Em nome do filho

Após mãe investigar morte do seu primogênito, PM é indiciado por homicídio doloso triplamente qualificado

Luís Adorno Do UOL, em São Paulo 08.mai.2019 - Simon Plestenjak/UOL

Na noite de 14 de janeiro de 2017, o estoquista Peterson Silva de Oliveira, 18, foi morto com um tiro na nuca, no Jardim São Luiz, zona sul da capital paulista, enquanto policiais militares dispersavam jovens que estavam em uma festa. O tiro que atingiu o jovem foi disparado por um dos PMs.

Testemunhas que estavam no local foram ouvidas pela Polícia Civil e contaram a mesma versão: os policiais dispararam bombas de efeito moral contra as pessoas, para a dispersão, dirigiram a viatura em alta velocidade e dispararam um único tiro. Após o barulho, os jovens correram e houve o segundo disparo, atingindo Peterson.

Os policiais militares dizem, no inquérito, que atiraram porque Peterson atirou contra eles primeiro. Segundo todas as testemunhas, a versão policial é falsa. Um PM foi indiciado por homicídio doloso triplamente qualificado (com intenção de matar e com três agravantes que podem aumentar a pena).

Em nota, a SSP (Secretaria da Segurança Pública) informou que o inquérito policial, em caráter sigiloso, encontra-se em fase final de investigação. "Após análise de diversos elementos, como depoimentos de testemunhas e laudos periciais, a autoridade policial determinou pelo indiciamento do policial militar envolvido na ocorrência por homicídio qualificado."

Para que as autoridades chegasse à essa conclusão, a mãe de Peterson, Tatiana Lima e Silva, 39, teve de fazer uma investigação paralela. Em depoimento ao UOL, ela relata como buscou provar, por iniciativa própria, a inocência do filho.

08.mai.2019 - Tatiana Lima e Silva, 39, mãe de Peterson Silva de Oliveira, morto em janeiro de 2017 - Simon Plestenjak/UOL
08.mai.2019 - Peterson Silva de Oliveira, vestido de Batman, quando era criança - Simon Plestenjak/UOL

Filho mais velho

"Foi uma gravidez bem tranquila. Ele sempre foi uma criança bem-vinda, a gente queria muito ele, desde o começo. E aí depois vieram os irmãos. Eu era casada com o pai dele, mas depois que ele nasceu, a gente se separou. Ele simplesmente saiu de casa e eu fiquei sozinha com o Peterson. Ele tinha 2 anos de idade. Ele sumiu no mundo e nunca mais o vi. E eu fui criar. Fazer o papel de mãe e de pai.

Peterson e Richard são filhos do mesmo pai. O João Pedro, não. O Peterson sempre foi meu... Às vezes, o Richard fala para mim: 'mãe, você sempre preferiu o Peterson'. Mas a questão não era essa. A questão é que ele foi o mais velho, o primeiro, começou a trabalhar mais cedo, com 15 anos, para me ajudar, porque ele via as dificuldades que a gente tinha em casa. Sempre foi uma pessoa bem responsável.

A gente morava em Jundiaí. Tive alguns relacionamentos que não deram certo e, logo em seguida, viemos para São Paulo. Ele tinha 8 anos. Ele sempre foi mais envergonhado, era muito retraído. Depois que ele ficou adolescente que começou a se soltar. No começo, ele não tinha muitos amigos, ficava mais dentro de casa. Aí, depois, cresceu, começou a arrumar namoradas, aí gostava de sair, gostava de dançar.

Por eu ter criado sozinha, eu dou graças a Deus para poder falar que ele era tranquilo. Porque sempre foi um filho exemplar para mim."

08.mai.2019 - Carteira de trabalho de Peterson havia sido assinada pouco antes de ele ser morto - Simon Plestenjak/UOL

O trabalho e os sonhos

"Ele trabalhava no churrasquinho, trabalhava de vender coisas no farol. Tinha pouca idade, então, nenhum lugar registrava. Quando ele se tornou maior de idade, ele falou: 'não, mãe, agora eu quero procurar alguma coisa registrada para mim'. Conseguiu um emprego de estoquista em uma loja no shopping Cidade Jardim. Estava super feliz no emprego novo, por ser o primeiro emprego. Até acontecer o fato.

A mesma coisa o Richard, ele também começou a trabalhar cedo. Aqui no churrasquinho, hoje o Richard tem um serviço registrado, igual ele. O sonho do Peterson era ser humorista. Você sempre vai ver uma foto dele com alguma coisa na mão, fazendo algo engraçado, para as pessoas notarem. O Peterson sempre foi assim.

Ele falava: 'um dia vou dar uma casa para a senhora'. Falava isso direto. Eu respondia para ele esquecer isso, e ele pedia para eu acreditar nele. Dizia que ia trabalhar muito para comprar uma casa para mim. Isso não chegou a acontecer. E hoje eu ouço isso do Richard. São filmes que voltam à cabeça."

08.mai.2019 - Tatiana segura chapéu que Peterson costumava utilizar - Simon Plestenjak/UOL

A última vez que vi meu filho

"O que aconteceu naquele dia é o que eu ouvi de todas as pessoas. Eles estavam saindo de uma festa e acabou acontecendo... Para mim, é difícil falar, porque mexe bastante comigo. Então, às vezes, eu me retraio um pouco porque volta tudo. Aquele dia, aquela noite que ele saiu de casa, dizendo: 'Mãe, eu volto logo'. Deu 1h, deu 2h, deu 3h, ele não costumava virar a noite.

Ele estava super tranquilo aquele dia. Ficou aqui o dia inteiro, ouvindo música, que ele tinha o computador dele ali. E aí brincou de bola o dia inteiro com o João, ficaram o dia inteiro batendo bola no corredor. Quando deu 16h, ele falou: 'Mãe, hoje vou sair'. Falei: 'Filho, por que vai sair hoje? Deixa para sair no próximo final de semana'. Ele falou que umas meninas tinham chamado ele para ir num aniversário e foi.

Era num salão, algumas ruas abaixo de onde eu moro, aqui. E aí ele ficou o dia inteiro, tomou banho, se arrumou. Eu estava deitada, umas 20h, quando ele falou que já ia. Disse que não ia demorar e que voltaria logo. E aí foi a última vez que vi meu filho."

08.mai.2019 - Tatiana mora no mesmo lugar, com o marido e dois filhos - Simon Plestenjak/UOL

"Você é mãe do Peterson"?

"Deu 1h, deu 2h, eu levantei. Fui ao banheiro. Olhei para a cama dele, estava vazia. Aí mandei mensagem no celular. Apareceu [a sinalização de] que ele não tinha visto. Fiquei preocupada e comecei a ligar. O celular dele já estava descarregado, não estava mais chamando. Aí fiquei preocupada porque ele falou que ia vir rápido. E ele não costumava passar a noite inteira fora.

Deu 3h, 4h, começou a me dar aquela angústia e comecei a ficar desesperada. Comecei a pensar que tinha acontecido alguma coisa. E aí comecei a ir atrás. Liguei no celular dos amigos, mandei mensagem nas redes sociais e ninguém respondia. Deu 6h. Nessa época, eu trabalhava no shopping JK. Levantei, fiz o café e fui trabalhar, mas com aquilo dentro de mim. Fui trabalhar pensando: 'Não, ele vai chegar'.

Quando cheguei no trabalho, uma das moças que eu mandei mensagem perguntando do Peterson me chamou. Ela falou: 'Você é a mãe do Peterson?'. Eu falei: 'Sou'. 'Cê tá procurando ele, não tá?'. 'Tô'. 'É porque balearam um rapaz chamado Peterson nesta madrugada, na festa onde a gente estava'. Aí ela mandou a foto para mim. Ali, para mim... Eu nem lembro mais o que aconteceu."

08.mai.2019 - Peterson morreu no Jardim São Luís, a algumas quadras de distância de onde morava - Simon Plestenjak/UOL

Pesadelo

"Cheguei do trabalho. Já estava todo mundo aqui, foi aquela coisa toda. Daí, então, começou o pesadelo. A gente vive um pesadelo até hoje. Desde o instante que você sabe. Desde o instante que você sabe até a forma como passa a ser tratada em todo lugar.

Liguei no IML (Instituto Médico Legal) para saber e não obtive resposta. O rapaz falou para eu deixar meu telefone que retornaria. Em nenhum momento, eu fiquei sabendo pela polícia, apesar de estar com todos os documentos, dinheiro, cartão de banco, meu Bilhete Único [cartão do transporte público de SP]. Em nenhum momento eu fui informada.

Vim saber pela boca dos outros e indo atrás. Foi quando o rapaz do IML falou para mim: 'O rapaz que você está procurando é um rapaz de barbicha, é o que estava confrontado com a polícia esta madrugada'? Eu falei que não, que meu filho não estava fazendo isso. Ele perguntou novamente sobre a barba, que estava meio loira e deu detalhes.

Aí eu já não ouvia mais o que ele falava para mim. Alguém pegou o telefone e terminou de falar com ele. Eu já entrei em desespero. Aí eu tinha a certeza que era ele, porque, pelas características que ele falou, ele estava exatamente da mesma forma. Com a barba loira porque eu tinha descolorido dois dias antes porque ele disse que iria para o baile impressionar as meninas."

08.mai.2019 - Mãe exibe relógio e cordões que estavam com Peterson no momento em que ele foi morto - Simon Plestenjak/UOL

Tratada como mãe de bandido

"Tive de ir lá para o processo de reconhecimento do corpo, levar documentos para a gente verificar. A minha gerente à época, que foi uma mãe para mim, ela foi comigo. Eu não entrei para reconhecer, porque não tive essa coragem. Porque eu queria como última imagem dele, ele sorrindo. Aquela imagem que ele saiu daqui: todo arrumado, bonito, cheiroso, não daquele jeito.

No IML, fui recebida como mãe de bandido. Eles não têm a mínima compaixão de saber que você acabou de perder um ente querido, mas só o fato de ele chegar lá baleado e pela polícia, para eles, meu filho era bandido. E ele nunca foi bandido.

No começo, eu tinha muita dificuldade de ir ao DHPP (Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa). Quando eu cheguei lá, eu fui tão mal recebida, me lembro como se fosse hoje. No dia que eu fui pegar as coisas dele lá, estava chovendo, fiquei esperando do lado de fora, teve um rapaz que me recebeu e perguntou quem eu era.

'Mãe do Peterson'. 'Quem é Peterson?'. 'Meu filho foi baleado...'. 'Ah, seu filho é aquele que estava atirando na polícia? Então, senta aí e espera'. Sentei e esperei. Ali. Não gosto de lembrar [pausa por crise de choro]. Desculpa. Mas eu chorava tanto, que eu falava: 'Meu Deus, eu não estou aqui nesse lugar'. É uma coisa que eu queria esquecer na minha vida, passar uma borracha. Mas é incontrolável.

Falei que fui buscar os pertences do meu filho. Disseram que eu não tinha o direito. Falei: 'eu tenho, porque o que ele estava era dele'. A carteira era dele, o relógio era dele, os cordões que ele estava eram dele. Nada ali era roubado. Ele falou: 'não, isso é a gente que vai decidir'. E vim embora. Recebi depois de uma semana."

Reproodução do Inquérito Policial que apura a morte de Peterson

Investigação por conta própria

"Depois de uma semana, fui depor. E as coisas começaram a mudar lá dentro [do DHPP]. Começaram a ouvir as testemunhas, a história do que de fato tinha acontecido, os depoimentos. Tiveram de começar a investigar a vida do meu filho. Porque eu queria que fizessem isso para provar que ele era inocente.

Eu investiguei. Fui no local depois de alguns dias, sondei alguns vizinhos, o que é muito difícil, porque ninguém quer se comprometer. Ainda mais aqui na periferia. Fui à igreja atrás de câmeras, fui na casa da frente atrás de câmeras, fui em todos os lugares. Não falando que eu era mãe, porque, senão, as pessoas já iriam ficar receosas.

Mas foi difícil. As câmeras ou não gravavam ou estavam desligadas. Pedi para todas as testemunhas do caso prestarem depoimento sobre o que de fato viram. Eu que fui atrás de todas as testemunhas. De todas. E eu as levei até o DHPP. Foram seis. De imediato, todos já se propuseram a depor. Porque os amigos dele foram criados aqui dentro de casa, viviam aqui com o Peterson, comiam arroz doce nessa mesa aqui. Conheço a procedência de todos. São de boa família.

Os principais amigos, que viram, foram o Victor, o Alex, o Lucas. Os que realmente presenciaram. Todos falam igual. Que estavam saindo da festa, que já viram a polícia na parte de cima da rua, colocando pavor em todo mundo. Eles correram. O Peterson tinha bebido um pouco. Os meninos conseguiram correr, ele, não. Aqui, o medo prevalece. Eu também correria."

08.mai.2019 - Tatiana atualmente vive com as marmitas que cozinha e vende pela zona sul de SP - Simon Plestenjak/UOL

Policiais passaram a apoiar

"Depois de um tempo, percebi que a investigação começou a ficar mais séria. Depois de uns 20 dias, depois de eu ter levado as testemunhas. Eu mesmo ia lá, marcava os depoimentos, tudo bonitinho, porque, assim, a escrivã Sônia, e o investigador, Márcio, que começaram a mexer no caso dele, me deram muita atenção.

Teve um dia que ele falou para mim: 'Olha, eu sei que é muito difícil acreditar, mas, quando a gente sente que algo é sério, que a procedência das pessoas são sérias, não que a gente não investigue, mas a gente tem mais o prazer de investigar'. Ele falou isso para mim, olhando no meu olho.

Me disseram para ter fé e correr atrás. 'Se você tem convicção do cidadão que você criou, do cidadão de bem que ele era, você tem que correr atrás'. Eu falei para ele que meu filho não podia virar mais um número. Porque, aqui na periferia, todo mundo que morre vira mais um número. Eles matam pelo estado, farda, para mostrar para o outro que eles têm poder."

08.mai.2019 - Tatuagem feita por Tatiana em homenagem ao Peterson - Simon Plestenjak/UOL

Irmão queria ser PM

"Antes disso acontecer, eu confiava na polícia. Hoje, perdeu a credibilidade. Antes daqui, a gente morava no Jardim Ângela. Meu pai tinha uma oficina lá e, ao lado, tinha uma companhia da PM. O Richard tinha paixão por aquilo. Por querer a vida militar, ele começou a fazer cursinho.

Quando isso aconteceu, parou. Ou seja, não tiraram só a vida do Peterson. O sonho do Richard era ser policial. Eu e toda a família, até então, sempre apoiamos. Sempre. Acabaram com a vida de uma família inteira.

Antes, eu tinha prazer de viver. Eu vou vivendo. É um dia de cada vez. Depois que isso aconteceu, um dia eu tô bem, outro dia amanheço meio assim, outro dia choro, outro dia tô feliz, outro dia tô alegre. Tem dia que eu levanto com vontade de fazer as coisas, tem dia que eu não levanto.

Se eu tivesse a oportunidade de ficar frente a frente com esse policial, eu não falaria nada. De jeito nenhum. Ficaria assim como estou com você agora. Olhando no fundo dos olhos. Não tem nada pior para um ser humano do que você olhar dentro do olho dele. [Pausa durante alguns instantes]. Ele não merece que eu fale com ele. Não merece ouvir a minha voz. Porque ele acabou com a minha vida."

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