Sobrevivi ao massacre brutal

Na lista dos mais procurados da China, ativista lembra tanques e mortes na Praça da Paz Celestial, há 30 anos

Talita Marchao Do UOL, em São Paulo Jeff Widener/AP

No dia 4 de junho de 1989, o Exército chinês acabou com as seis semanas de protestos estudantis pró-democracia em Pequim. Os manifestantes foram atropelados por tanques e alvejados por soldados na Praça da Paz Celestial, e até hoje não se sabe o número exato de mortos e feridos --estima-se algo ente 2.000 e 5.000 mortos e 60 mil feridos.

Zhou Fengsuo era um dos mais de milhares de estudantes que protestavam na Praça Tiananmen. Assim é chamado o local do "massacre brutal", como Zhou define o que aconteceu naquele dia. Líder da Federação Autônoma de Estudantes de Pequim, ele figurava entre os cinco ativistas mais procurados após o fim dos protestos.

Em entrevista ao UOL, por telefone, ele falou sobre sua prisão e sobre política. "Nunca teremos justiça. Isso só seria possível em uma China democrática, depois da queda do regime comunista", diz.

Jeff Widener/AP

Zhou era um veterano aluno de física da Universidade Tsinghua, em Pequim, quando entrou para o grupo dos 21 mais procurados da China por sua liderança estudantil durante os protestos na Praça da Paz Celestial.

Foi preso uma semana depois do massacre de 4 de junho, após ser denunciado pela própria irmã e pelo cunhado, que era militar, na cidade de Xian, assim que a lista foi divulgada na televisão. Segundo os jornais da época, cinco militares apareceram para prendê-lo cerca de 90 minutos após ter sido feita a delação. Ele permaneceu detido por um ano.

"Não acho que ela teve a intenção de me machucar, de me fazer mal. Depois que a polícia me interrogou, ela disse algo como 'OK, vocês podem ir embora agora'. Lembro-me de que os policiais olharam incrédulos para ela, sem entender o que ela dizia. Ela foi muito pressionada depois, recebeu toneladas de cartas, seja dando apoio ou a condenando por ter me entregado", contou Zhou por telefone dos EUA, onde vive desde 1995, quando conseguiu uma bolsa de estudos.

"Fui criado pela minha irmã. Ela foi a primeira da família a entrar em uma universidade, abrindo o caminho para mim", disse o ativista e fundador da ONG Humanitarian China, que dá suporte aos familiares de vítimas do massacre e aos sobreviventes. "Nunca mais nos vimos. Tento me manter distante. Na China, Tiananmen é algo que marca as pessoas, é uma forma de mantê-la fora disso", afirmou.

2.jun.1989 - Catherine Henriete/AFP 2.jun.1989 - Catherine Henriete/AFP

Meu nome e meu rosto foram amplamente divulgados por todo o país. Quando soube, fiquei chocado e, ao mesmo tempo, orgulhoso de mim mesmo

Zhou Fengsuo, fundador da ONG Humanitarian China

Reprodução/Facebook

Zhou descreve o que aconteceu na Praça da Paz Celestial como algo "brutal e inimaginável". Segundo ele, os protestos foram praticamente espontâneos. "Eu era um líder estudantil, era o meu dever como estudante. Quando perdemos a liderança, me voluntariei e fui eleito. Por isso acabei na lista dos mais procurados", diz.

Ele deixou a China em 1995, quando ganhou uma bolsa de estudos da Universidade de Chicago para estudar finanças. Hoje, se dedica completamente à ONG. Após a prisão, esteve apenas três vezes em território chinês --em 2007, 2010 e 2014. Na última vez foi brevemente detido em Pequim.

No aniversário de 25 anos do massacre, o ativista visitou a Praça da Paz Celestial e um centro onde muitos de seus colegas de 1989 ainda estão presos. Foi interrogado por quase um dia inteiro e depois deportado para os EUA --ele tem cidadania norte-americana e vive em San Francisco, na Califórnia. Apesar de difícil de acreditar, ao visitar os estudantes prisioneiros, Zhou não foi reconhecido nem detido. Policiais somente o procuraram no hotel em que estava hospedado.

Os protestos de Tiananmen foram a única vez na história da China sob o comunismo em que as pessoas expressaram suas opiniões, em que o povo chinês fez uma manifestação contra o comunismo. Foi a única oportunidade de sentir o gosto da liberdade

Zhou Fengsuo, ativista

Manny Ceneta/ AFP Manny Ceneta/ AFP

Na semana passada, o ativista esteve em Taiwan, ilha considerada província rebelde pelo governo de Pequim. Foi recebido pelo presidente Tsai Ing Wen. "Há 30 anos, o Partido Comunista escolheu o caminho errado. Como resultado, a China se tornou a maior ameaça ao mundo livre através da globalização e do totalitarismo digital", disse Zhou após o encontro.

"Sabemos que, durante os últimos 30 anos, todos os anos vimos pessoas corajosas serem presas por relembrar o massacre da Praça Tiananmen. Para eles e para as vítimas, os eventos em Taiwan são um grande incentivo e conforto. Como manifestante de Tiananmen, gostaria de expressar minha gratidão", afirmou quando esteve na região.

Em um país como a China, onde a internet e o fluxo de informação são minuciosamente controlados pelo governo, encontrar informações sobre o massacre é complicado. Sistemas de inteligência artificial e até mesmo de reconhecimento facial desaparecem com qualquer informação ou imagem referente ao episódio. Somente pessoas com ao menos 35 anos têm uma dimensão do que foram os protestos na Praça da Paz Celestial.

Na sua luta para que o massacre não seja esquecido, Zhou celebra as entrelinhas da censura imposta pelo governo chinês. Hoje, dentro da internet chinesa, é impossível encontrar a icônica imagem de um manifestante diante dos tanques na Praça da Paz Celestial.

"O massacre de Tiananmen virou uma questão. A proibição de falar sobre os protestos acaba dando esperanças de que a China tenha chances de um dia ter uma democracia", diz. Afinal, se há uma censura, é porque o assunto está sendo procurado.

Arquivo/Ed Nachtrieb/Reuters Arquivo/Ed Nachtrieb/Reuters

Como tudo começou

AP

Morte de reformista iniciou atos

Em abril de 1989, estudantes começaram a se reunir na Praça da Paz Celestial após a morte do líder reformista Hu Yaobang. Ex-secretário do Partido Comunista chinês, Hu foi afastado do cargo por ser considerado "muito liberal". Os estudantes queriam que Hu fosse sepultado com honras de Estado, nutrindo também esperanças de terem mais liberdade política.

AP

1 milhão de pessoas na praça

Os protestos cresceram rapidamente, até um ponto em que a praça não era mais ocupada somente por estudantes. O acampamento ganhou vida própria, tornando-se o maior desafio ao poder do Partidão chinês desde 1949, quando Mao Tsé-tung assumiu o poder com a vitória dos comunistas. Estima-se que a praça chegou a ser invadida por 1 milhão de pessoas.

4.jun.1989 - Shunsuke Akatsuka/Reuters

Banho de sangue na praça da paz

Na madrugada de 4 de junho, os tanques invadiram a praça, atropelando os manifestantes acampados, e soldados com metralhadoras abriram fogo contra qualquer pessoa que estivesse na praça. Até hoje não se sabe quantas pessoas morreram no local. As estimativas dão conta de que até 5.000 pessoas tenham morrido e outras 60 mil ficaram feridas.

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