Tensão no papel

O que dizem as correspondências confidenciais trocadas entre governo brasileiro e ONU sobre o golpe de 1964

Jamil Chade Colaboração para o UOL, em Genebra Marcelo Chello/CJPress/Estadão Conteúdo

No mundo da diplomacia, cada gesto é pensado. Cada palavra, é igualmente pesada. Não apenas pelo seu valor imediato, mas como uma sinalização política de um governo e de suas intenções. No mundo do Barão de Rio Branco, símbolo e patrono da diplomacia, cada documento também vira parte de um futuro acervo da história nacional.

Mas uma troca de cartas entre o governo brasileiro e a ONU (Organização das Nações Unidas) revelou uma dimensão rara e pouco comum nos telegramas e comunicados sigilosos. O motivo: a forma pela qual o governo brasileiro passou a lidar com os crimes da ditadura militar.

Começou em março. Um relator da ONU pediu esclarecimentos ao governo de Jair Bolsonaro (PSL) sobre o que havia sido feito no país para explicar aos brasileiros as violações cometidas durante a ditadura militar e, assim, evitar que elas se repetissem. Em resposta, o Palácio do Planalto informou que isso já tinha sido lidado na Lei da Anistia, em 1979, e não cabia a um relator das Nações Unidas se intrometer no caso.

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A carta do relator da ONU

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No dia 28 de março, dias antes do aniversário do golpe de Estado de 1964, o relator Fabian Salvioli enviou uma carta ao governo. Nela, ele protestava diante da ideia de que o ato seria comemorado, a pedido de Bolsonaro. Salvioli chegou a publicar um comunicado de imprensa naqueles dias, com ampla repercussão. Mas apenas agora sua carta confidencial ao governo foi tornada pública.

Nela, o relator é claro em seu pedido. "Por favor, providencie informações sobre as medidas tomadas para garantir que as violações de direitos humanos cometidas durante a ditadura militar continuem a ser reconhecidas e que tais informações sejam amplamente disseminadas entre a população para garantir que a memória coletiva sobre essas violações seja preservada, e sua recorrência, evitada", escreveu.

Na carta, o relator se diz "profundamente preocupado" com a decisão de Bolsonaro de pedir que as comemorações sejam realizadas. Mas ele também cita que o próprio presidente já havia elogiado tanto a ditadura brasileira como outros ditadores latino-americanos --o chileno Augusto Pinochet e o paraguaio Alfredo Stroessner, por exemplo.

Lembrando mortes e prisões, Salvioli ainda destacou como a Lei da Anistia impediu que fossem levados à Justiça.

"Isso é de especial relevância, considerando que as violações de direitos humanos cometidas durante a ditadura continuam impunes", alertou a instituição em carta.

Segundo o relator, a falta de responsabilização e a impunidade levam a um "enfraquecimento da confiança da sociedade nas instituições públicas e no Estado de Direito". Para ele, isso ainda pode ser um elemento importante para contribuir para a "recorrência de violações de direitos humanos".

Além de ser contra as obrigações internacionais do país, tal gesto poderia levar a um "processo de revitimização das vítimas de violações de direitos humanos durante esse período".

A resposta do Itamaraty

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"Legítimo"

"O governo brasileiro considera que o relator especial deva respeitar os processos nacionais e procedimentos domésticos em suas deliberações", criticou o Itamaraty.

Uma semana depois, a resposta do governo já havia sido dada, usando termos e construções longe do que a diplomacia internacional está acostumada. Na ONU, aquelas palavras foram recebidas com uma mistura de incredulidade e preocupação diante da atitude de um país democrático.

Na carta, o Itamaraty é contundente: não houve golpe de Estado em 31 de março de 1964 e o que ocorreu foi "legítimo". Num dos trechos, o documento chega a falar em "repúdio" à cobrança e aos comentários do relator. O uso do termo, porém, é reservado apenas para situações de extrema ofensa ou crises.

Mas, em nenhum momento, o documento brasileiro responde o que tem sido feito para disseminar a informação de que violações ocorreram e se limita a apontar que a Comissão da Anistia continua existindo.

"O governo brasileiro repudia as alegações sem base do relator especial, Fabian Salvioli", diz o documento. Segundo a carta, a comemoração do 31 de março não seria para justificar as violações de direitos humanos. Mas, sim, para "abrir o debate público sobre uma data histórica importante na história do Brasil".

WILTON JUNIOR/ESTADÃO CONTEÚDO WILTON JUNIOR/ESTADÃO CONTEÚDO

Gostaria de expressar minha profunda preocupação sobre a comemoração planejada do golpe militar no Brasil e o impacto que ela pode ter na promoção da verdade, justiça, reparação e garantias de não recorrência em relação às sérias violações de direitos humanos cometidos durante a ditadura, e os direitos das vítimas de tais violações.

Fabian Salvioli, relator da ONU em carta endereçada ao governo brasileiro

As questões levantadas pelo sr. Salvioli foram devidamente lidadas pela Lei de Anistia, adotada em 1979, em que todos aqueles envolvidos em crimes políticos ou atos relacionados entre 1961-1979 receberam anistia completa. A Comissão da Anistia continua ativa até hoje, sob o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos

Itamaraty, em carta de resposta aos questionamentos do relator da ONU

Felipe Amorim/UOL

Sem referência às vítimas

Na resposta, porém, nenhuma referência é feita às vítimas e às medidas tomadas para que as violações cometidas sejam conhecidas da população.

A resposta apenas apontou que o presidente está "convencido" de que é necessário "colocar em perspectiva" a data de 1964 e que quer um "debate público" sobre os fatos. A comemoração sugerida, portanto, ocorreu respeitando a Constituição.

"O presidente reafirmou em várias ocasiões que não houve um golpe de Estado, mas um movimento político legítimo", diz a carta, que ainda cita o apoio do Congresso e do Judiciário aos fatos em 1964. Segundo o governo, houve ainda o apoio da maioria da população na tomada de poder.

"O presidente Bolsonaro tem reiterado seu entendimento de que o movimento de 1964 foi necessário para frear a ameaça crescente da tomada comunista do Brasil e para garantir a preservação das instituições nacionais, no contexto da Guerra Fria", indicou.

"Deve ser lembrado que 1960-70 foi um período de intensa mobilização de organizações terroristas de esquerda no Brasil e em toda a América Latina", lembrou a carta.

O Itamaraty ainda garante que o governo brasileiro está "comprometido com a democracia, o Estado de Direito, a proteção aos direitos humanos e as liberdades fundamentais". Mas deixa claro que considera que as comemorações do golpe fazem parte da liberdade de expressão.

"O governo defende o direito à liberdade de expressão e de pensamento e dá as boas-vindas ao debate público sobre os eventos que ocorreram no período 1964-1985 no Brasil", diz.

Se tradicionalmente as cartas do Itamaraty são assinadas, desta vez o documento foi entregue às Nações Unidas apenas como um selo da missão do Brasil junto à entidade, liderada pela embaixadora Maria Nazareth Farani Azevedo. Nenhum dos diplomatas, assim, ficará com seu nome registrado na história, num documento em que se nega a própria história.

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