30 anos, foram registrados saltos de mais de 700% de crescimento do PIB polonês e de melhorias até na expectativa de vida de milhões de pessoas. Mas um aspecto ficou negligenciado: a disparidade entre os mais ricos e aqueles que não fariam parte do grupo de "vencedores" da globalização e da abertura de fronteiras.

Levitsky não descarta que um dos motivos para a chegada ao poder de populistas é o fato de que parte dos partidos tradicionais "viraram suas costas para o povo e abraçaram a globalização". "Ficou claro que eles não representavam todo o eleitorado e muitos não se sentiram representados. O resultado foi a eleição de Trump, o Brexit, etc", disse.

"Outro erro foi o de achar que o liberalismo era suficiente. Mas esqueceram da questão da distribuição e desigualdade", explicou.

JANEK SKARZYNSKI/AFP JANEK SKARZYNSKI/AFP

A própria chegada ao poder de Orban tem uma relação direta com a crise econômica de 2008. Naqueles anos, o então primeiro-ministro Ferenc Gyurcsány admitiu que ele havia mentido ao povo sobre as medidas de austeridade impostas. Entre 2010, Orban venceria a eleição.

A OCDE também chamou a atenção para o impacto da desigualdade na saúde da democracia. "A fronteira sócioeconômica tem se aprofundado na Europa nas últimas décadas e se intensificou diante da crise financeira global", afirmou, num documento de 2018. Para a entidade, não existem dúvidas de que a desigualdade mina a confiança nas instituições e alimentam instabilidade social e política.

Os dados de 2018 da organização são claros: nos anos 80, a média de renda dos 10% mais ricos da sociedade era sete vezes superior aos 10% mais pobres. Hoje, essa diferença é de quase dez vezes.

Não é por acaso que, entre 2007 e 2015, 3,4 milhões de romenos deixaram o seu país. 46% eram jovens. Na Polônia, o êxodo foi de 2 milhões de cidadãos. Os dados também revelam que o Leste continua mais pobre que a Europa Ocidental. Das 500 maiores fortunas da Alemanha, por exemplo, apenas 21 delas estão nas regiões que faziam parte da Alemanha Oriental. Das 20 cidades mais ricas, 19 estão no lado ocidental.

Esse não é um segredo dentro das instituições da UE. Em seus informes internos, o bloco aponta que "a distribuição do rendimento e da riqueza associada à globalização e ao desenvolvimento do sistema de mercado resultaram numa mudança de propriedade, na polarização da riqueza, num grande aumento das desigualdades e também no aumento da pobreza".

Joseph Stigliz, vencedor do prêmio Nobel de Economia, também alertou nesta semana que o mundo vive "as consequências políticas da grande decepção" com os resultados gerados pelo neoliberalismo que tomou conta do mundo a partir dos anos 90. "Hoje, estamos retrocedendo de uma ordem global liberal, com base em regras, com líderes autocráticos e demagogos liderando países que contem mais da metade da população mundial", escreveu. "O neoliberalismo minou a democracia", completou.

Ralph Orlowski/Reuters Ralph Orlowski/Reuters

Geração Z reage

Apesar do gosto amargo das comemorações deste fim de semana, em Berlim, as pesquisas também revelam que uma tendência paralela começa a ganhar força: a do espírito da dissidência e do combate contra ameaças à liberdade.

No últimos meses, milhares de pessoas se uniram em protestos contra governos na Eslováquia, República Tcheca, Romênia, Polônia ou Bulgária. Extrapolando as fronteiras da Europa, algo similar foi visto no Líbano, Bolívia, Equador e Chile.

Mesmo na Hungria, epicentro dos valores iliberais, o partido de Orban, Fidesz, perdeu as eleições na capital Budapeste.

A esperança é de que venha justamente do Leste Europeu uma nova onda de dissidentes que poderiam frear o populismo e espalhar a mensagem de que há como salvar as democracias.

De acordo com o levantamento da Open Society, a sociedade civil organizada tem ganhado credibilidade e força. E não é por acaso que governos populistas passaram a colocar as ongs como ameaças à segurança nacional e os qualificando de agentes externos.

Outra constatação do levantamento é de que a Geração Z - compostos por pessoas já nascidas na era digital -, é especialmente "avant-garde" no que se refere à luta por seus direitos. Com jovens que entraram em uma idade madura depois da recessão de 2008, esse grupo exibe forte capacidade para se mobilizar, são confiantes sobre sua força para influenciar o cenário político e encamparam bandeiras de justiça social.

Das ruas, das redes sociais e de uma nova geração, o Leste Europeu talvez esteja apontando, uma vez mais, para uma velha lição da história: não há nada que não seja irreversível.

Levitsky não deixa de manter as esperanças. Segundo ele, o mundo está mais democrático hoje que em 1989. "Claro. Temos nuvens negras se aproximando e há motivo para se preocupar. Mas o jogo ainda não acabou" completou.

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